Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Assessorias e jornalistas, ainda uma relação controversa

As relações entre a imprensa e as assessorias de imprensa sempre foram muito controversas. Jornalistas de redações muitas vezes se queixam do assédio de assessores mais afoitos, enquanto assessores consideram alguns jornalistas arrogantes e pouco receptivos a um relacionamento profissional. A tendência à integração entre os departamentos de comunicação e marketing em grandes empresas, colocando jornalistas e profissionais de relações públicas sob o comando de ‘marqueteiros’, é um fator complicador desse quadro, na rotina do relacionamento entre agências de comunicação corporativa e a imprensa.


Mas nada se compara ao trabalho da gestão de crise, quando as assessorias de comunicação se juntam a consultorias jurídicas e empresas especializadas em investigação, como a Kroll Associates, no trabalho de preservar a reputação de seus clientes. Quem, como este observador, já atuou em crises de grandes empresas, sabe que a principal função dos profissionais contratados é esclarecer e isentar a empresa envolvida, evitando longas seqüências de notícias negativas, ou tentar ‘blindá-la’, mantendo-a longe do noticiário sobre escândalos, por exemplo.


É o que faz há três meses o núcleo de gestão de crise da Gol, cujo fundador foi citado no escândalo que levou à renúncia o ex-senador e ex-governador do Distrito Federal Joaquim Roriz. O mesmo trabalho foi realizado pela Schincariol, no episódio de junho de 2005, em que seus diretores foram presos, e também agora, durante o processo contra o senador Renan Calheiros, no qual a empresa é apontada como beneficiária de gestões do presidente do Senado para reduzir suas dívidas junto ao INSS.


Em tempo recorde


O trabalho de gestão de crises exige profissionais com muita experiência e, principalmente, um rigoroso código de ética. Apesar do episódio ocorrido em 2004, quando foi acusada de promover escutas ilegais na disputa entre o Grupo Opportunity e a Telecom Itália, a Kroll é conhecida por estabelecer limites legais antes de firmar seus contratos. Crises mal administradas, ou conduzidas pelo critério da ‘esperteza’, muitas vezes retornam algum tempo depois, com efeitos devastadores sobre a reputação da empresa ou instituição envolvida.


A rotina mostra que, na verdade, o que ocorre mais freqüentemente é a manipulação pura e simples do noticiário, operações de dissimulação baseadas em trocas de favores e a mistura de interesses que acaba influenciando as redações em benefício do cliente em crise. A julgar pelo que afirma um grupo de profissionais da TV Aldeia, de Rio Branco, no Acre, é essa prática que ensina a jornalista Solange Ramos, diretora da Rio Press Assessoria Empresarial.


Na quinta-feira (4/10), ao proferir um curso de assessoria de imprensa que costuma oferecer Brasil afora a preços entre 15 reais e 80 reais a cabeça, Solange explicou aos jornalistas e estudantes presentes como funcionam os bastidores de um trabalho como esse.


Solange Ramos usou como exemplo de gestão de crise o caso do ator Marcello Anthony, da TV Globo, que em 17 de abril de 2004 foi preso em flagrante em Porto Alegre quando comprava maconha de um traficante que estava sendo observado pela polícia. Conforme explicou a assessora de imprensa, o episódio exigiu a reunião do comitê de crise da Globo, porque o ator estava escalado para ser o mocinho na novela Senhora do Destino, a estrear no mês seguinte. Um mocinho acusado de tráfico pelo Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul seria um desastre para o enorme investimento que a emissora havia feito.


Segundo o depoimento de pelo menos seis jornalistas presentes à palestra, que postaram voluntariamente textos no blog do jornalista Altino Machado, Solange Ramos quebrou o contrato de sigilo que normalmente se faz nos comitês de crise e revelou, em detalhes, a operação montada para resguardar e recuperar a reputação do ator e preservar a imagem da Rede Globo.


A estratégia escolhida foi a de praxe: redimensionar a acusação – o que foi feito pela assessoria jurídica da emissora, ao desqualificar a acusação de traficante para a de usuário eventual, apesar de o ator ter entregue um cheque de 400 reais ao traficante – e inundar a imprensa com notícias positivas sobre ele. A alternativa apontada pelos gestores de crise foi induzi-lo a adotar uma criança. Segundo o relato dos presentes, Solange explicou que a ‘sacada genial foi do próprio Marcello Anthony, que resolveu adotar um menino já grande e negro. Até que bonitinho, o negrinho’, teria dito a assessora.


A assessora não poupou detalhes. Contou, segundo os jornalistas da TV Aldeia, que o então titular da Vara da Criança e da Juventude do Rio, o agora desembargador Siro Darlan, foi chamado para resolver o problema da urgência: como conseguir uma criança negra para adoção em tempo recorde? Segundo Solange Ramos, Darlan teria pedido, em troca de autorizar a adoção, uma aparição no programa Domingão do Faustão para divulgar seu mais recente livro.


‘Que paizão!’


