Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

As diferentes batalhas do Rio

Há no cenário da criminalidade fluminense diferentes lógicas que interagem e tornam complexa a análise, mais ainda a síntese que deve ser feita continuamente pelos meios de comunicação. Nas dobras do noticiário, movido a fatos graves e ‘sensacionais’ (na acepção original, de causar sensação, emoção), abrigam-se algumas informações preciosas. Cabe apontá-las aqui para que não sejamos conduzidos, como leitores, ouvintes, telespectadores e internautas, pela lógica necessariamente improvisada do noticiário, embora ancorada em conceitos e preconceitos antigos.


Em primeiro lugar, o que se viu na quinta-feira (25/11) na Vila Cruzeiro foi uma reação da polícia fluminense a uma série de atos de terrorismo praticados no Grande Rio. Não foi uma ação que fizesse parte especificamente de um planejamento estratégico, embora a hipótese de ‘entrar na favela’ esteja sempre no horizonte. Na própria Vila Cruzeiro foram feitas incursões em 2002 e em 2007, sem que o bastião local tenha sido desmontado.


Em segundo lugar, existe agora uma política de segurança pública mais consistente, da qual são expressões mais visíveis as UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora, cujo próprio nome indica uma carga simbólica relevante, uma atenção constante à comunicação com a população, por intermédio da mídia, uma harmonização das diferentes instituições policiais e uma colaboração com forças militares e com o Judiciário. Esse ponto é importante, porque cria um ambiente de respaldo à ação policial, que, segundo as declarações do secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, não tem a finalidade de matar ou ferir, mas não pode deixar de revidar a agressões, produzindo também sua cota de violência.


Em terceiro lugar, nesses momentos de conflito desaparecem do radar as ‘bandas podres’ das polícias e dos poderes Legislativo e Judiciário. Mas é preciso não perdê-las de vista. Ao longo de décadas, tiveram um papel importantíssimo no processo e continuam rendosamente ativas.


Em quarto lugar, e isso passou batido no noticiário de sexta-feira (26), o que está por trás da colaboração do governo federal ‒ que há muito é incapaz de manter controle sobre a entrada de armas militares e drogas no país ‒ com o governo do estado do Rio tem nomes e datas: Copa do Mundo de 2014 e Olimpíada de 2016. Trata-se de dois grandes eventos de massa que têm dimensões negociais (nos dois sentidos) e políticas autoevidentes.


Discurso abandonado


Em quinto lugar, quem imagina que o governador Sérgio Cabral Filho comanda a política de segurança pública de caso pensado deve ter em mente que ele fez campanha, em 2006, prometendo que a ação policial no Rio não seria mais baseada em incursões de ‘caveirões’. Nos últimos dias de dezembro daquele ano, entretanto, bandidos puseram fogo num ônibus interestadual sem deixar que os passageiros saíssem antes. Houve numerosas vítimas, e uma delas foi a política de segurança que estava na cabeça e no discurso de Cabral Filho.


Ele começou 2007 com um discurso guerreiro. Hoje, aos ‘caveirões’ se somam blindados da Marinha. Isso é dito aqui sem subestimar o papel das Forças Armadas, dos ‘caveirões’ (às vezes manipulados por grupos criminosos) e de forças especiais de polícia, como o Bope. O poder de intimidação das forças públicas que investiram contra a Vila Cruzeiro em 25/11 fez a diferença (isso depõe a favor do uso de blindados e de outros meios capazes de promover a dissuasão). Em 2007, a incursão policial foi feita por 1.500 homens, provocou 19 mortes e não permitiu o controle do ‘território’ pelo Estado. Agora, os bandidos fugiram levando suas armas, não conseguiram responder ao revide policial-militar.


Cobertor curto


Em sexto lugar, deve-se levar em conta que os efetivos policiais do Rio de Janeiro são insuficientes para promover um patrulhamento adequado de áreas conquistadas ao tráfico. A relação ideal, no caso, é de um policial para cem habitantes. Na área das favelas da Vila Cruzeiro e do Alemão isso representaria cinco mil homens (população das favelas e seu entorno: 500 mil pessoas). Levar em conta que a polícia trabalha em turnos de oito horas e que sempre há 8% do efetivo fora de serviço (férias e licenças médicas).


É muito mais do que a polícia fluminense pode enviar para esses locais, admitindo-se que haja de fato a manutenção do ‘território’ da Vila Cruzeiro e a ‘conquista’ do Alemão.


