Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Arrogância e a credulidade do público

Na edição de domingo (18/07), o Diário Catarinense publicou diversas manifestações de leitores contrários à candidatura de Dilma Rousseff. O editor não precisa ser transparente. Os fatos internos não são notícias no veículo de notícias. O público não sabe se algum leitor enviou manifestação favorável à candidata do PT, ou mesmo se os textos publicados eram, de fato, cartas de leitores ou invenções criativas da redação. A exemplo dos candidatos vencedores na disputa pelos cargos eletivos, que não serão obrigados, por lei, a seguir as promessas de campanha, também o editor não está obrigado a atender às solicitações de transparência feitas pelo público. Presidentes, governadores, legisladores e editores não são núncios. Apresentam-se como núncios servis toda vez que desejam fortalecer a imagem de legitimidade de que necessitam para permanecerem como representantes do público, mas não são núncios tanto quanto suas ações não estão vinculadas à vontade do público que submissamente os legitima.

Tanto o editor do jornal quanto o presidente da República arbitram independentemente da vontade do público, ainda que este arbítrio esteja simbolicamente sustentado sobre a afirmação de que o poder do jornal e da República existem pelo e para o povo. A imprensa teatral arroga-se o papel de representante e cavaleiro. Arma-se com a espada cênica da objetividade, constituída pelo ritos textuais para a impessoalização e o distanciamento, e brande contra os males contrários às melhores qualidades das famílias de bem.

O teatro é vendido como realidade, o árbitro se legitima na função de, pasmem!, representante daqueles sobre os quais recairá seu arbítrio. Isto talvez seja o que alguns filósofos chamam de contradição dialética. Dialética ou não, como se sustenta?

O gesto de se tornar autor

Quando adolescente, pleno de ideais kantianos, participei do Notícia na Tarde. O programa radiofônico da Rede Brasil Sul, conduzido pelo conservador Luis Carlos Prates, chamara-me na condição de membro do Grêmio Estudantil do Instituto Estadual de Educação. No intervalo dos debates sobre o voto aos 16 anos, o apresentador confidenciou: ‘Aqui fazemos e desfazemos (o que quisermos).’ Prates revelou-me, na prática, o que vim a descobrir ser a distinção platônica entre verdade (episteme) e opinião (doxa). O Notícia na Tarde, segundo o apresentador, era um programa de entretenimento – no jargão de Chomsky, infro-entretenimento – fazendo as vezes de espelho e lupa da realidade.

O antropocentrismo kantiano elegeu o sujeito como o elo entre a coisa em si (noumeno) e sua aparência (fenômeno). Qual o princípio capaz de amalgamar os opostos dialéticos nos quais se sustentam os exercícios de poder simbolicamente constituídos, como os da imprensa livre e do sufrágio?

Considere-se o caso paradigmático da origem mítica da educação institucionalizada, em especial quanto ao aspecto ritualístico da colação de grau. O graduando recebe o grau de um professor que, por sua vez, é graduado. O professor também recebeu o grau de outro graduado anterior e assim sucessivamente. Negando-se a opção religiosa segundo a qual a cadeia se inicia em um ato de concessão divina, é possível supor, contra a hipótese conciliatória do contratualismo, que o poder do capelo surgiu em um ato unilateral de arrogamento simbólico onomatúrgico. O capital financeiro e o poder simbólico institucional são estabelecidos no gesto de divergência que separa o senhor dos escravos, o líder da plebe, o artista ambulante do aldeão gregário, as LGBTs e os clérigos dos heterossexuais laicos.

A primeira pessoa ou grupo a conceder um grau, na hipotética genealogia, precisou ter, consciente ou inconscientemente, duas convicções ou interesses: a de que era dotada, provavelmente por um ato da benevolência divina ou ancestral, do mesmo ou de um grau superior àquele a ser transferido, e a de que o graduando não fora sujeito da mesma graça. Ou seja, o arrogamento original é o gesto de se tornar autor, de arvorar arrogantemente para si, de fazer-se capaz da invenção do signo que representará, enquanto membro do sistema público de significados, a legitimação de um poder cujo principal objetivo é a conservação de si mesmo.

A importância da autoridade

A unilateralidade do arrogamento simbólico original pode ser vista como uma violência, mas normalmente será aceita por ser a reivindicação de um espaço vago na dinâmica do execício político. Se vale a analogia à imunoatividade biológica contra as viroses, não existe resistência imediata à inovação.

A disputa entre o ser e o parecer é mediada pela força de tração dos indivíduos ou grupos cujo poder é legitimado na arena dos significados públicos. Os autores anticapitalistas acusam o acúmulo desigual da riqueza de ser a causa dos males sociais. Porém, a arrogância, a médio prazo, é mais importante para expandir a degradável propriedade privada do que os privilégios da sucessão.

