Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Caricaturas de Maomé e as metáforas perigosas

Quando tudo já foi dito sobre um fato a reflexão é mais necessária. Opinionistas de ocasião, mesmo intelectuais com sobrenomes solenes, demasiado afinados ao timing jornalístico, freqüentemente recortam e colam ao fato o modismo acadêmico do dia. Ou uma suposta ‘chave explicativa’ que às vezes pouco explica: é o caso do desgaste à quase exaustão do título (e quase sempre é só do título) de um artigo de 1993 de Samuel Huntington sobre o ‘choque de civilizações’. Pouco se compreende. Até porque a reflexão política mais séria não se debruça apenas sobre eventos mas sobre as idéias dos outros. A expressão ‘formadores de opinião’ é muito pouco ilustrada e imagina que o consumidor compraria uma opinião como uma roupa nova, sem observar por si ou selecionar e julgar autoridades impostas pela mídia. A reflexão política deve ser mais ‘deformadora’ que formadora de opinião. Sobre o caso da charge dinamarquesa do profeta Maomé com bomba no turbante, por exemplo, parece que tudo já foi dito. Então é hora de espremer um caldo das opiniões correntes até que delas se despegue o perigo.


Pelo menos uma opinião perigosa surgiu no debate brasileiro com o artigo ‘A liberdade de expressão é uma utopia?‘ de Leneide Duarte-Plon, publicado neste Observatório da Imprensa. Em síntese, o artigo toma a charge dinamarquesa como gancho para apresentar uma espécie de visão geral do racismo na Europa. Noticia como precedente a condenação de um jornalista dinamarquês por ter defendido na televisão o ‘extermínio dos muçulmanos, comparados por ele a um tumor no corpo europeu’. Mas ainda que veja justiça nessa condenação, pelo menos implicitamente, afirma que leis tendentes a reprimir manifestações racistas no exercício da liberdade de expressão têm causado notáveis efeitos ‘liberticidas’. Aparece pela primeira vez (salvo falha de observação da minha parte) no debate brasileiro o caso de Edgar Morin, que pela co-autoria de um artigo considerado brilhante seria a primeira vítima do ‘assédio’ ou histeria judiciária, expressões correntes no discurso da esquerda francesa, como se deduz de livro, com título sugestivo, recentemente publicado no Brasil em tradução de Duarte-Plon: BALIBAR, Etienne e outros. Anti-semitismo: a intolerável chantagem; Israel-Palestina, um ‘affaire’ francês? Trad. Leneide Duarte-Plon. Rio de Janeiro: Anima, 2004. 128pp.


Liberdade absoluta?


Na base do equívoco uma afirmação perigosa. Segundo Leneide Duarte-Plon, ‘a liberdade de expressão deveria ser absoluta num país democrático como a França’.


A democracia, contudo, não aumenta à medida que aumente o absolutismo no conceito de liberdade de expressão. As liberdades civis não são absolutas por natureza. Absoluto é sempre o poder que elas limitam. A liberdade civil de manifestação do pensamento é tradicionalmente coarctada pelo poder, porque ela apresenta ao poder em estado bruto um veto de civilidade. Mesmo juristas que reconhecem distinções entre direitos absolutos e relativos, como Pontes de Miranda, afirmam que não há contradição entre o uso desses nomes na ‘técnica das liberdades’ e o fato de que as liberdades humanas, por serem sociais, são sempre relativas.


A transgressão às liberdades civis é signo de que elas existem. Onde não há liberdade, não há transgressão. Tomemos por exemplo a lei de imprensa ainda em vigor (parcialmente) no Brasil: feita em 1967, à ditadura interessava apenas o artigo que liberava uma cadeira para o censor nas redações. Esse artigo de lei era liberticida, fundado no simples poder de banir as liberdades civis de expressão. O resto era algum cosmético que mal lhe emprestava aparência de normalidade, como se a lei quisesse apenas punir transgressores ‘licenciosos’ das liberdades permitidas. Uma vez revogado o chamado entulho autoritário, a parte que era cosmético da lei ditatorial convive com a normalidade democrática, até porque uma lei que regule o abuso do direito de imprensa é necessária em qualquer lugar civilizado. Na normalidade democrática, quando as liberdades existem, existirão transgressões e é também normal que leis punam os transgressores. Onde há censura prévia não há transgressão. O que escapa ao censor não é tanto um delito imputável ao autor, mas uma falta de serviço do censor, que cochilou ou passou a ser pouco confiável.


