Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Agência Carta Maior

MÍDIA & PODER
Gilson Caroni Filho

O pluralismo dos tolos, 14/08/07

‘Uma imprensa livre e plural é apontada como premissa para a existência e a consolidação do regime democrático. Soaria como evidência de que atingimos tal estágio, ou dele muito perto estamos, a existência de empresas jornalísticas que, malgrado sua inserção em negócios privados de grande monta, mantêm em seu corpo de redatores e/ou articulistas que, a princípio, contrariam sua linha editorial?

Como negar à Folha de S.Paulo, que abre espaço ao ‘fogo cerrado’ de um Janio de Freitas, o título de ‘veículo democrático’? Ainda mais se percebemos que em todas as editorias o fenômeno se repete no amplo leque ideológico de colaboradores, culminando, aos domingos, com o suplemento Mais!, no qual já pontificaram Robert Kurz e Jürgen Habermas, entre tantos outros nomes de peso do campo intelectual. Como ignorar a ‘representatividade ampla’ existente num jornal como O Globo se, lado a lado, estão Reinaldo Azevedo e Luis Fernando Veríssimo? Como negar ao que restou do Jornal do Brasil a ‘justeza do equilíbrio democrático’ se, na sua página de Opinião, há oferta generosa de espaço tanto a um Emir Sader quanto a um Jarbas Passarinho?

De falsas evidências e boas intenções o inferno está cheio. E o campo democrático, cada vez mais desértico. A seguir, algumas considerações que, não sendo novidades, são lembretes.

De há muito o pólo hegemônico da mídia se deslocou para a televisão. E, como veremos abaixo, isso permitiu uma relativa flexibilização no jornalismo impresso. Sempre pronta a se desfazer quando a corrosão de legitimidade de um governo se torna tarefa urgente.

Não só do Estado como de outras esferas foi subtraído o espaço de articulação do bloco histórico contemporâneo. Da antiga esfera pública burguesa (paradoxo formal desde a origem) restou um cenário esmaecido em que ficaram sepultadas estratégias e táticas reformistas e/ou revolucionárias. O capitalismo em rede requer de seus adversários uma reflexão menos apressada que não seja tão rapidamente desmentida pelos fatos. Do ‘fim do imperialismo’ não se fala mais desde o atentado às torres do World Trade Center. Da ‘nova economia’ que transformava em anátemas eternos todas as teorizações do valor-trabalho poucos ainda se lembram. A recessão americana, do início do século, retirou da ribalta os ‘promissores gênios do Vale do Silício’, e o socorro proverbial foi fornecido por um keynesianismo de guerra.

A bordo de um F-16 e com um Estado redefinido (porém jamais prescindível), o capitalismo reencontra sua materialidade, para desencanto dos discípulos de Hayek e das outrora risonhas editorias de Economia. Volta o triste incômodo de se constatar que o desejado fim do campo político está longe de se materializar. O que mudou substancialmente foi sua dinâmica de reprodução e os dispositivos de legitimação.

O redesenho da institucionalidade burguesa não foi feito sem uma mudança significativa no campo midiático. Às necessidades de maior velocidade na reprodução e circulação do capital tornava-se imperiosa uma opinião meramente aclamativa como sucedânea da reflexão política. Forjá-la nos marcos do Estado de Direito e do simulacro de democracia representativa exigia deslocamento de aparelhos e alterações de estrutura discursiva. A informação veloz impede a formulação da recepção crítica e, oculta o caráter processual do que está sendo apresentado sob o invólucro do meramente episódico:um jornalismo que fragmenta a realidade para melhor distorcê-la.

Para tal empreitada a mídia impressa se tornara disfuncional. Quer pela disponibilidade temporal requerida para leitura, quer pelos riscos que um texto escrito, mesmo despido de conteúdo substantivo, sempre pode suscitar se partilhado com interlocutores críticos. Internalizada como ‘segunda natureza’, a rapidez e a descontextualização exigiriam um veículo em que o campo comunicativo precedesse a própria ação comunicativa e anulasse os elementos impeditivos da positivação da ordem.

