Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Besteirol, o gênero preferido na cobertura

O Brasil levou cerca de 500 jornalistas para cobrir a Copa de 2006 na Alemanha, dos quais 160 são da Globo.


Da quantidade, dado o patamar de inegável qualidade que nossa imprensa vive do posto de vista técnico e tecnológico, deveria surgir a qualidade, mas diversos locutores e repórteres exibem uma falta de profissionalismo ímpar: não entrevistam; louvam, incensam, adoram, rendem graças e, confitentes, ajoelham-se diante de ídolos que, ganhando por mês uma dinheirama que nenhum jornalista arrecadará com seu trabalho a vida inteira, dão grosseiros chutões e cometem erros que até na várzea (quando havia) seriam ridicularizados.


Se a seleção é a pátria de calções e chuteiras, como a definiu Nelson Rodrigues, por que a comissão técnica não inclui na preparação alguns rudimentos de cultura brasileira, como ensinar os jogadores a cantar o Hino Nacional ou a respeitar a crítica? Alguns parecem deuses, mas não deuses gregos e romanos, sujeitos à crítica, e sim modernas divindades brasileiras de quem nada se pode dizer que não seja um caudal de louvores e endossos.


Outros jornalistas fazem questão de ostentar uma intimidade com o dia-a-dia da seleção, logo desmentida pelos fatos.


Duas Alemanhas


O leitor quer exemplos? Na quarta-feira (21/6), tarde da noite, a TV Globo informou que Juninho Pernambucano não jogaria contra o Japão. Como que para desmenti-la, jogou e fez um gol.


Na quinta-feira (22), horas antes de o Brasil entrar em campo, quem acreditou na TV Globo teve outra surpresa. Os telespectadores tinham sido informados (?) de que Ronaldo não jogaria. Jogou e fez dois gols.


O jornalista Daniel Piza é um rosto conhecido: toda semana sai sua foto na coluna dominical de O Estado de S.Paulo e, durante a Copa, muito mais vezes durante a semana. Ainda assim, no Jornal Nacional de sexta-feira (23), ele deu entrevista e foi legendado com outro nome.


No domingo (25), o portal Terra informava em sua página como o Equador tinha obtido a classificação: ‘Venceu o Equador por 3 x 0’. Caso inédito, feito glorioso, vencer a si mesmo na Copa! Quanto sacrifício para poder enfrentar a Inglaterra. Na quinta-feira (22), uma curiosa inversão de papéis: rapidamente o técnico Carlos Alberto Parreira trocou de lugar com os entrevistadores, como segue:




Terra – Este espetáculo não existe mais, ou eventualmente pode surgir?


Parreira – Primeiro defina o que é dar espetáculo em futebol.


Terra – Jogar bonito. É show.


Parreira – E tem obrigação de ganhar?


Terra – Sempre


Parreira – Dá para conciliar – show, espetáculo e ganhar?


Terra – É complicado…


Parreira – Então você prefere o que? Eficiência?


Terra – Eu prefiro pontos conquistados


Parreira – Eu prefiro eficiência, que é pontos conquistados. Se der para jogar bonito, nós não somos contra. Nós temos o Kaká, Ronaldinho, Adriano, Ronaldo, Roberto Carlos… Temos dezenas de jogadores que sabem jogar bonito, mas tem que ser eficiente, senão volta. Nós tivemos equipes que jogavam bonito e voltaram. Foram sétimos, oitavos em Copa do Mundo. Nós queremos ganhar. Pergunte ao torcedor se ele está satisfeito. Se perdemos um jogo para a Austrália, haveria festa na rua? Não. Só tem, porque ganhamos, e queremos que continue assim até o final.


Na segunda-feira (26/6), Renato Maurício Prado informava em sua coluna em O Globo uma outra Copa de 1966, que só ele viu:




‘Há vários casos de ‘prorrogações fatais’ em Copas. Na de 66, a Alemanha eliminou a Inglaterra, nas quartas, e foi eliminada pela Itália (em nova prorrogação), na semi. Na final, Brasil 4 a 1 nos italianos’.


Se a CBF ouvir a imprensa, deverá solicitar correção imediata à Fifa. Já somos hexacampeões desde 2002. O jornalista errou justamente a Copa em que Pelé foi quebrado, em que surgiu Eusébio, em que vencemos apenas uma partida, perdendo as outras duas da primeira fase. E se esquece de que, tanto na Copa de 1966, quanto na de 1970, quando de fato o Brasil venceu a Itália 4 a 1 na final, a Itália era a mesma de hoje, mas a Alemanha, não. Houve duas Alemanhas até a queda do Muro de Berlim, e as duas se classificavam para as Copas do Mundo – ou o jornalista esqueceu a dificuldade que a Alemanha Oriental deu ao Brasil na Copa de 1974?


Futebol com turfe


Há outros exemplos. O presidente Lula foi criticado por perguntar a Parreira se Ronaldo estava gordo ou não. O técnico dissimulou, até com certa cortesia, mas a verdade apareceu nos dias seguintes: Ronaldo está pesando mais de 90 kg e já perdeu 5 kg durante a preparação. Por que disfarçar tanto a verdade? Os mais velhos lembram de Coutinho, colega de Pelé nas famosas tabelinhas, no Santos e na seleção brasileira? Engordava, admitia a luta contra o peso e nem por isso era hostilizado pelos jornalistas esportivos.