Lei liberticida?


A liberdade de expressão não é uma utopia: existem termômetros bastante confiáveis de sua existência. Tampouco leis que limitem excessos incivis na liberdade de expressão podem ser consideradas liberticidas.


A luta pela criminalização de transgressões aos limites civis das liberdades é afirmação de liberdade. O axioma de Giambattista Vico (The New Science (Sciencia Nuova), Book I, XCII) segundo o qual ‘os fracos querem leis, os poderosos as sonegam’ aplica-se bem à discriminação. Quando vetos difusos da sociedade civil são insuficientes e comportamentos discriminatórios agressivos, sítios de apologia do nazismo e da discriminação contra o negro (geralmente associada ao neonazismo) e mais recentemente contra o árabe, aparecem inocentemente como manifestações da liberdade de expressão do pensamento, a Lei Gayssot (Loi n° 90-615 du 13 juillet 1990, tendant à réprimer tout acte raciste, antisémite ou xénophobe) que modifica instrumentalmente o código penal francês para repressão a certos crimes de expressão (diga-se de passagem, no mesmo passo da lei brasileira de nº 7.716/1989), não pode ser considerada liberticida. São leis como essas que permitem à justiça retirar do ar sítios neuróticos (e perigosos às liberdades) como vem ocorrendo no Brasil com sítios neonazistas; na França, ao que sei, com pelo menos um sítio negacionista (aaargh).


Mas é sempre recomendável refletir com algum cuidado sobre o modo de aplicação correto dessas leis, que serão sempre liberais no bom sentido (do liberalismo político clássico) da palavra. Para não ser autocontraditória, a lei precisa ser interpretada como ‘acréscimo de’ e não ‘em detrimento da’ liberdade. Segue-se aqui o princípio da dúvida pró-liberdade. Donde já se deduz que essas leis liberais de proteção às liberdades civis de manifestação civilizada do pensamento não servem de aval para imposição de ‘pacotes’ ideológicos de correção política. Mas nem mesmo esse desvio de aplicação depõe contra a lei, porque seria erro judiciário. O livro ruim não pode ser censurado, deve ser criticado. Alguma piada de mau-gosto, preconceito no uso da linguagem corrente, o erro acadêmico, mesmo que por simplificação tendenciosa, fundada em ideologias em voga, tudo isso forma um universo nublado no qual incide a dúvida pró-liberdade. O universo do que deve ser proibido (e punido como transgressão) é feito todo de propaganda e/ou injúria racial bruta, pura, primária.


Evidentemente não é fácil na casuística delimitar fronteiras, que são normalmente nubladas. Deve-se aportar à aplicação da lei todo o patrimônio ilustrado e liberal de nossa civilização mas, sobretudo, muito bom-senso, liberto de fanatismos pendentes para o excesso de licenciosidade ou para o outro extremo do patrulhamento. Suspender os rótulos na lapela do autor, julgar o ‘fato’, extrair do fato conclusão sobre ser ambígua ou inequívoca a intenção hostil ou de mera propaganda, seja qual for a motivação psicológica do fato (de onde brota a neurose racista sempre interessa compreender, mas não para coibir a circulação da expressão racista).


Assédio judiciário?


Igualmente grave é que uma errada concepção absolutista das liberdades impõe à vítima que sofra em silêncio: dupla injustiça. Se reclama, corre o risco da retorsão acusatória. Na mídia e (agora) em artigos e livros orientados por certas tendências totalitárias profundamente arraigadas na esquerda ocidental, sugere-se que a vítima seria muito abusada. Já não é a pecha do excesso de sensibilidade, mas a de ser a vítima ela mesma ‘liberticida’, e praticar o que na esquerda se vem chamando de ‘assédio’ ou ‘histeria judiciária’: tendência explícita na maioria dos artigos do livro Anti-semitismo: a intolerável chantagem. P. ex: Éric Hazan na p. 54: ‘o assédio judiciário faz parte de uma campanha de intimidação desencadeada pelo medo de ver a opinião pública francesa pender para o lado da causa do povo palestino’. Michel Warschawski, na p. 66, denuncia o assédio judiciário como ‘campanha para deslegitimar a esquerda’.


Se uma acusação de anti-semitismo contra a esquerda retorna à vítima como prática imoral e ‘intolerável chantagem’, é justo que esta retorsão (moralmente grave) também seja submetida a crítica. Recomendo examiná-la sob premissas de ‘normalidade democrática’, entre as quais:




(a) venha da extrema direita ou da esquerda, a transgressão à liberdade civil de manifestação do pensamento é sempre manifestação de poder em estado bruto;


(b) uma proposta de veto judiciário é em princípio civilizada, porque é proposta argumentativa e racional que precisa ser racionalmente acolhida;


(c) as leis de proteção às liberdades são liberais e presume-se que serão corretamente interpretadas.


Também ajudarão aqui algumas premissas da técnica e da experiência jurídicas, (não por acaso normalmente invertidas no discurso político radical):


(d) a boa-fé se presume, ao passo que toda malícia deve ser provada;


(e) o lícito é o normal; o crime, a exceção e, por fim,


(f) a litigiosidade é cansativa, as pessoas normalmente não recorrem a recursos mais gravosos do que o estritamente necessário para conter uma agressão.


Admitidas tais premissas, examinemos o que normalmente ocorre nas demandas envolvendo agressões raciais.


Não é incomum que grupos sociais mais vigilantes superestimem o potencial de periculosidade de certos fatos. Igualmente freqüentes são condutas de contornos paranóides da parte considerada agressora, de que é exemplo uma crença disseminada na esquerda, sobre estar na posse de certas ‘verdades’ que não poderiam ser divulgadas, mas que uma ‘admirável minoria’ teria coragem de dizer em público: quem reclama de injustiça, miopia, ou até mesmo de racismo nessas verdades é denunciado como integrante de uma conspiração de direita em favor dos opressores da humanidade.


Sobre esses dois extremos, deve-se compreender que algum exagero é normal em questões raciais, porque as agressões remexem um subterrâneo bárbaro que pode ser considerado como o inconsciente das sociedades. Assim como a agressão racial é socialmente contagiosa, o pânico que ela gera pode ser meio contagioso. Toda civilização conhece medos e pânico. Também ocorre que a agressão racial seja usualmente praticada a conta-gotas, e que uma reação defensiva possa advir de um fato isoladamente pouco grave, mas que seria a gota que faz transbordar o copo d’água.


Diferença essencial entre uma acusação de racismo e sua retorsão como ‘chantagem’ está na forma. A agressão racial é usualmente gestual, metafórica, e suas metáforas normalmente giram em torno à degradação do outro, entre dois extremos, um de diabolização e outro de bestialização (sendo prática comum na caricatura racialmente agressiva o zoomorfismo). Elucidativa, a propósito, entrevista com Joël Kotek, de 21-6-2004, sobre grandes temas anti-semitas em cartoons árabes (Major anti-Semitic motifs in Arab cartoons, disponível aqui). A reação através da justiça, por outro lado, é sempre discursiva, e o discurso, não por acaso associado à prática moderna e liberal dos parlamentos, é potencialmente mais civilizado que o cartoon ou o panfleto de propaganda, que apelam mais à imaginação que à razão, e assim movimentam de modo mais eficiente um universo subterrâneo onde dormem os grandes mitos da discriminação racial.


Quase me escapa aqui uma frase de efeito de um dos fundadores da democracia americana, sobre o preço da liberdade ser a eterna vigilância, mas pensando melhor talvez seja frase de efeito que não descreve bem a vida real. A gente luta e conquista uma liberdade, e quando ela se normaliza, a gente descansa, e nem bem descansava toma um revés do sempiterno poder (toda transgressão é poder) e precisa acordar, e vai à luta de novo. Assim é.


Quem toma mais reveses acorda mais vezes e por estar mais vigilante pode ver o perigo onde ainda não vimos.


Se a judiciarização das liberdades é recurso mais gravoso que os vetos difusos da sociedade civil pareceria que sempre haveria algum abuso. Mas isso não se dá. Podem estar presentes outros fatores para o incremento do recurso mais gravoso. Qualquer juízo sempre dependerá da casuística. No caso Edgar Morin, que desponta como paradigma de ‘injusto assédio judiciário’, pode-se provar que a acusação de assédio é comprovadamente infundada. Se o caso Morin é paradigmático, também será porque sinaliza a potencial perda de instâncias civilizadas que sempre foram valorizadas no Ocidente, até porque são fundamentos da democracia-liberal:




(a) opinião pública, e


(b) a crítica e o veto civilizado dos intelectuais.