Estava aberto o campo para o domínio televisivo. Sem qualquer empecilho de natureza operacional, a práxis jornalística seria subordinada à implacável da lei do valor. E esta última não comporta digressões românticas de resistência de espadachim. Como enfatiza o filósofo alemão Jürgen Habermas em obra ímpar sobre o papel da mídia na nova estruturação política burguesa:

‘Com isso, a base originária das instituições jornalístico-publicitárias é exatamente invertida nesses seus setores mais avançados: de acordo com o modelo liberal de esfera pública, as instituições do público intelectualizado estavam, assim, garantidas frente a ataques do poder público por estarem nas mãos de pessoas privadas. Na medida em que elas passam a se comercializar e a se concentrar no aspecto econômico, técnico e organizatório, elas se cristalizam nos últimos cem anos em complexos com grande poder social, de tal modo que exatamente a sua permanência em mãos privadas é que ameaçou por várias vezes as funções críticas do jornalismo. Em comparação com a imprensa da era liberal, os meios de comunicação de massa alcançaram, por um lado, uma extensão e uma eficácia incomparavelmente superiores e, com isso, a esfera pública se expandiu. Por outro lado, também foram cada vez mais desalojados dessa esfera e reinseridos na esfera, outrora privada, do intercâmbio de mercadorias. Quanto maior se tornou a sua eficácia jornalístico-publicitária, tanto mais vulneráveis se tornaram à pressão de determinados interesses privados’. (Habermas, Mudança estrutural da esfera pública, pág. 221)

Esse ponto é central. A imprensa, como empreendimento empresarial bem-sucedido, longe está de ser pilar da democracia. Pode-se transformar no seu maior obstáculo. Como é possível observar na substituição do sempre politizador debate político pela assepsia acrítica do marketing indiferenciador de diferenças programáticas e ideológicas. Ou no fazer político substituído por uma adesão a modelos comportamentais que transfiguram o cidadão-artífice num pachorrento consumidor de novidades antigas.

Da ‘Constituição-Cidadã’ aos direitos previstos no Procon pós-republicano é apenas um pulo. Lamentavelmente para trás. Mas com grande aporte publicitário e leitores militantes. A receita de grandes anunciantes supostamente neutralizaria maiores pressões oriundas dos setores públicos, mas desloca o poder de fogo para as forças de mercado.

Não reconhecer este ponto – como fez recentemente Ali Kamel – é , deliberadamente, tentar fazer com que a mudança de cativeiro seja confundida com obtenção de liberdade.

‘Enquanto antigamente a imprensa só podia intermediar e reforçar o raciocínio das pessoas privadas reunidas em um público, este passa agora, pelo contrário, a ser cunhado pelos meios de comunicação de massa’. (Idem, pág. 222)

Portanto, longe estamos de pluralismos e democracias que se consolidam. A práxis midiática é autoritária como exigência de corporação que pretende otimizar seu lucro. O jornal que ‘não dá pra não ler’, ainda mais se anabolizado por DVDs e fascículos (Folha de S. Paulo), o outro que há alguns anos era ‘tão bom quanto as verdades’ que dizia (JB), e aquele que promete que, na sua leitura, o ‘consumidor saberá muito mais ainda’(O Globo) jogam o mesmo jogo e, em questões centrais, não se diferenciam editorialmente.

Julgar que na grande imprensa há um veículo à esquerda dos demais é leitura quixotesca dos belos moinhos da propaganda bem-feita. Embalados pelo marketing, são pedagógicos de como a lei do valor submete todos os demais campos, embora não lhes retira autonomia relativa.

Alguns motivos explicam a falsa aparência de veículos que comportam atores que se contrapõem a seus interesses imediatos. O mais importante é a redução do jornal impresso como formador de opinião. Seu esvaziamento histórico é o que, paradoxalmente, permite a simulação de existência da crítica no seu interior. O setor que conta (TV) tem estrutura razoavelmente fechada e niveladora. Malgrado suas motivações, a ação dos articulistas citados no início deste artigo servem de legitimação à máscara de pluralidade que as corporações precisam apresentar.

Estaríamos no meio de um círculo sem saída? Seriam inócuas, por legitimar o campo midiático, as intervenções dos colaboradores oriundos de uma esquerda crítica e democrática? Longe disso, são contrapontos importantes. Mas não revertem a hegemonia conservadora instalada em cada veículo.

