Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

As palavras e as coisas

Muito se tem falado no protagonismo que qualquer cidadão pode agora desfrutar, graças à internet. Sabemos que a comunicação de poucos para muitos, que caracterizou todas as mídias até o advento da grande rede, coabita agora com modalidades novas, embora o que se chama de democratização ainda necessite de qualificação sociológica, porque na internet, seja por diferença de renda e posses, seja por desnível educacional, uns são mais iguais do que outros.


Recitação, teatro, sermão, manuscrito, livro, jornal, cinema, rádio e televisão são formatos que emanam de poucos para muitos, ou nem tantos. Mas a palavra falada ‒ e bem antes do advento do telefone, fixo ou móvel ‒ também arranjava um jeito de se espalhar, sem compromisso com a veracidade, o bom senso, a lucidez, a precisão do raciocínio, diga-se a bem da verdade.


É o que ilustra Nikolai Gógol nesta passagem de Almas Mortas, livro publicado há 178 anos (aqui, na tradução de Tatiana Belinky):




‘Toda gente sabia muito bem que Nozdriov era um consumadíssimo mentiroso, e ninguém se espantava ouvindo dele os absurdos mais incríveis; mas o mortal, bem, é até difícil entender como é feito este mortal: por mais estúpida que seja a novidade, basta apenas que ela seja novidade para que ele a transmita sem falta a outro mortal, ainda que seja só para dizer: ‘Veja que espécie de boatos andam soltando por aí!’, e o outro mortal terá muito prazer em prestar-lhe ouvidos, nem que seja só para depois exclamar: ‘Mas isto não passa de mentira deslavada que não merece atenção alguma!’ E a estória não deixará de circular sem falta pela cidade inteira, e todos os mortais, quantos quer que sejam, a comentarão até fartar-se e depois admitirão que tudo isso não merece atenção e não é digno de comentários’.


Trocando a palavra falada pela escrita, e boataria por catilinárias e manifestações de exaltada indignação, tão encontradiças nestas paragens digitais, cabem aqui palavras de Ramalho Ortigão, para quem a retórica é ‘a arte de alterar, mediante o exagero das palavras, a justa proporção das coisas’.