Quem procurar lógica em comentários, ficará decepcionado. Vale a experiência, a experiência é tudo, dizem com uma arrogância descomunal, parecendo que o fim é excluir também no futebol os jovens, pois a sociedade brasileira os exclui em todos os setores e não apenas nas classes sociais ditas menos favorecidas, segundo o eufemismo da sociologia tropical. Menos favorecidas por quem? Pelo Banco do Brasil em relação aos usineiros?


Mas se a experiência é tudo, então devem colocar um bicampeão como Nílton Santos, tricampeões como Carlos Alberto Torres, Jairzinho, Félix, Clodoaldo etc e um tetracampeão como Romário para resolver a questão de vez.


Como tais comentaristas não explicam que a experiência tem valor, sim, mas no futebol ela requer o indispensável aliado da boa forma física, que o tempo – ó dor! – rouba em ritmo persistente e veloz, leitores e telespectadores têm direito a perguntas tão bobas quanto as dos comentaristas.


No jogo Alemanha x Suécia, Casagrande dedicou a um dos melhores goleiros do mundo, Oliver Kahn, reserva da equipe alemã, as seguintes palavras: ‘Chega a ser ridícula a imagem do Kahn. Desse jeito, não precisava vir mais’. Puro despeito! O goleiro alemão está num patamar muito mais elevado do que aquele a que chegou Casagrande. E ele não estava no banco posando de modelo. Sua profissão é outra e ele a exerce nos gramados com muito mais eficiência do que o atacante brasileiro a exerceu.


O impagável Galvão Bueno, comentando o desempenho do jogador português Costinha no jogo Portugal x Holanda: ‘Costinha é madeira de dar em doido’. Em outro jogo confundiu futebol com turfe e perguntou a Arnaldo César Coelho qual a parte do corpo do jogador servia de critério para medir o impedimento. Bem, se fossem cavalos… Poderiam ganhar ou perder de nariz.


Mestre e discípulo


O Aurélio, um de nossos dicionários mais consultados, não registra a palavra ‘besteirol’, surgida na segunda metade da década de 1980 para designar um gênero de espetáculo repleto de tiradas breves e humorísticas, recheadas de frases absurdas, ridículas, grotescas, cujo fim é a crítica de usos e costumes. O Houaiss diz que este tipo de espetáculo não tem ‘compromisso com teses’, e o Michaelis diz que representou ‘tendência cultural popular surgida nos anos 90 na música, literatura e no teatro, caracterizada por uma forma escrachada de humor, crítica social e política’.


Na Copa de 2006, o besteirol tem sido o gênero preferido. Quem pode ser escrachado é Sua Excelência, o telespectador ou leitor, a majestade que em última instância paga os salários de todos, sejam jogadores, comissão técnica, jornalistas ou aqueles que fazem as vezes de profissionais da imprensa.


O lema deste Observatório é ‘você nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito’. Prestemos atenção, prezados leitores, àquilo que o noticiário esportivo omite, disfarça etc. A televisão brasileira mais uma vez estará em padrões de primeiro mundo na parte tecnológica, com a escolha do modelo digital. Mas quando é que nossos empresários da comunicação vão resolver investir na qualidade da mão-de-obra? Por exemplo: nenhuma TV digital vai melhorar esses comentaristas, repórteres e locutores esportivos. Vai melhorar a imagem deles na telinha, que será de alta definição, mas o besteirol não será erradicado pelo novo aparelhamento.


A questão é, ainda mais uma vez, educacional, cultural. Está bem, você pode treinar uma equipe para cobrir um evento como a Copa de 2006, mas preparar, não.


Quem prepara o jornalista é a relação bunda-cadeira-horas, exercitada longe das redações e não apenas à beira de copos e pratos, comendo e bebendo por conta da casa. Ninguém mais lê Os Lusíadas, mas Camões deu o caminho das pedras:




‘De Formião, filósofo elegante,/ Vereis como Aníbal escarnecia,/ Quando das artes bélicas, diante/ Dele, com larga voz tratava e lia’.


E acrescentou:




‘A disciplina militar prestante/ Não se aprende, Senhor, na fantasia,/ Sonhando, imaginando ou estudando,/ Senão vendo, tratando e pelejando’.


Formião era filósofo, nada entendia de batalhas, mas ousava ensinar Aníbal. O general nada entendia de filosofia, mas não a ensinava a Formião.


Pedido de desculpas


A seguir, na estrofe 154 do mesmo canto X, Camões louva a junção entre teoria e prática:




‘Mas eu que falo, humilde, baixo e rudo,/ De vós não conhecido nem sonhado,/ Da boca dos pequenos sei, contudo,/ Que o louvor sai às vezes acabado./ Nem me falta na vida honesto estudo,/ Com longa experiência misturado,/ Nem engenho, que aqui vereis presente,/ Cousas que juntas se acham raramente’.


É bom lembrar que é indispensável ter café no bule para exercer bem um ofício, principalmente o de jornalista, que expõe, às vezes com crueldade, a ignorância rochosa, compacta, brutal dos que escrevem e falam por dever de ofício, principalmente nesses tempos em que ‘celebridades’ vêm azucrinar o distinto público, não com ‘um saber de experiência feito’, mas com uma ignorância descomunal, que só não é menor do que sua arrogância.


Se o besteirol não for passageiro e triunfar de vez, daqui a pouco a pessoa com um mínimo de cultura terá que pedir desculpas a figuras notoriamente desqualificadas profissionalmente para dizer que elas estão enganadas. E não apenas nas coberturas esportivas, mas este é outro assunto, muito mais complexo.

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Escritor, doutor em Letras pela USP, diretor do Curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro