Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Capitalismo e jornalismo – 2

O presente artigo desdobra o diálogo que teve início em outro publicado na edição 335 deste Observatório. A necessidade da revisitação às relações entre capitalismo e jornalismo é ditada pela própria dinâmica dos acontecimentos. Nessa dinâmica, surgem, vez por outra, fluxos de exagerada cobrança a respeito da função exercida pela atividade jornalística. É certo que os excessos não devam ser tolerados. Todavia, não é menos certo também que alguma dose de tolerância seja concedida. O problema, pois, reside em ajustar o foco com o qual se possa, no devido equilíbrio, situar criticamente o desempenho de profissionais cuja responsabilidade é expressiva, porém, em igualdade de condições nas quais se dá o exercício das profissões, no que diz respeito à inevitabilidade, aqui e ali, do erro.

Creio que parte das incompreensões dirigidas à prática jornalística atualmente exercida, inclusas as acusações oriundas de setores governamentais, provém da opacidade crítica quanto à falta de visibilidade do próprio estágio no qual ingressou o processo capitalista e, com ele, o modelo jornalístico. No capitalismo de feição mais recente, algo de profundamente diferente afetou a própria característica do jornalismo tradicionalizado, desde seu nascedouro. Refiro-me às inevitáveis contaminações que passaram a existir entre jornalismo e publicidade. Desta questão é que deriva a reflexão a seguir.

Discurso publicitário

O estreitamento crescente entre os limites do jornalismo e da publicidade é uma derivação determinada por conjuntura associada ao modelo instalado pelo mundo dos negócios que abriga, em si mesmo, lógica própria. À profusão de objetos, corresponde a necessária e inevitável exposição deles. Constatado o princípio e, como tal, reconhecido, não é difícil deduzir que se, na sociedade de massa, são os meios de comunicação os responsáveis pela ponte entre a informação e o público, seria inevitável, na fase avançada do capitalismo, a progressiva ampliação de espaço ofertante ao discurso publicitário. Afinal, é por meio da publicidade que se ‘noticia’ a produção, cuja destinação é o consumo. Nesta binaridade, se funda a lógica do capitalismo.

Num certo sentido, ocorre, contemporaneamente com a atividade jornalística, processo similar ao verificado com a prática literária, ao longo do século XIX. Naquele tempo, inicialmente na escrita de Walter Scott e de Balzac, a ficção sofreu mutação no eixo de suas prioridades: a descrição se expandiu, em detrimento da narração, aspecto já bem alinhavado pelo teórico húngaro, Georg Lukács, num dos mais importantes capítulos (‘Narrar ou descrever’) do livro Ensaios sobre literatura (Civilização Brasileira, 1965).

Na primeira fase da construção do capitalismo, predomina um tipo de realidade que se afirma como ‘paisagem de acontecimentos’. Deste período decorre o jornalismo narrativo. Na segunda fase, período no qual se consolida a sociedade de consumo, a realidade é transformada numa ‘vitrine de objetos’. Como conseqüência, instaura-se o modelo de exibição publicitária, ou seja, a realidade dos acontecimentos, típica do jornalismo narrativo, sofre concorrência da exposição e circulação de ‘produtos’, o que, inevitavelmente, potencializa a incursão do discurso publicitário. No atual estágio, a concorrência acentuada da publicidade no reduto jornalístico representa a inserção que a tônica descritiva significou para a ficção de outrora.

Tudo se nivela

Em tempos de expansão tecnológica, o jornalismo ainda conserva, de modo reativo, a parcela de narratividade, sem, no entanto, evitar a contaminação originada das novas ferramentas de perfil audiovisual. Nesse diferente formato, o espaço das telas é obviamente mais propício a abrigar a visibilidade tanto dos objetos quanto de pessoas (também estas, aos poucos, absorvidas como ‘notícia-produto’). Uma vez expostas pelos meios de comunicação (versão impressa ou versão eletrônica), involuntariamente, ou não, pessoas adquirem notoriedade e prestígio (autêntico, ou não) por conta da ‘vitrine’ midiática. Sem a percepção, portanto, de como essa mecânica funciona, a cobrança por certo comportamento jornalístico fica distorcida. O capitalismo avançado precisou reduzir tudo a produto a fim de que qualquer mínima fração de realidade se transformasse em algo vendável, passível, pois, de alguma compra para consumo e fruição.

A lógica até aqui exposta procura evidenciar que as deformações porventura identificáveis no jornalismo atual não diferem daquelas detectáveis em áreas tidas como ‘nobres’, a exemplo da política, saúde e educação. Assim, quando um órgão de imprensa divulga isto ou aquilo, o que tem em mira é a capacidade de repercussão, na expectativa de tanto aferir maior venda quanto de atribuir ao veículo maior prestígio.

