Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Ave e palavra

Uma morte na Barra mobilizou mais que pessoas. Mobilizou jornalistas. O caso de um pombo morto a tiros, na terça-feira 23 de novembro, foi parar no Instituto Médico Legal e na Corregedoria de Polícia Militar. O Instituto expediu o laudo confirmando que a causa mortis foi hemorragia em decorrência de ‘ação pérfuro-contundente’. O caso foi registrado na 16º Delegacia. Um oficial da Polícia Militar chegou a ser apontado como suspeito, motivo de o caso ter chegado até a Corregedoria.

O caso foi publicado n´O Globo, onde o tom quase literário – trabalhou-se com uma estratégia de suspense – estabeleceu a distância discursiva necessária em relação à formalidade das hard news.

Curioso, mesmo esse caso. De uma parte é absolutamente ignóbil a notícia. Num segundo momento, porém, podemos imaginar que há muito que interpretar aí. Muitos são os critérios de noticiabilidade. Mas eu prefiro um que é tão inexato quanto simplista: relevância, proximidade, interesse humano, importância científica e curiosidade. Todos esses termos podem vir com perguntas bem capciosas. Por exemplo: relevância para quem, cara pálida? O que é relevante para um sem-terra não o será para a emergente da Barra da Tijuca, visto que a ocupação/invasão nunca se dará num condomínio. Ou as festas do grand monde nunca se darão nas cabanas.

Proximidade do quê? A maioria do leitor brasileiro não tem o próprio bairro noticiado… Interesse humano? Mas o que não é de interesse humano? Importância científica? Ora, somente as ciências naturais ou da saúde ganham destaque nas editorias de ciência, de modo que parece ao jornalismo que as humanas e sociais não têm qualquer importância. Curiosidade? Parece que é tudo aquilo que sobra. Podemos jogar com três possibilidades para explicar o aparecimento de uma notícia dessas num jornal de referência, como O Globo.

Num primeiro momento, parece que de alguma forma o caso do pombo se enquadra no último critério, o da curiosidade, já que se trata do caso de uma ave que mobilizou um aparato que geralmente deveria estar voltado a serviços mais importantes. E aqui há uma crítica implícita ao sistema de segurança praticado no Rio.

Mas pode haver aí também uma metáfora interessante: pombo, símbolo de paz, morto por policial, gratuitamente. Nesse caso, a matéria recorre às entrelinhas, uma marca do jornalismo literário ou do jornalismo-sob-pressão nos tempos da ditadura. Claramente, no entanto, aqui é uma notícia-crônica do cotidiano, mais para Nelson Rodrigues.

A terceira hipótese é que a notícia seria uma rolha. Não tendo mais o que dizer, o jornal apela a qualquer coisa para cobrir-lhe os espaços. Buscando não mais as razões da matéria, o que se resolveria com um simples telefonema ao repórter, mas as ir-razões dos critérios, mostra-se a irrelevância, pelo menos teórica, dos critérios de noticiabilidade, esse tom pesado que uma certa teorização de afã positivista quis conferir ao jornalismo.

Muitos são os motivos que levam a se fazer notícia, até a morte de um pombo, ou o nascimento de uma flor no asfalto – como no poema de Drummond. A notícia é uma negociação complexa com a sociedade, complexa porque pode ser uma negociação simbólica – nesse caso, a notícia sobre a morte da ave é sintomática em relação à nossa paranóia cotidiana; pode ser uma negociação institucional – quando o jornal firma posições, em forma de recados indiretos, em relação a certas instituições capitais na sociedade, sendo que nesse caso é um recado às instituições jurídico-policiais do Rio; uma negociação econômica, quando se noticia o que vende.

De alguma maneira, deve-se superar as taxonomias, tipificadas de ciências naturais, para buscar compreender, na academia ou nas redações, o produto-processo que é a notícia, texto-lugar de fluxos discursivos. Vista assim, a notícia revela a articulação de sentidos e poderes, entre o jornal e outras instituições, entre o jornal e o leitor-consumidor, entre o jornalismo e a sua própria história discursiva.

Como discurso, a notícia deverá ser pensada numa certa conformação genérica em oposição a outros produtos-processos do campo jornalístico, e em especial à reportagem, esta irmã copiosa, nobre e muito mais literária que o relato noticioso. Notícia que se firmou, nos anos 50, como o lugar em que o objetivismo – a ideologia da objetividade – ganhou foro de representação da própria essência institucional. O que há de interessante nessa notícia, publicada por um jornal de referência, é que de alguma forma ela recupera o fait-divers risonho que sobrevivera, sob duros ataques acadêmicos e morais, nos jornais populares. Mesmo que isso venha a causar arrepios nos mais sisudos.

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Doutorando em Lingüística, subárea Análise do Discurso, pela Unicamp