A assessora de imprensa certamente quis impressionar a platéia com alguns exageros. Quando foi preso em Porto Alegre, o ator Marcello Anthony já havia requerido a paternidade do menino Francisco, que havia sido adotado em setembro de 2003. Sua segunda filha, Stephanie, foi adotada em outubro de 2005. O que se pode comprovar do que disse Solange Ramos à sua platéia em Rio Branco é que ele teve sua pena de prisão comutada para prestação de serviços comunitários. Boa parte desses serviços ele prestou em projetos de iniciativa do juiz Siro Darlan, comparecendo a palestras e até mesmo a um casamento coletivo numa favela do Rio, junto com Darlan e outras celebridades.


O juiz Siro Darlan teve sua primeira aparição no Domingão do Faustão, para divulgar seu livro autobiográfico, no dia 24 de abril, apenas uma semana depois da detenção do ator em Porto Alegre. Voltou ao programa em 27 de junho de 2004, quando homenageou Marcello Anthony publicamente por sua decisão de adotar um menino negro. No dia 12 de agosto, Marcello Anthony participou de uma conferência no Juizado da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro sobre o tema ‘Graças e desgraças da paternidade’. Também estava presente o juiz Siro Darlan, segundo noticiou o site do Globo.


Se aconteceu como descreve Solange Ramos, no relatos dos jornalistas que assistiram sua palestra, o trabalho de gestão de crise no caso Marcello Anthony foi um sucesso absoluto. A novela Senhora do Destino foi recordista do Ibope no período do ano 2000 até 2005 e chegou a ser tema de capa da revista Veja (edição de 9/2/2005). Entre o final de abril e até o final da novela, o ator brilhou no noticiário, aparecendo como exemplo de paternidade e responsabilidade em praticamente todos os sites e revistas de fofocas.


A coleção culmina com uma notícia na revista Quem Acontece, da Editora Globo, edição 206, agosto de 2004. Sob o título ‘Que paizão!’, a revista conta que…




‘…o ator Marcello Anthony fez as mulheres praticamente babarem durante a palestra sobre pais adotivos que fez na 1ª Vara da Infância e da Juventude, no Rio, quinta-feira, 12. O encontro, que rendeu depoimentos emocionados, foi movido a tietagem. O galã tirou fotos, distribuiu autógrafos e beijos para os fãs e, claro, falou sobre o filho, Francisco, que adotou com a mulher, Mônica Torres. Até o juiz Siro Darlan, que fez o convite, rendeu-se aos encantos do rapaz. `Marcello é uma pessoa muito querida. Estimular a adoção como ele está fazendo é muito importante´’.


Questão ética


O juiz Darlan está carregado de razão. Faz mais sentido a Justiça transformar em serviços comunitários a eventual acusação por uso de drogas, especialmente no caso de uma celebridade, que sempre pode contribuir com melhor resultado em campanhas meritórias. Também não se deve dizer que o ator tenha transformado a adoção de um menino negro em ação de ‘marketing’ pessoal. Ninguém tem o direito de duvidar de suas melhores intenções e de seu amor paterno.


Da mesma forma, não é possível adivinhar quanto da palestra de Solange Ramos retrata a realidade das relações entre assessorias e a imprensa, especialmente na gestão de crises, já que o trabalho bem-sucedido nesse caso resulta em evitar a publicação de notícias negativas sobre o personagem ou instituição que contrata a assessoria. Por outro lado, os arroubos verbais da diretora da Rio Press podem ter sido apenas fruto de puro boquirrotismo.


De qualquer modo, o universo caótico da web já dá ampla repercussão à desastrada ‘aula’ de gestão de crise. O texto postado pelos jornalistas da TV Aldeia no blog de Altino Machado foi reproduzido no site do Partido Comunista do Brasil e multiplicado em outros blogs durante o final de semana. Na manhã de segunda-feira (8/10), a sucursal do Estado de S.Paulo no Rio estava tentando confirmar as informações.


Convém lembrar que o código de ética elaborado pela Abracom – Associação Brasileira das Agências de Comunicação Corporativa –, para o qual este observador ofereceu uma modesta contribuição na época de sua redação, recomenda, na relação com clientes, ‘não aceitar contratos que firam a dignidade das agências de comunicação e se contraponham aos princípios deste código’. Além disso, afirma que os assessores devem ‘guardar sigilo das informações que forem confiadas às agências em função do trabalho e não revelar assuntos que possam ser lesivos ao seu cliente, a não ser quando se tratar de delitos’.


A questão ética da quebra de sigilo no episódio relatado pelos jornalistas do Acre concerne à agência Rio Press e a quem a contrata, e talvez diga respeito também à Abracom. O comportamento do desembargador Siro Darlan, conforme denunciado por Solange Ramos, é problema do Judiciário. O que resta para ser debatido neste Observatório é o tema da vulnerabilidade das redações à sedução ou ao trabalho agressivo de algumas assessorias. Como se afirmou no início deste artigo, trata-se de uma relação controversa, e episódios como os relatados pelos jornalistas da TV Aldeia não ajudam nenhuma das partes.

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Jornalista