No mundo dos negócios, tudo praticamente se nivela. Será diferente a lógica com que se orienta a política? No cenário da ‘política-produto’, cada qual defende seus interesses. O problema é que alguns tentam fazer passar o conceito de ‘interesses’ por ‘ideais’. Paciência com aqueles que nisso crêem. Por que políticos alimentam suas trajetórias na base do ‘troca-troca’? Por certo, não será em nome de ideais. É preciso recordar que, no mundo em curso, o próprio sentido de ‘ideais’ está profundamente alterado e, talvez, a maioria disso não se dê conta. Há ainda forte ressonância dos ‘ideais românticos’, sem se atentar para o fato de que, do século 19 ao 21, houve saltos de intensa transformação. É bem verdade que, sob o ponto de vista do tempo civilizatório, a distância é quase ínfima. Contudo, a diferença se agiganta quando se percebe a mutação por que teve de passar o processo de subjetivação. Na escala da temporalidade subjetiva, o conceito de ‘duração’ se foi estilhaçando pelo assédio da ‘aceleração’, da ‘transposição’, da ‘dispersão’ e da ‘diluição’.

A percepção dos conflitos

Ali, na virada para o século 20, se dá uma radical guinada em diagonal. Desta resulta um novo modelo: o pragmatismo hedonístico-consumista. Nesse quadro, a paisagem rompeu com os limites da moldura e todos caímos na extravagância e no exagero. O efeito não recaiu apenas na classe política. Menos ainda, o processo se restringiu ao diferente perfil dos meios de comunicação. Não, o excesso se espargiu por todo o complexo societário. O resultado visível está na necessidade que cada ramo da atividade social saiu em busca de uma redefinição da ética, fragmentando esta aos limites da especificidade das funções profissionais. Esse dado era impensável numa outra configuração de mundo. Todavia, na atual sociedade, a especificidade da ética parece um aspecto de absoluta normalidade.

Uma crueldade parece haver sido plantada, ainda como semente ingênua e inofensiva, lá, na origem do capitalismo, que Descartes, no século XVII, ainda tentara salvar em nome de uma ‘razão dubitativa’. Algo ali, intensamente perigoso, foi gerado e ganhou impulso incontrolável: a ‘ética do lucro’. Vários pensadores, em seguida, tentaram contornar. Adam Smith, Stuart Mill e Max Weber foram alguns deles. Nenhum, porém, poderia imaginar que o processo chegaria ao limite de uma situação aporética. Sim, um formato de realidade no qual um problema insolúvel se instalasse.

Retornando aos dias atuais, fica nítida a percepção dos conflitos, tanto objetivos quanto subjetivos. Como se comporta, por exemplo, a direção de um hospital privado? Se não obtiver mensalmente receita – e esta só pode advir da doença – sobreviverá a população e ‘morrerá’, por regime falimentar, o hospital. Então, a rigor, a direção do hospital tem de, no íntimo, desejar que a ‘clientela’ se mantenha e/ou se renove. Terá, pois, no íntimo que almejar o número crescente de doentes e, por extensão, de novas doenças? O que seria dos psicólogos e psicanalistas se a demanda de portadores de distúrbios comportamentais e/ou emocionais refluísse? Estabelecimentos de ensino particulares, a despeito de seus nobres princípios, também não serão dependentes do grau de ‘ignorância’ da população, sob pena de não terem a quem ministrar conhecimento, mediante pagamento?

O fio da sensatez

A análise é clara: a necessidade de ampliar lucros, em qualquer atividade, dita a estratégia atinente à obtenção dos recursos. Os meios de comunicação de massa são apenas um ramo a mais e com igual peso de responsabilidade que têm os políticos, os profissionais da saúde, os da educação, da justiça e assim por diante. Os meios de comunicação, na sua área, têm de, no íntimo, torcer por crises. Sem estas, não há o que noticiar, afora amontoado de amenidades, frivolidades e equivalentes.

O modelo, portanto, não oferece saídas que não sejam eticamente embaraçosas. Em cada campo, faz-se o jogo com olho na vitória ou na prosperidade. É bem verdade que uns exageram na dosagem. Assim, quando se constata algum excesso, denuncia-se. A modelagem do capitalismo avançado desenvolveu um tipo de trama em que o desconforto é generalizado e, para suportá-lo, se vai constituindo uma espécie de grade de proteção, sob o nome de razão cínica. Num certo sentido, o capitalismo tem sua virtude: obriga, um a um, a tirar a máscara.

No capitalismo avançado, as redes do capital não deixaram nada de fora. Nelas estão todos os campos. O desafio imposto a cada um pela concretude do real exige atitude madura e, portanto, menos emocionalizada a fim de, com serenidade, mesmo ante a ira de indignação, encontrar o fio da sensatez, única via para conter a irreversibilidade da perversão com a qual se configura o enredo do capitalismo.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso, Rio de Janeiro