Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A imprensa sem criados

A irracionalidade da atual campanha eleitoral, cujos responsáveis, profissionais do comércio de poderes, não parecem possuir a mais remota noção de civilidade, tem produzido alguns momentos surpreendentes. A maioria deles de uma surpresa que entristece, pela demonstração de como antigos ícones da resistência democrática podem se rebaixar a porta-vozes dos discursos mais obscurantistas, de como algumas biografias podem ser manchadas pela associação com monolitos da intolerância.


Mas há boas surpresas. Uma delas é a descoberta de uma finíssima veia de ironia em certas figuras sóbrias da imprensa. Roberto Damatta, o antropólogo que escreve no Caderno 2 do Estadão, é uma dessas revelações. Seu artigo de quarta-feira (20/10) é um raro exemplar do pensamento sutil.


Ironia


Vejamos: ele começa relatando seu retorno à localidade de Champaign-Urbana, Illinois, conhecida localmente como Chambana, uma dessas cidades duplas do interior dos Estados Unidos, cercadas de milharais e núcleos das políticas conservadoras do protecionismo econômico americano. Faz o elogio da vida simples (leia-se de parcos horizontes) de uma população cuja maior referência de mundo exterior (diga-se diversidade, cosmopolitismo) é a cidade de Chicago.


Em seguida, faz um corte e aborda a questão da radicalização da disputa eleitoral no Brasil, posicionando-se contra uma das candidaturas em confronto neste ano de 2010, perguntando-se (e ao leitor): ‘Quem quer entregar o País para uma candidata inventada por um presidente que se pensa dono de todas as verdades?’ A ironia está em que ele sabe que a maioria da população parece querer exatamente isso, o que o coloca, como autor de uma pergunta que quer afirmar uma verdade contrária àquela abraçada pela maioria, no mesmo lugar dos donos de todo saber.


Adiante, em outro corte, Damatta volta à Chambana de sua juventude, onde, segundo afirma, reina ‘o respeito pelos outros como moeda corrente’, ou seja, onde impera o ideal liberal em cuja perfeição ‘cada um é seu próprio dono e mordomo’. Conta como se surpreende quando um jovem lhe cede a passagem, à entrada de uma loja, como se esse gesto de cortesia com os mais velhos fosse uma característica única do interior de Illinois. Termina esse trecho com a frase que dá título ao artigo: ‘Aqui não há criados’. Ironia da mais alta qualidade, para quem se lembra dos milhões de imigrantes sem documentos que se esgueiram pelas sombras das cidades americanas, com medo da polícia, subempregados que sustentam a sociedade ‘sem mordomos’.


Declaração de voto


Finalmente, a jóia da coroa: o autor volta novamente suas vistas para o Brasil, onde a peleja eleitoral cheira a sangue e primitivismo, e faz sua declaração de voto, um pouco atrasado em relação ao jornal que abriga suas idéias. ‘E para provar que as seis famílias donas de jornal não me controlam, faço questão de declarar: para mim, não há dúvida de que Serra é, de longe, o melhor. O resto, amigos, como dizia aquele bardo inglês, é silêncio’.


Magistral! Terminar com Shakespeare, mestre da ironia, é a deixa perfeita para sinalizar aos seus leitores que tudo isso é uma grande, imensa, shakespeareana ironia. O soberbo antropólogo, mestre e doutor por Harvard lembra sutilmente ao seu público embasbacado, sem dizer uma palavra, que ali mesmo, a poucas páginas de onde ele nos brinda com sua genialidade, uma colega chamada Maria Rita Kehl foi defenestrada por pensar diferente das ‘seis famílias’. E que a qualquer quinta-feira ou domingo desses, outro de seus companheiros de Caderno 2, Luís Fernando Verissimo, pode ter destino semelhante se ousar declarar seu voto.


Uma lição de ironia para ser copiada e analisada em seminários de linguística, de jornalismo, de psicanálise.


Ou será que ele estava falando sério?


***


Aqui não há criados


Roberto da Matta # reproduzido do Estado de S. Paulo, 20/10/2010


Como as chuvas de verão, a bênção paterna e o beijo de amor, eu volto ao meio oeste americano. Aqui – meus amigos acostumados à conexão Leblon-New York City – não há a variedade babilônica da Grande Maçã nem aquele estranho (e falso) sentimento de que todo mundo é cosmopolita – essa máscara que as grandes cidades fingem. Pois nesta Champaign-Urbana, Illinois, Estados Unidos, entre imensos milharais e campos de soja, os nativos estão enraizados e não temem confessar que Chicago é a sua mais longínqua fronteira existencial. Como uma vez me disse uma amiga daqui do lado, de South Bend, Indiana: ‘Eu jamais pensei em sair dos Estados Unidos. Por quê? Ora, porque ‘everything is here!’ (porque tudo está aqui).’ A mesma resposta de minha amada e saudosa mãe quando falava de sua idealizada Manaus do Teatro Amazonas, do Clube Ideal e do Alto de Nazareth, onde o universo revestido pelo ouro que recobre grande parte do nosso passado parecia perfeito, mesmo quando o que se viveu foi impensável. O tempo, como sabem melhor os Ibéricos, como o padre Vieira, Fernando Pessoa e Eça de Queiroz, é o remédio para tudo. Sobretudo para as nossas mais profundas feridas, porque na sua passagem e na sua majestática indiferença, ele lixa a alma e faz com que os vales e as montanhas de sofrimento, ressentimento, rejeição e frustração se tornem planícies. ‘Amanhã – como disse Clark Gable no …E o Vento Levou – será outro dia!’ O problema é ter paciência e esperar. Só o amor – esse amor grandioso amor humano – fica como alento, oásis e ponte.