Quanto à opinião pública, ela mais que nunca depende da mídia. O que a mídia silencia a opinião pública não pode adivinhar, mesmo com todo o aparato alternativo de informação propiciado pela rede mundial de computadores. É eloqüente o silêncio que envolveu a condenação, em 2005, de Edgar Morin (e dos co-signatários do manifesto, além do editor do jornal Le Monde). Tom Gross, em artigo intitulado ‘Anti-Semitism at ‘Le Monde’ and Beyond’ (The Wall Street Journal Europe, 2 de junho de 2005) registra com espanto o silêncio na mídia sobre um fato que devia ter sido muito noticiado: afinal era a primeira vez que um grande jornal francês fora condenado por… anti-semitismo. O observador debita o silêncio ao fato nada acidental de que o vazio é preenchido por distorções e simplificações caricaturais de caráter antijudaico que se tornaram correntes na mídia européia. A pretexto de crítica à política de segurança de um Estado, com incrível facilidade se tem pendido para a licença e para a liberação de um subterrâneo bárbaro, para a satisfação de um instinto agressivo que agora sim, finalmente, ‘teria motivo para falar mal dos judeus’.


Quanto ao veto dos intelectuais, desde que o terrorismo adentrou no mundo político como infame sinônimo de resistência, é preciso algum cuidado até mesmo com sobrenomes solenes. De Jean Baudrillard, por exemplo, signatário de um manifesto de apoio a Edgar Morin lançado no Libération, reporta-se em fonte idônea (sítio primo-europe, voltado à divulgação do Oriente Médio com menos preconceito) que o ilustre filósofo declarou por ocasião do atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 que ‘todo o mundo, sem exceção, sonhou com isso’ (‘Que tout le monde sans exception ait rêvé (de ces attaques), c´est un fait!’ (em Primo Europe, texto editorial intitulado ‘Signature, siou plait’, postado dia 26/6/2005 e disponível aqui).


Como se diria na rotina judiciária: com uma defesa dessas, quem precisa de acusador?


Se o caso examinado é paradigmático, é lícito generalizar algumas conclusões. O recurso ao judiciário contra o racismo, em tese, é legítimo; em hipótese, não parece ter-se trivializado.


É importante atentar para o que ele sinaliza: os vetos difusos da opinião pública e dos intelectuais andam lassos, inoperantes. O que é muito ruim, porque a condenação judicial, mesmo sendo necessária como veto civilizado, nunca é totalmente eficiente para desarmar bombas de intelectuais-suicidas. O que efetivamente as desarma é a ‘palavra’, a contra-argumentação, a insistência na compreensão que despe o raciocínio de sua sofística e falsidade argumentativa. Essa compreensão é nossa pretensão. Não se divulga responsavelmente um texto condenado na justiça por ‘difamação racial’ senão com objetivo de esvaziá-lo de periculosidade. Mesmo que não sejamos completamente eficientes, por carência intelectual ou de habilidade, só fazer parte desse esvaziamento já é uma empreitada ilustrada.


Uma análise menos apaixonada por rótulos correntes no discurso de esquerda dirá que o artigo de co-autoria de Edgar Morin pode ser visto como sucessão de cartoons agressivos. Ele pode ter em comum com a charge dinamarquesa o fato de ser também ‘caricatura da liberdade de expressão’ (título lapidar dado por Bruno Kampel, no Observatório da Imprensa, de 14/2/2006). Não admira que Morin abuse da mais cruel metáfora com que se pode descrever um evento político: a doença. E não uma doença qualquer: o câncer.


O Oriente Médio segundo Edgar Morin


Logo na abertura do artigo ‘Israel-Palestina: o câncer’, publicado originalmente no jornal francês Le Monde, de 4 de junho de 2002, compara-se o Oriente Médio ao centro sísmico ou foco primário de um câncer cujas metástases se espalhariam pelo mundo. Mas em seguida refere-se de modo menos generalista que o foco primário do câncer é ‘o povo judeu’ (não se chega a referir o Estado de Israel) e sua política ‘colonialista’ no território palestino.


Em discurso indireto, às vezes, ou telegráfico, em outras, em breve texto nega-se legitimidade à existência do Estado de Israel, trivializa-se o Holocausto afirmando-o como ‘intolerável chantagem’, porque não seria propriedade dos judeus, afirma-se que o Holocausto não é mais grave que opressões normais no curso da história, que os judeus não são as únicas vítimas na história. Exemplificaria a tese de ‘esvaziamento’ da Shoah (Holocausto em hebraico) a afirmação de que no Holocausto foram assassinados ciganos e que negros e indígenas foram oprimidos por vários séculos na América. A ‘intolerável chantagem’ seria uma tática imoral que sempre legitimaria a política de Israel, comparada à da França na Argélia.


Em seguida, critica-se a mídia que seria tendenciosa em favor de Israel porque divulgaria o conflito no Oriente Médio com uma ‘falsa simetria’. A mídia, ao pôr os dois lados no mesmo patamar, ocultaria que um está em guerra de ocupação ou expansão, e outro em guerra de resistência, ocultaria a verdade de que apenas Israel estaria em guerra, ao passo que o povo palestino, simbolizado na figura de um ‘adolescente’, ‘não tem meios de lutar, apenas oferece esporadicamente atos de resistência ou terrorismo’ (grifei).


Ingressando no tópico ‘terrorismo’ compreende-se o terrorista palestino, porque é um adolescente desesperado, e elogia-se a ‘humanidade’ da bomba-humana, ao passo que qualquer defesa de Israel seria ‘inumana’. A suposta falsa simetria ocultaria o fato evidente de que ‘o direito e a justiça estão do lado dos oprimidos’.


Em grande final de tom apocalíptico, anuncia-se que o problema do Oriente Médio é esse ‘câncer’ que ameaça nosso mundo de ‘catástrofes planetárias em cascata’ (catastrophes planétaires en chaîne).


Crítica a Morin


Se o texto condenado e condenável de Edgar Morin fosse uma análise política do conflito árabe-israelense, não me atreveria a examiná-lo, por falta de conhecimento e intimidade com o Oriente Médio. O atrevimento, contudo, pode justificar-se à medida que o texto é quase nada histórico e excessivamente metafórico. Além disso, não fosse por outros vários defeitos, um deles é que o autor faz apologia explícita do terrorismo, e isso legitima que se lhe oponha crítica do ponto de vista da filosofia moral e da justiça.


(a) A primeira observação necessária é quanto ao gênero.


Não se trata de um artigo com pretensão acadêmica, ou análise histórico-política de um conflito armado. Assinado a três mãos, uma delas de um deputado ao Parlamento Europeu, assume-se aqui objetiva e explicitamente o gênero do manifesto. Manifestos são obra da inteligência a serviço de uma idéia, uma idéia a serviço da conclamação para a ação política, mais que diagnósticos ou análises. Até mesmo em sua retórica se permite mais licença poética: o manifesto precisa falar à ‘imaginação’ das massas. Nenhum manifesto é inofensivo. Ou seria ineficiente, e ineficiência é defeito que não se poderia imputar a Morin. O autor, em entrevista a Silvia Cattori, e a esquerda européia de arrasto, se queixam de que foram recortadas algumas frases e examinadas fora de contexto. O pedido absolutório é muito pobre, convenha-se. Intelectual que se preza, ao assinar um manifesto político duplica o cuidado com cada frase, porque sabe como se costuma, entre fanáticos, aproveitar qualquer ‘pedaço’ de texto, descontextualizá-lo, voltá-lo como bumerangue contra o propósito evidente do autor. O que seria já grossa irresponsabilidade, contudo, não chega a tanto, porque o conteúdo altamente metafórico do discurso (que se presta a carregar mensagens poderosas nas entrelinhas) faz com que o ‘tom’ e o ‘todo’ do artigo sejam duplamente mais perigosos do que os excessos recortados.


Só quanto ao gênero, já podemos concluir que temos diante de nós um verdadeiro manifesto de incitação à ação política, eficiente e por isso, perigoso. O problema do perigo na política é saber: perigoso para quem? Perigoso para os opressores sempre foi todo intelectual responsável. Mas o que pega aqui é que o manifesto Morin é perigoso para todo mundo: para palestinos, para israelenses, para franceses. É um perigo para a paz, porque aparenta ser pacifista quando é guerreiro. O que fica bem evidenciado desde o título.


(b) A mais militarista das metáforas


A metáfora geológica (do centro sísmico) é mais sutil e ocupa lugar secundário diante da ‘doença como metáfora’. Embora se diga em aparência que o câncer acomete o Oriente-Médio, no corpo do texto se explicita que o foco cancerígeno é Israel, e o corpo político oprimido pelas células invasoras é o palestino. Um analista ilustrado dos conflitos humanos teria algum pudor em lançar mão da doença (e principalmente de doença grave como é o câncer) como metáfora política.


Toda metáfora que se remete ao par biológico de saúde-doença em política é perigosa. E o câncer é a mais perigosa das metáforas. Impensável que o refinado autor de O paradigma perdido (Le paradigme perdu: la nature humaine, 1973), texto humanista que exalta o homo ludens, quase na linha da educação estética de Schiller, não tenha cogitado de ponderar sobre as lúcidas observações de Susan Sontag no ensaio ‘A doença como metáfora’, posteriormente complementado nos anos 80 do século passado em ‘AIDS e suas metáforas’ (SONTAG, Susan. ‘Illness as metaphor‘ and ‘AIDS and its metaphors‘. Penguin classics. 2002. 180pp). Se não os leu, por obrigatoriamente conhecer os títulos de que qualquer estudante das ciências sociais ouviu falar, deveria ter parado para refletir sobre o seu conteúdo antes de usar o ‘câncer’ como metáfora em manifesto à ação política.


Sontag escreveu esses dois ensaios justamente para desanuviar o paciente de câncer de dupla injustiça: a da doença e a das metáforas a ela associadas. Em pesquisa sobre os usos metafóricos das doenças, Sontag aponta que antes do câncer, a tuberculose foi demonizada, até que fossem descobertas a causa e a cura. Até no universo da doença o ‘desconhecido’ tende a ser temido e diabolizado. O uso metafórico do câncer difere, porém, das metáforas da tuberculose: esta se prestava a um certo romantismo, tinha o glamour de uma doença que se contraía por excesso de paixões. O câncer, desde o início assumiu a mesma metáfora demoníaca, mas com o prejuízo de ser – ao contrário da tuberculose que é uma doença de tempo – doença associada a metáforas territoriais que se prestam com facilidade à terminologia militar. O câncer invade o corpo são como um inimigo oculto. O câncer se ‘espalha’, ainda que lentamente, tem focos primários e secundários, estes últimos normalmente tomam o paciente de surpresa; a cura do câncer é associada a uma guerra que admite, por princípio, que precisa sacrificar parte saudável do corpo (o perigo na translação para a política: diante de inimigo terrível é preciso sacrificar inocentes…).


O câncer, ao contrário da tuberculose, e mais intensamente que a sífilis, se presta na política a metáforas agressivas, conclui Sontag. Mas não é tudo: o câncer é associado a excesso, riqueza, desenvolvimento industrial, seria na imaginação geral uma ‘doença de países ricos, de afluência’. A só identificação de Israel (observe-se que o caso é pior, pois no panfleto se fala sempre dos ‘judeus’) ao câncer já seria retórica agressiva que apela para um tema mais que freqüente nas caricaturas da discriminação racial: a diabolização do outro.


A metáfora do câncer na política não é muito apropriada para pacifistas, conclui Sontag, e a pesquisa histórica que apresenta confirma isso. Vale a pena exagerar um pouco na transcrição de algumas observações sobre o câncer como metáfora política:




‘A tuberculose era uma doença a serviço de uma visão romântica do mundo. O câncer hoje está a serviço de uma visão simplista do mundo que pode também tornar-se paranóide. A doença é sempre experimentada como uma forma de possessão demoníaca – tumores são ‘malignos’ ou ‘benignos’, como forças…’ (p.70).


‘Movimentos totalitários modernos, seja de direita ou de esquerda, têm-se inclinado de modo peculiar e revelador ao uso do universo imaginário da doença. Os názis declararam que alguém de origem ‘racial’ misturada era como um sifilítico. Os judeus europeus foram repetidamente comparados ao câncer que precisa ser expungido. Metáforas de doenças foram marca registrada nas polêmicas bolcheviques. Trotsky, o mais talentoso dos polemistas do comunismo, usava-as em profusão, em especial depois de seu banimento da União Soviética em 1929. O estalinismo era chamado de cólera, sífilis e câncer. (…) Assemelhar qualquer evento ou situação política à doença é imputar culpa, prescrever punição’. (p. 82)


‘Descrever um fenômeno como um câncer é incitação à violência. O uso do câncer no discurso político encoraja o fatalismo e justifica medidas ‘severas’ – assim como reforça idéia generalizada de que a doença é necessariamente fatal. O conceito de doença não é jamais inocente. Poderia ser dito até que as metáforas do câncer são em si mesmas implicitamente genocidas’. (p.84)