Milícias


Em sétimo lugar, não se deve subestimar o papel das milícias na conflagração que tomou conta do Rio de Janeiro. Elas disputaram com o tráfico e ganharam controle territorial em áreas importantes. Na Folha de S.Paulo, à margem do noticiário (ou seja, na página 3), o sociólogo Claudio Beato, de Minas Gerais, escreve, sob o título ‘Os protagonistas no Rio são as milícias’: a etapa marcada pelo domínio territorial ‒ a ferro, fogo e corrupção, acrescente-se ‒ de Comando Vermelho, Amigos dos Amigos e Terceiro Comando é um arranjo que se desmorona; ‘seus protagonistas encontram-se crescentemente acuados: de um lado, por estratégias do governo estadual que são bastante distintas do padrão vigente; por outro, temos emergência de grupos mais voltados para uma lógica empresarial e com padrões de eficiência criminal mais elevados.’


Em oitavo lugar, devem ser valorizadas as palavras de José Mariano Beltrame quando diz que a política de segurança não visa ao confronto (embora sob certas circunstâncias não possa evitá-lo), e que a repressão não resolverá os problemas. Ao Globo, que glorificou a ‘guerra’ com uma manchete patética sobre ‘Dia D’, ele declarou: ‘Ainda não ganhamos nada. Não há nenhum motivo para se comemorar’. Em seguida, alude à vindoura realização da Copa e da Olimpíada. Adiante: ‘Não trabalhamos dentro de uma visão de matar. A nossa ideia é combater as armas e, repito, entregar o território aos moradores.’


Ações e omissões


Em nono lugar, não se pode perder de vista que o governo federal, ao prestar ajuda e solidariedade, amplamente noticiadas, ao governo fluminense, de certa forma consegue esconder sua dificuldade para manter sob controle (leia-se reprimir e prevenir sem a ilusão de eliminar) a entrada de armas de guerra e das drogas que, comercializadas, ajudam a pagar tais armas. (Há outras modalidades criminosas que produzem receita.) Isso já foi dito acima mas deve ser repisado, porque é um ponto central de toda a discussão, embora fugidio ‒ não é fato, é ‘não-fato’.


Em décimo lugar, no capítulo da saúde pública, anote-se que a concentração de vítimas da ‘guerra’ em hospitais desloca procedimentos de rotina, ainda que urgentes, e a existência de áreas conflagradas dificulta o enfrentamento de problemas como a dengue, que pode matar mais gente ‒ gente comum, que não pertence necessariamente a nenhum dos lados, o do bem e o do mal ‒ do que os ‘combates’.


Tropas do imaginário coletivo


Last but not least, deve ser acompanhada com especial atenção a atuação dos meios de comunicação, que fazem parte da ‘guerra’. Há uma controvérsia a respeito do papel da transmissão dos acontecimentos na Vila Cruzeiro, em especial a trajetória de blindados, feita por helicóptero da TV Globo dotado de equipamento de filmagem com zoom poderosíssimo, que lhe permite ficar fora do alcance das armas e mostrar com detalhes a cena em terra.


Alguns veículos, como a Folha e a Veja, contribuíram para o clima de terror ao divulgar ameaças de ataques no fim de semana na Zona Sul carioca, registrou o bem-informado blogue Repórter de Crime, do jornalista Jorge Antonio Barros. A interlocução de emissoras de rádio e televisão com pessoas que estudam a questão de segurança é positiva, mas algumas vezes marcada por pautas calcadas em visões estreitas e preconceituosas. Como a conduzir o entrevistado a confirmar a ‘pensata’ formulada na redação.


Entre os meios de comunicação se inclui o cinema, que exibiu para mais de 10 milhões de espectadores o filme Tropa de Elite 2. O filme deixou para trás o maniqueísmo sensacionalista e sanguinolento do primeiro da série e reforça a simpatia da população pela polícia (para o que contribui o recurso à narrativa em off), ingrediente indispensável à realização de uma política de segurança pública. Tropa de Elite 2 termina, porém, com a alusão a um indiscernível ‘sistema’, vagamente identificado aos poderes da República, em sobrevoo sobre a Praça dos Três Poderes, em Brasília.


A população do Rio tem pela frente desafios políticos bem concretos que não podem ser subsumidos pelas noções vagas e impressionistas de ‘guerra’ e ‘sistema’. Afinal, tudo isso tem a ver com políticas públicas a cargo de autoridades constituídas, que acabaram de passar novamente pelas urnas.

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Jornalista