Aqui há uma calma de ruas seguras e vazias; uma melancolia que cai das árvores e remete àquelas músicas outonais que falam do milagre das folhas virando chamas. Imagino se Cole Porter, nascido em Peru, Indiana, bem no meio destas planuras, não carregava no coração esse cheiro de outono quando fez aquelas músicas que eu sempre canto com lágrimas nos olhos: Everytime we say goodbye, I die a little/ Everytime we say goodbye, I wonder why a little… – todas as vezes que nos despedimos, eu morro um pouco; todas as vezes que nos despedimos, eu me surpreendo um pouco.


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Quantas vezes morremos e matamos, como ocorre nas disputas eleitorais que acendem as velhas paixões e revivem suas mentiras, como a de que, um dia, com o salvador (e agora perseguido das elites) Lula, o Brasil vai estar pronto e acabado. Ou na sua dura verdade que toda democracia precisa ser construída todo dia. Estou seguro de que a grande maioria descobriu que popularidade, ressentimento, agressão às instituições liberais e corrupção permanente, tudo isso pulveriza votos. A velha fórmula demagógica de entregar o Brasil a uma tomadora de conta – a supermãe do sistema – não funciona. Numa democracia, todos são importantes, acima de tudo o conjunto dos seus cidadãos comuns e ativos, e não um bando de comodistas que precisam de cuidadores. Quem quer entregar o País para uma candidata inventada por um presidente que se pensa dono de todas as verdades?


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Voltei aos Estados Unidos e fico por muito pouco tempo. A velha familiaridade com o estilo de vida ressurge automaticamente dentro mim. Ela traz de volta o respeito pelos outros como moeda corrente. E, tal como ocorreu com Alexis de Tocqueville, vejo nessa preocupação com o próximo o outro lado de um individualismo que sempre me assombrou. Quanto mais forte o individualismo, mais solidão, menos relações e, no entanto – eis o que Tocqueville foi o primeiro a descobrir -, mais associacionismo e institucionalização. Tal como a santidade precisa de pecado, a igualdade e o individualismo necessitam os seus contrários, como notava o gênio aristocrático desse francês não lido no Brasil porque sempre foi considerado um reacionário pelo nosso radicalismo chique e acadêmico. Com isso, a América é local onde obedecer às regras é tomado como algo positivo e inteligente, não como sinal de inferioridade ou burrice como no Brasil.


Ontem, por exemplo, um jovem me cedeu passagem na porta de uma loja, reverente para com um ‘old professor’. Assim que cheguei, fui convidado para o tal ‘lunch’ que em nenhuma hipótese pode ser comparado ao nosso ‘almoço’. Pois, em primeiro lugar, aqui temos muito a escolher e isso confunde; depois, porque todos servem em bandejas e isso me deixa inseguro (como caminhar equilibrando tanta coisa?); em terceiro lugar, porque, ao morder um sanduíche de ‘tuna salad’, ouço dentro de mim uma voz repetindo: isso não pode ser ‘comida’!; e, finalmente, depois que comemos, somos obrigados pela etiqueta indisputável e indiscutível do local a – eis a ofensa para o meu lado brasileirinho -levarmos os nossos restos para o lixo! A igualdade tem preço. Um preço alto para quem foi criado com criados, para quem adora mordomias. Pois nesta Illinois que não conheceu nenhuma execrável escravidão, cada um é seu próprio dono e mordomo. Temos, pois, a obrigação de levar nossos restos para o lixo. Esse é um aspecto do liberalismo pouco visto e falado no Brasil e, no entanto, crítico para sua existência. Aqui, reitero, não há criados.


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É duro limpar o nosso lixo, como é complicado enxergar a nossa arrogância e os nossos erros. Em tempos de jornada eleitoral, porém, como na viagem que nos torna peregrinos e dependentes das mãos dos amigos locais, definem-se sinceridades, mentiras e competências. E para provar que as seis famílias donas de jornal não me controlam, faço questão de declarar: para mim, não há dúvida de que Serra é, de longe, o melhor. O resto, amigos, como dizia aquele bardo inglês, é silêncio…