Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

As lições de Pirituba para a observação da mídia

O deprimente episódio envolvendo o prefeito da maior cidade do país e um paulistano, na recente inauguração de um posto de saúde em Pirituba, constitui um exemplo emblemático do histórico comportamento autoritário e conservador de parte de nossa elite política. Apesar disso, a sua cobertura midiática revela um conjunto precioso de lições e permite observações importantes sobre a grande mídia, em particular, da televisão.

Numerosas análises já foram feitas sobre o episódio e sua cobertura pela mídia, inclusive neste Observatório. Mesmo assim gostaria de chamar a atenção para alguns pontos.

Primeiro, é interessante observar o leque de adjetivos que foi utilizado nas reportagens para identificar e qualificar o senhor Kaiser Celestino da Silva – o ‘vagabundo’ – segundo os berros do prefeito Gilberto Kassab. Na mídia ele foi desde ‘um homem’, ‘morador’, ‘manifestante’, ‘usuário da rede pública de saúde’, ‘contribuinte’, ‘cidadão’ até ‘microempresário’ e ‘empresário’. Por que uma narrativa comum é tão difícil para a grande mídia quando ela se refere ao cidadão simples, isto é, a um anônimo membro da imensa maioria da população?

Em segundo lugar, em tempos de jornalismo editorializado e da partidarização com que boa parte da cobertura da política e dos políticos vem sendo feita, é curioso observar como não se estenderam ao PFL – partido do prefeito – as inevitáveis conotações negativas do episódio. Teria sido semelhante a esse o comportamento da grande mídia se o prefeito fosse filiado ao partido do presidente Lula?

Absurdo óbvio

A longa matéria de 2 minutos e 32 segundos do Jornal Nacional na noite do episódio de Pirituba (segunda-feira, 5/2) ilustra ainda um terceiro aspecto, totalmente distinto. Diz respeito às dificuldades metodológicas que são enfrentadas por aqueles que se arriscam a fazer a análise do conteúdo da televisão.

Como encontrar critérios e instrumentos adequados para a correta análise do telejornalismo, isto é, de textos + imagens?

A chamada da matéria no JN foi ‘Prefeito de São Paulo se descontrola durante inauguração de posto de saúde’. O corpo da matéria mostrava a expulsão do senhor Kaiser da Silva do posto de saúde por um transtornado prefeito que gritava de dedo em riste ‘vagabundo, vagabundo’, e que logo depois, incrivelmente, conseguia dizer ao repórter: ‘Não agredi ninguém fisicamente. Só pedi a ele que se retirasse’.

A matéria repercutiu o episódio com representantes dos dois principais partidos da Câmara Municipal – PT e PSDB – e ouviu também um representante do PFL. Só faltou mencionar que o filho menor de Kaiser, de apenas 7 anos, estava com ele no local do incidente.

Ao final da matéria, o âncora Bonner leu a seguinte frase:

‘A Secretaria de Negócios Jurídicos da prefeitura anunciou que vai estudar que medidas tomar contra o cidadão Kaiser Celestino da Silva’.

Quem ler essa última frase sem ter visto as imagens do telejornal não poderá avaliar a indisfarçável ironia nela contida pelo absurdo óbvio da situação: a possibilidade de um cidadão comum agredido ser processado por seu poderoso agressor (autoridade política maior da cidade). Esse ‘sentido’ (significado) da frase foi explicitado na entonação com que a leitura foi feita, na expressão facial e na posição corporal de Bonner.

Episódio lamentável

Como captar essa riqueza de significação que a imagem expressa e que uma simples frase escrita dificilmente teria?

Comentando o fato com um colega pesquisador ele sugeriu: ‘Faça o seu comentário e coloque um link para o JN. Quem ler a sua observação poderá verificar ele próprio o `sentido´ que o Bonner quis dar à frase’. Não deixa de ser uma possibilidade nestes tempos de internet quando se pode acessar o portal da Globo e lá conferir as edições do Jornal Nacional. [Ver aqui a edição de 5/2/2007 do JN]

Mas a questão metodológica é outra. Qual instrumento analítico permite captar o ‘sentido’ da mensagem (imagem + texto) de tal forma que em situações semelhantes ele possa ser utilizado pelo pesquisador com o mesmo resultado e, dessa forma, informar ‘corretamente’ a análise?

Além disso, existiria alguma garantia de que a leitura deste ‘sentido’ seria a mesma para todos aqueles que vissem o telejornal? Pergunto e respondo: não. Não há qualquer garantia. As mensagens da televisão (imagens + textos), apesar de um ‘sentido’ hegemônico, trazem sempre em si a possibilidade de leituras polissêmicas.

Como se vê, um episódio lamentável de todos os pontos de vista serve ao menos para que dele se tirem algumas lições preciosas e observações importantes.

Triste consolo.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: crise política e poder no Brasil (Editora Fundação Perseu Abramo, 2006)