Se quisermos ultrapassar os umbrais da ingenuidade, deveremos perceber que inexistem imprensa plural e democracia efetiva nos marcos de uma sociabilidade ditada pela lógica do capital. Buscar espaços efetivamente alternativos, como é o caso de Carta Maior e outras mídias de caráter comunitário ou sindical, é lutar pela reinvenção de uma esfera efetivamente pública. Resistir é imperativo.

Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, e colaborador do Jornal do Brasil e Observatório da Imprensa.’

Flávio Aguiar

A dança dos vampiros

‘No excelente filme de Roman Polanski, ‘A dança dos vampiros’ (1967, com ele próprio e Sharon Tate), há uma cena em que os tão implacáveis quanto desajeitados caçadores dos dráculas contracenam com os próprios num baile. É uma cena inesquecível: alguns são mortos que dançam para parecer que estão vivos, outros são vivos que dançam para parecer que são mortos.

A verdade vem à tona quando, inadvertidamente, os caçadores e Sharon Tate passam diante de um espelho. Os vampiros, como se sabe, não têm imagem no espelho. A verdadeira imagem denuncia as mútuas fraudes, e naturalmente os caçadores se vêem implacavelmente caçados, e por aí se vai a comédia macabra.

A cena lembra o que aconteceu com as declarações do presidente da Philips, Paulo Zottolo, um dos animadores do movimento ‘Cansei’, desdenhando o estado do Piauí. É evidente que o sr. Zottolo cometeu um ato falho, isto é, um ‘ato involuntário’, no sentido de que não media então as conseqüências de seu gesto. Mas por isso mesmo deve ser levado a sério. Aquilo, por assim dizer, lhe saiu ‘pela boca afora’. Pode ser até que ele estivesse, como se diz juridicamente, ‘tomado de forte emoção’.

Que emoção? A do seu movimento, sem dúvida, a das raízes profundas do movimento ‘Cansei’. E que são, na verdade verdadeira, toda a coleção de preconceitos contra o povo brasileiro, por parte das auto-proclamadas ‘elites’, ou ‘élites’, como se dizia antigamente num pseudo-francês grotesco e macarrônico. Elites? Elite, convenhamos, é José Mindlin, é Antonio Candido, é Machado de Assis, é Lima Barreto, é Milton Santos, Raimundo Faoro, é Carvalho Pinto para citar alguém do campo conservador. Quem se auto-proclama ‘élite’, assim como quem se auto-proclama ‘formador de opinião’ não merece ser levado muito a sério não.

O movimento ‘Cansei’ tem na origem o entalhe do forte preconceito de que nossos problemas vêm de sermos obrigados a conviver com um ‘zé povinho’ ou ‘zé povão’, sobretudo no que toca à escolha de governantes. Por extensão, é o mesmo preconceito que periodicamente se alevanta contra o presidente que, por duas vezes, esse ‘zé povinho’ ou ‘zé povão’ escolheu, em 2002 e 2006.

Agora o preconceito contra o presidente, que bate sempre na tecla da sua ‘ignorância’, do seu ‘despreparo’, envereda pelas suas declarações de que a crise econômica nas bolsas do mundo inteiro não deva nos afetar tanto. Tal declaração, assim de bandeja, só pode ter raiz no fato de que o presidente ‘não sabe’ ou ‘não quer saber das coisas’. E é evidente que as declarações sobre o preconceito mal conseguem disfarçar a expectativa vampiresca de que sim, algo dê errado, que a vida do povão despenque de novo no buraco de onde mal e mal começa a sair, para que então a popularidade do presidente caia também e o Palácio do Planalto volte a cair nos braços de quem espelhe a imagem dessa ‘élite’, ou, quem sabe, o seu vazio de imagem, já que nem como burguesa consegue se ver, preferindo, num ato falho histórico, se ver para sempre no alpendre da casa grande, a contemplar os cafèzais.

De qualquer modo, pode-se dizer que a frase de Zottolo se transformou no epitáfio do ‘Cansei’.’

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O Estado de S. Paulo – 1

O Estado de S. Paulo – 2

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