Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

As metáforas desconfortáveis do futebol

Nos dias seguintes à derrota do Brasil, no que consideramos parte essencial da cultura nacional, é praticamente impossível não se falar de futebol.

Discutir o que aconteceu no gramado – com um time apático, indiferente ao sofrimento de sua torcida, negligente como foi Roberto Carlos no único gol da França – talvez ajude de alguma maneira a responder à pergunta: ‘O que aconteceu?’. Ou o que acontece neste país, onde a derrota do sábado (1º/7) pode ter sido apenas reflexo da decepção e frustração que parecem crescer a cada dia, no dia-a-dia da população.

A imprensa esportiva, é preciso reconhecer, tem estilo próprio, na maioria das vezes marcado pela sumariedade e o lugar comum. O que significa na terminologia do jornalismo esportivo a expressão ‘predestinado’? Talvez não mais que um atleta em determinada posição, num determinado momento, para fazer exatamente o que o destino determina. Sem mais. Nem menos.

Se as coisas são como prevê a filosofia que embasa o jornalismo esportivo, então a derrota do sábado seria um fato inevitável, uma peça definida pelo destino, contra a qual os humanos não têm nenhuma condição de se opor.

Se a questão for posta de outra forma, no entanto, as coisas ficam diferentes.

Um ‘predestinado’ deixaria de existir e em seu lugar teríamos ciência e arte, talento resultado de uma postura lúdica frente à bola, redonda com o Sol, uma esfera moldada pela gravidade. Numa esfera, os diferentes pontos da superfície estão todos à mesma distância do centro, por isso a Terra, a Lua, o Sol e os planetas todos são esferas e não triângulos, ou quadrados. Nem mesmo ‘quadrados mágicos’.

Ginga de corpo

Na edição dos jornais de domingo (2), refletindo a amargura da derrota, os textos dos jornais traziam informações que deveriam ter sido publicadas antes do início da Copa do Mundo – afinal, o técnico Parreira teve um longo tempo para preparar sua equipe.

O caderno de esporte da Folha de S. Paulo revela que a direção da CBF vê Parreira como um treinador sem comando, visto com desconfiança por parte de sua própria equipe e, além disso, um homem fechado ao diálogo.

Como em outras instâncias, os bastidores do futebol também têm seus submundos. Mas uma das funções do bom jornalismo é exatamente a de visitar esses universos camuflados e trazer seus conteúdos às páginas das edições. O jornalismo esportivo, no entanto, com as exceções que acompanham todas as regras, em lugar da investigação criteriosa restringe-se à sumariedade, à concepção do ‘predestinado’.

Jogadores de futebol, é verdade, quase sempre não têm muito o que dizer. Mas o que se espera deles, o que fascina o estádio, não é a oratória. É o tiro certeiro, a curva da bola como numa órbita elíptica, reproduzindo o vôo da Terra em torno do Sol. Ciência e arte moldados com a ginga do corpo, com a habilidade dos pés.

Jornalistas são diferentes. Devem saber pensar e escrever o resultado de suas elaborações, oferecendo aos leitores referências para suas próprias considerações.

‘Foras-da-lei’

Boa parte do jornalismo esportivo sobrevive pela bajulação, especialmente envolvendo a ‘seleção’. Com isso, são inevitáveis os constrangimentos de um telespectador interessado exclusivamente em acompanhar a partida. Uma legião, aparentemente crescente, de apaixonados por futebol prefere acompanhar as partidas sem áudio, dependendo de quem seja o locutor.

Informações equivocadas, desencontradas – afinal, as imagens estão ali, aos olhos do telespectador – de mau gosto ou por pura bajulação. Por que não se falou das dificuldades de Parreira com seus liderados antes do início da competição?

Um técnico de futebol – como um olimpiano, alguém com poderes divinos de definir os eleitos – deve abrir mão de prerrogativas formalmente asseguradas às pessoas comuns. Deve aceitar as críticas e, no caso específico de Parreira, não foram poucos os que o acusaram de ser um homem medroso, sem a audácia que deve caracterizar um competidor de verdade.

Parreira, ao que tudo indica, cedeu às pressões de bastidores para escalar atletas como Cafu, Roberto Carlos, Emerson e outros veteranos que já deram suas contribuições ao futebol e por isso mesmo deveriam ceder espaço às novas gerações.

Mas essas histórias não estão contadas como deveriam. Apareceram desencontradas, confusas e diluídas em acusações gerais, ingredientes que sobrevivem no jornalismo esportivo.

A CBF – e sua história é a demonstração disso – é quase um poder paralelo, se for considerada a importância do futebol na cultura nacional. De lá emanam ordens consistentes com determinado interesses de poder. Exatamente o que temos visto no Congresso Nacional: decisões, iniciativas e comportamentos que interessam a um sistema de poder – neste caso, dos próprios políticos.

Na mesma edição que traz o frustrante relato da derrota O Estado de S.Paulo publica, na editoria de política, que um em cada 10 deputados é um ‘fora-da-lei’, ao menos enquanto detentores ilegais de concessões de rádio e TV [ver aqui a íntegra da matéria]. Se incluirmos outros critérios certamente que o número de ‘foras-da-lei’ tende a aumentar. E lá estão todos os ‘coronéis’ da vida política nacional.

Ceticismo e descrença

Roberto Carlos, o atleta, preferiu cuidar de suas meias em lugar de marcar o atacante francês que balançou as redes do Brasil. Mas deputados e senadores fazem a mesma coisa. Cuidam do interesse pessoal, ainda que contrariem a Constituição que muitos ajudaram a escrever.

Entre a negligência e omissão do atleta e a patifaria velhaca de políticos praticamente não há diferença de conteúdo. A diferença é de exibição. Os jogadores do Brasil estavam presentes em todas as casas, nas praças públicas, nos bares lotados, nos prostíbulos e nos pátios das indústrias que momentaneamente paralisaram a produção para ver o Brasil em campo.

As pessoas não esperavam necessariamente a vitória – ainda que Parreira, de forma surpreende, tenha revelado aos jornais de domingo que não estava preparado para perder; afinal, se fosse mesmo um ‘predestinado’ ao título o Brasil nem precisaria jogar.

As pessoas queriam ciência e arte, refinamento com a bola, compensação para o estigma de nossa incompetência em vencer a miséria, amenizar a violência e abrir oportunidades promissoras de cidadania.

Não viram nada disso. Já estavam céticas quanto aos políticos e agora estão descrentes também com os deuses do futebol.

Nada animador.