Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Até onde vai o disfarce dos jornalistas?

Noite de segunda-feira, horário nobre da telinha: mais uma vez, a reportagem de abertura do principal telejornal brasileiro traz os rostos deformados e enquadramentos inclinados das já familiares câmeras escondidas. Os alvos do dia são falsos dentistas que andam cometendo barbaridades em consultórios clandestinos de Santa Catarina. Uma das vítimas perdeu mais da metade das raízes dentárias. Outra foi extrair um dente, mas acabou com apenas dois na boca para contar história.

História triste, pauta boa. Se a simples imagem de um dentista e sua broca já causa desconforto em muita gente, um charlatão desperta indignação. Com a habitual competência na edição, o telejornal usou o recurso da câmera escondida para transformar uma reportagem convencional em denúncia com forte apelo visual. A acusação contra os dentistas era grave, estava amparada pelo Conselho Regional de Odontologia local e foi apresentada num formato envolvente. Ficou difícil para o telespectador pescar um detalhe sutil nessa história: os jornalistas – assim como os falsos dentistas – também mentiram na hora da consulta.

‘O disfarce era a única forma de comprovar uma acusação de interesse público’, dirão alguns. Será mesmo? A própria notícia desmente o raciocínio, ao informar que ‘em Santa Catarina, o Conselho Regional de Odontologia identificou 200 pessoas exercendo a profissão de dentista sem ter passado por uma universidade. O Conselho fotografou os consultórios clandestinos. A maioria não tem as mínimas condições de higiene’. Material para uma reportagem convencional já havia; usar a câmera escondida foi uma opção estética – necessária apenas para espetacularizar a notícia. Afinal, jornalismo investigativo de verdade exige tempo, verba, dedicação e nem sempre rende boas imagens. Um falso dentista e sua broca valem mais do que mil palavras.

Pauta escondida

O curioso é que, às vezes, a opção estética acaba indo diretamente contra o interesse público: se o flagrante era mesmo necessário para consolidar a denúncia, como argumentam os defensores da câmera escondida, por que então ele foi produzido por uma empresa privada? A polícia e o Ministério Público poderiam ter feito as mesmas imagens com autorização judicial, tornando-as provas lícitas num eventual processo contra os falsos dentistas. Mas isso não dá Ibope. No artigo ‘Jornalista não é James Bond’, publicado originalmente no site Comunique-se, o jornalista Luiz Carlos Bordoni chama a atenção para essa distorção:

‘Os jornalistas falam em liberdade de expressão, só não sabem que esta, sem a liberdade de pensamento, resulta em sérias distorções, entre as quais a discriminação, o pré-conceito, o pré-juízo. Fariseus da Nova Ordem, eles condenam a censura, mas são, eles próprios, os censores já a partir da elaboração da pauta, onde prevalece o fato que dê audiência e não o que seja de interesse público.’

Mesmo sem valor jurídico, não é fácil criticar reportagens com câmeras escondidas; afinal, elas já ajudaram a desmoralizar dezenas de policiais, médicos, advogados e políticos envolvidos em irregularidades. Essas contribuições, inegáveis e palpáveis, ajudam a encobrir o aspecto mais frágil da questão, inacessível ao espectador: quem – e com que motivações – determina o que é ou não ‘de interesse público’ num telejornal.

O problema é que chefes de reportagem, editores e repórteres estão a anos-luz de controlar esse poder. No texto ‘Que tipo de jornalista é mais jornalista?’, publicado no Observatório da Imprensa, o jornalista Flavio de Mattos expõe essa questão e sugere que assessores de imprensa e repórteres têm o mesmo (baixo) grau de autonomia.

‘Costumamos ter uma visão um pouco romântica de nossa profissão e gostamos de acreditar que somos sempre centro e motor dessa grande engrenagem que gera notícias. Somos uma peça, algumas vezes das mais descartáveis’ (…) Na assessoria de imprensa, o interesse é explícito: apresentar o ponto de vista do assessorado. (…) Já na grande imprensa, sujeita aos mais diversos tipos de pressão, os interesses estão escamoteados do leitor’.

Como falsos dentistas

A opinião pública parece estar disposta a delegar aos jornalistas a responsabilidade de usar um expediente policial – mentir para obter uma prova – sem se dar conta de que está entregando a arma aos proprietários dos veículos. E, no fim das contas, de quem está por trás deles. Historicamente, a maior parte das empresas jornalísticas brasileiras sempre dependeu das verbas publicitárias do Poder Executivo, ou então se revelou um ramo secundário de grandes corporações, como grupos financeiros, igrejas, universidades particulares, partidos políticos, empreiteiras etc. Essa simbiose permanece invisível para o telespectador graças a um sofisticado recurso: a pauta escondida.

Em nome de razões políticas, religiosas ou econômicas, o mesmo telejornal que usa uma câmera clandestina para conseguir uma boa reportagem também veta ou ‘esconde’, sumariamente, outras matérias ‘de interesse público’, tão importantes quanto a dos dentistas. Quase todas são ‘abortadas’ ainda em sua forma embrionária, isto é, a sugestão de pauta. Outras são produzidas, mas jamais publicadas. Tornam-se moeda de troca. E enquanto o noticiário é esquartejado diante do silêncio consentido dos jornalistas, o telespectador fica com a ilusão de objetividade, pois não sabe o que lhe foi sonegado. Sem deixar rastros, esse mecanismo consegue manipular sistematicamente a cobertura jornalística, favorecendo o interesse particular sobre o público e excluindo o telespectador do debate. A câmera, antes escondida, passa a se esconder.

Telejornais têm liberdade para editar seu conteúdo e, à exceção dos direitos de resposta concedidos pela Justiça, não estão formalmente obrigados a publicar qualquer tipo de informação. É verdade. E é exatamente por dispor desse subterfúgio – usado a todo momento, mas nunca assumido – que jornais e jornalistas nunca conseguirão ser, stricto sensu, ‘objetivos e imparciais’. Basta ver a dificuldade que os profissionais de imprensa têm em admitir a existência desse controle interno, ainda que ele seja tão antigo quanto o próprio jornalismo.

Chegamos, então, à raiz do problema: enquanto os jornalistas reivindicarem poderes de polícia e continuarem trabalhando sem autonomia, mecanismos como a câmera escondida serão apenas um fetiche jornalístico, quando não uma arma perigosa, em mãos desconhecidas. Muitos profissionais de imprensa mal sabem para quem de fato estão trabalhando, e é compreensível que não gostem de falar sobre o assunto. Mas precisam ter consciência de que, enquanto essa relação não ficar clara para o espectador, estarão usando um disfarce e iludindo seus clientes – exatamente como os falsos dentistas de Santa Catarina.

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Jornalista