Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Antes de morrer pela palavra

De um tempo para cá se têm ouvido e lido nos veículos do sistema Globo de jornalismo a expressão ‘risco de morte’. Aos poucos foi possível decifrar o sentido: a novidade chegou com o propósito de substituir ‘risco de vida’. ‘Ignorância ou má-fé?’, pergunta a professora e especialista em Língua Portuguesa, Maria da Conceição do Couto Netto.

Conceição lembra que em seu mais conhecido livro, 1984, George Orwell ‘nos fala de uma `novilíngua´ – tradução bastante adequada para a palavra newspeak –, eficientíssimo instrumento de manipulação mental sob o comando do Big Brother, onipresente personagem da sombria narrativa cujo tema, atualíssimo, aborda o controle absoluto da sociedade humana, uma idéia nada distante do que está ocorrendo hoje, nos vagidos do século 21′.

Prossegue a professora: ‘Publicado em 1949, o texto nos alerta para a possibilidade de vivermos futuramente num planeta dominado por uma poderosíssima organização tentacular, quando então não haverá espaço para divergências políticas ou religiosas, opiniões contraditórias, embates intelectuais autênticos e outros exercícios discursivos inerentes à liberdade de expressão que caracteriza os ambientes verdadeiramente democráticos’.

‘Ao destacar em sua obra a importância estratégica da novilíngua’, continua a professora, ‘Orwell nos alerta para aquilo que desde o pré-socrático filósofo Heráclito já se deveria saber: a mente é a sede do discurso, o discurso é tecido pela língua e a língua é o suporte do pensamento, donde pode-se razoavelmente inferir que controlar a língua é um dos modos mais rápidos e insidiosos de teleguiar a mente das pessoas sem que elas percebam’. Para ela, alguns exemplos dessas tentativas de sutilíssima dominação acontecem logo ali, na esquina do país em que vivemos, sem que causem estranheza na alma dos intelectuais de plantão, sempre aparentemente tão atentos a outras questões de interesse popular, em nome de uma mentalidade politicamente correta, legítima Hidra-de-Lerna dos tempos modernos, à altura das piores intenções de um Big Brother verde-amarelo’.

‘Pois é’ – salienta Conceição –, ‘vindo ao encontro dessas sinistras constatações, eis que surge no horizonte dos meios de comunicação – estamos falando especificamente da TV Globo – um acontecimento que parece curiosamente se relacionar com o esquema orwelliano de rescritura lexical: riscaram do texto jornalístico, num passe de mágica besta, a expressão risco de vida. Agora a palavra de ordem é falar e escrever risco de morte!’

Para levar em conta

E mais: ‘Sedimentada por séculos de uso e consagrada por falantes de todas as camadas sociais, a forma proscrita é facilmente encontrada na obra de escritores como Machado de Assis e Eça de Queirós, entre outros de igual porte literário. Não bastassem tais credenciais, é preciso lembrar aos desavisados que rejeitar essa provecta criatura é ignorar que lá onde o diabo perdeu as botas lingüísticas – lugar interessantíssimo no qual, por exemplo, ‘pois sim’ pode significar não e ‘pois não’, sim – ela era falada e escrita como ‘risco de perder a vida’, tendo sofrido, por conta do passar dos anos, uma elipse, fenômeno lingüístico que reduz a extensão de um enunciado sem prejuízo do seu sentido original’.

Observações desse tipo, segundo a professora, levantam a suspeita shakesperiana de que há algo de muito podre no reino da mídia brasileira. ‘A iniciativa de se fazer tão esdrúxula correção verbal terá partido de um generoso interesse em prestar um serviço educacional à população?’, pergunta. ‘Se foi isso, o fato resultou, na verdade, em um erro estapafúrdio – o que só denota ignorância. Ou será que o ocorrido, nas barbas da desatenção patológica em que se afoga a consciência nacional, terá sido o sintoma de uma descarada tentativa de finalmente se implantar no país a novilíngua versão portuguesa sob a inspiração profética de Orwell? Se foi isso, o acontecido não passou de um balão de ensaio para vôos totalitários mais altos – o que só denota desonestidade. Tertium non datur…’

E conclui a professora: ‘Felizmente, tanto na ficção quanto na realidade, o projeto de poder absoluto que utiliza a pasteurização discursiva – eficiente método de semeadura para o florescimento daninho de um conveniente ‘pensamento homogêneo’ – encontrará invariavelmente resistência na misteriosa força do não por acaso desmoralizadíssimo livre-arbítrio, ainda presente em alguns raros e incômodos seres que sabem que a língua é o veículo por excelência do vastíssimo psiquismo humano, uma estrutura natural que nenhum meio externo, por mais opressor e maquiavélico que seja, conseguirá cercear ou moldar completamente: quem cria o vírus conhece a vacina.’

Creio que a reflexão da professora Maria da Conceição deve ser levada em conta para que a vida não corra o risco de morrer pela palavra.

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Jornalista, professora universitária e doutoranda em Semiologia pela UFRJ