Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

As listas negras vão acabar

A Associação Nacional dos Jornais (ANJ) anunciou na terça-feira (15/2), em São Paulo, que vai lançar a Rede em Defesa da Liberdade de Imprensa "com o objetivo de combater qualquer tipo de ameaça ao livre exercício de jornalismo". A rede será um "instrumento de permanente vigilância contra práticas autoritárias" no Brasil e contará com o apoio da prestigiosa Unesco.


Estamos ainda em fevereiro, o ano real tem apenas uma semana, mas esta é uma candidata ao título de Notícia do Ano. Se os jornais brasileiros efetivamente se empenharem no compromisso de combater as ameaças à liberdade de manifestação, a conseqüência imediata será a abolição das nefastas Listas Negras vigentes tanto em nossa Grande Imprensa como na Pequena Imprensa.


O poder político em nosso país – pelo menos até agora – não se apresenta como adversário institucional do jornalismo livre, ainda que por vezes esqueça certas exigências de uma democracia plena e, em outras, deixa-se seduzir pela malandragem caipira. Os desvios duram pouco, nosso poder político é maneiroso, logo recompõe-se – imperioso salvar as aparências.


O poder econômico, por sua vez, não intimida – a mídia é sua parceira, faz parte do mesmo sistema; entendem-se e convivem.


O poder Judiciário ainda não conseguiu controlar a sua banda podre que em certas ocasiões tira a toga e fantasia-se de tesoura (geralmente para proteger cupinchas que deram um mau passo). Mas as instâncias superiores cerram fileiras em torno da supremacia do direito de informar sobre os demais direitos.


Nomes embargados


Paradoxalmente, é na própria imprensa onde se localiza um foco censório permanente, renitente, indelével e contumaz. Sintoma ou manifestação são as vergonhosas Listas Negras, tradição quase bissecular e ainda vigente.


Com esse ou outros nomes menos ostensivos, ainda funcionam nas principais redações do país as "Listas do Não Pode" ou "Esse Não". São virtuais, perigoso imprimi-las, melhor que sejam memorizadas pelos encarregados de zelar pela satisfação daqueles que as mantêm.


As Listas Negras são a versão moderna das Listas dos Autos da Fé inquisitoriais, nas quais os que não eram condenados à morte ficavam indelevelmente maculados e marginalizados. As Listas Negras nos órgãos de imprensa brasileiros não matam nem maculam, mas igualmente letais porque condenam o cidadão ao desaparecimento, à não-existência.


Cada veículo tem o seu rol de não-mencionáveis, raramente idênticos: cada chefão ou chefinho tem a sua relação particular de jurados ao olvido – políticos que dizem o que pensam, intelectuais que ousam mostrar que o rei (ou a rainha) está nu, e mesmo jornalistas que não se conformam com as regras deste jogo pouco honrado.


Pode-se alegar que o fenômeno das Listas Negras é restrito e que os nomes embargados não chegam a um par de dúzias por veículo. Hipocrisia. O problema não está no número dos cidadãos vetados pelo conjunto de veículos, mas no número dos profissionais que convivem com este mecanismo de vetos, curvam-se e o aceitam, resignados.


E aqui estamos diante de uma cifra nada desprezível que, pela importância dos parceiros na hierarquia do veículo, contamina a credibilidade do sistema informativo como um todo.


Projeto-âncora


Um jornalista de qualquer editoria que sabe estar condicionado pelos caprichos do dono do veículo (ou qualquer um de seus delegados) deixa automaticamente de fazer parte de um sistema livre. Em algum ponto do seu instinto profissional instala-se uma dúvida que coloca sob suspeita um conjunto de valores e princípios que deveriam estar lacrados e inquestionáveis.


A existência das Listas Negras não é formalmente o grande problema da nossa imprensa – entre outras razões porque são mantidas em segredo e seus efeitos impossíveis de avaliar –, mas é a acionadora de um ceticismo altamente contagioso que pode começar, na esfera das empatias ou antipatias do jornalista com o objeto da sua matéria, com questões na aparência inofensivas e, fatalmente, se estenderá a discriminações, deformações e manipulações mais graves.


Em matéria de ameaças à liberdade não existem hierarquias: todas são igualmente importantes, todas igualmente perigosas.


Ao comprometer-se numa cerimônia pública e amplamente divulgada com o combate às ameaças ao livre exercício do jornalismo, a ANJ declara-se preparada para identificar, enfrentar e erradicar os obstáculos, coações e entraves que podem prejudicar a imagem e a eficácia tanto dos veículos associados como da instituição jornalística.


A parceria com a Unesco amarra esta iniciativa da ANJ ao histórico projeto-âncora da subsidiária das Nações Unidas, o "Free Flow of Information" (Livre Curso da Informação). Este é um aval que não pode ser esquecido nem desperdiçado por nenhuma das partes, sob pena de converter o ideal do livre exercício do jornalismo num mero exercício de promoção e marketing.