É verdade o que diz o Diário Catarinense? Não é verdade? Sem esquecer o primeiro Wittgenstein, essa pergunta não pode ser respondida. Nela ocorre o cruzamento de duas categorias abstratamente incompatíveis. Verdade e falsidade são atributos que recaem sobre objetos linguísticos, mas o editor do Diário Catarinense não pretende que o jornal seja lido como um repositório de afirmações acerca dos objetos linguísticos. Na função de cunhadora da moeda de Saussure, a autoridade do editor, arrogantemente fundamentada, cola os objetos às palavras, as caras às coroas.

A importância da autoridade, como fundamento epistemológico dos significados, já fora sugerida na França (Teoria da Enunciação – Emille Benveniste), no Reino Unido (Teoria dos Atos de Fala – Searle, e Funcionalismo – Halliday) e na Alemanha (Escola de Frankfurt – Adorno, Habermas).

A explicação evolucionista

Diversos acadêmicos da Universidade Federal de Santa Catarina poderão fornecer reproduções mais ou menos entusiasmadas das principais ideias dessas teorias. Sem muita preocupação em manter fidelidade às fontes, pode-se resumir a pragmática na comunicação à seguinte caricatura. No céu sem pecados da visão clássica – também chamada, pelos linguistas, de semântica –, a linguagem é um assunto razoavelmente simples. As proposições servem para descrever o mundo. Se a descrição corresponde à coisa descrita, então é verdadeira; caso contrário, é falsa.

Independente das complicações que surgem quando se tenta estabelecer um critério para verificar a correspondência entre mundo e linguagem, a visão clássica foi bastante fecunda. Aliada ao Princípio da Composicionalidade de Frege, à Álgebra de Boole e à Máquina de Turing, o paradigma nos deu as linguagens artificiais de programação e, posteriormente, os computadores. Porém, nem tudo estava perfeito. A oposição denuncia a ingenuidade dos clássicos. Os pragmáticos defendem que a principal função da linguagem não é descrever o mundo, mas o modificar. Usam como exemplos as liturgias do casamento e do batismo, os éditos oficiais, as ordens e qualquer manifestação linguística aparentando ser mais do que a simples cópula entre sujeitos e predicados. Os funcionalistas, com um pé na antropologia, dirão, inclusive, que exceto se o exemplo for tirado da cabeça do analista, é improvável encontrar uma manifestação linguística puramente semântica.

Os usuários das línguas não são motivados pelo desejo de copular sujeitos a predicados. Mais provavelmente, a motivação nasce do desejo de copularem entre si. Egoístas, querem modificar o mundo circundante. No ambiente de institucionalização política e litúrgica, a dispersão dos signos torna-se a maneira mais eficaz de causar as transformações.

De modo geral, os rituais de acasalamento e os gestos de agressão entre humanos e outros animais são capazes de dar ao titular da performance a concessão para o coito e a antecipação da vitória. Admitindo-se a explicação evolucionista, o código comum permite a preservação mútua entre os pares. Espera-se acontecer a ameaça de violência (o símbolo) e que ela substitua a violência (a coisa).

Subversão do conservadorismo

Neste que segundo o filósofo alemão Leibnitz (1646-1716) é o melhor dos mundos possíveis, infelizmente o mesmo não se dá entre os animais e os pregos. Ameaçar batê-lo não será suficiente para reverter a tendência de o prego não perfurar espontaneamente a madeira. Por outro lado, se os pares da comunhão simbólica não se comportarem como cabeças de prego, ameaçá-los será suficiente. Não seria bom de qualquer maneira, lembraria Leibnitz, que os pregos fossem capazes de, a todo momento, tagarelarem em protesto contra os gerentes da obra.

O editor ideal destaca igualmente elogios e críticas. O editor real destaca igualmente elogios e críticas, exceto se as críticas atacarem sua capacidade de destacar igualmente elogios e críticas. O editor real está preso ao totalizante mundo darwiniano. A epistemologia do editor real não é contraditória e relativista, é dialética e beligerante. As pautas e as não-pautas do Diário Catarinense nos mostram que o delinquente é exposto ao apedrejamento moral, desde que não pertença ao grupo titular do poder expositor.

Para finalizar, ao mesmo tempo em que a credulidade do público é o motor dogmático que nos puxa do insustentável estado revolucionário para a ataraxia, a difusão dos sistemas de símbolos através da educação emancipatória e poligenética é a contra-força de subversão ao conservadorismo. A multiplicação do gesto íntimo, individual ou coletivo, de arrogamento simbólico que transforma leitores em autores também promove a tão defendida diversidade.

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Filósofo e linguista, Florianópolis, SC