‘a metáfora do câncer invariavelmente é um convite a simplificar o que é complexo, encorajadora do amor-próprio, se não for do fanatismo.’ (p. 85)


‘o câncer segue sendo a mais radical das metáforas de doenças. E porque é tão radical, é particularmente tendenciosa – uma boa metáfora para os paranóides, para aqueles que transformam toda campanha em cruzada, para os fatalistas (câncer = morte), e para aqueles que vivem sob o signo de otimismos históricos revolucionários (a partir da idéia de que apenas as mudanças mais radicais são desejáveis). Enquanto tanta hipérbole militarista for associada à descrição e ao tratamento do câncer, ele será uma metáfora muito pouco apropriada para os amantes da paz’. (p.86)


A inteligência a serviço da ilustração política deve desanuviar a carga agressiva de metáforas perigosas e injustas. As metáforas não podem ser evitadas de todo, é impossível não pensar metaforicamente: mas cada um é responsável pelas metáforas que cativa. Quando agressivas, precisamos expô-las em sua crueza e injustiça, ‘gastá-las’ ou substituí-las por outras metáforas, menos guerreiras, mais humanas. Na doença como nos conflitos humanos, precisamos afirmar sempre que




‘Não estamos sendo invadidos. O corpo não é um campo de batalha. Os doentes não são nem baixas inevitáveis nem o inimigo. Nós – medicina, sociedade – não estamos autorizados a lutar sem antes definir as armas…(‘AIDS and its metaphors’, op. cit. pp. 179/180). (traduzi em paráfrase a última parte, para evitar qualquer ambigüidade, no original lê-se: ‘We – medicine, society – are not authorized to fight back by any means whatever…’.)


Morin começa seu artigo sobre o Oriente Médio com a metáfora agressiva do câncer. Fatalista, naturalmente termina em tom apocalíptico, sugerindo que esse câncer ainda irá nos devorar. O texto apela fortemente à imaginação: não seria difícil a um cartunista desenhar esse câncer que ameaça devorar-nos. O câncer, como se sabe, é doença associada a afluência, a excesso, a super-industrialização, enfim, a poder. O que temos aqui é uma poderosa remissão ao mito da conspiração judaica que embasou o fraudulento projeto de poder dos Protocolos dos Sábios do Sião, documento forjado na Rússia czarista.


O autor, e a esquerda européia de arrasto, reclamam de injustiça da condenação, porque Morin seria um ‘resistente de primeira geração’, um humanista e um pacifista, um ‘mau-judeu’, talvez, mas da estirpe de um Spinoza. Só não explicam como a linguagem – e a arma de que um escritor dispõe é sempre a linguagem – de um suposto pacifista seja bélica, incite à violência física. É o que queremos compreender, no propósito de desarmar a bomba-Morin.


(c) O auto-desprezo


O nome ‘Estado de Israel’, que seria o alvo da crítica política, praticamente não aparece, substituído pelo coletivo ‘os judeus’, grupo contra o qual o autor dirige uma retórica agressiva de artilharia pesada: os judeus qua judeus seriam um ‘povo dominador e orgulhoso que, à exceção de admirável minoria, transformou-se num povo desprezível que se satisfaz em humilhar os outros’ (‘peuple dominateur et sur de lui, mais, à l’exception d’une admirable minorité, en peuple méprisant ayant satisfaction à humilier’). Abstraído o antijudaísmo que movimenta todo o patrimônio bárbaro dos mitos anti-semitas, é preciso compreender que fraseado excessivo desse gênero é tipicamente narcisista (a admirável minoria seria composta de humanistas e pacifistas como o próprio Morin, e outros, auto-identificados como ‘maus-judeus’, ‘marranos’, ou o que o valha). Todo narcisismo em linguagem política é sinalizador de radicalismo que não consegue libertar-se da visão de um mundo em eterna ‘luta’ entre ‘amigos’ e ‘inimigos’, dos bons contra os maus, mundo em que virtualmente seremos ‘nós ou eles’. Os ardis da dialética também estão presentes: o judeu precisa ser um mau-judeu para ser um bom-judeu, assim como o burguês de ontem precisava renegar sua ‘origem’ para ser um bom comunista. Além do truque dialético, é um truque retórico: o narcisismo implícito no auto-desprezo é eficiente. Essa retórica autoritária é comum à esquerda radical em geral, e não aparece apenas no ‘mau judeu’. Ela aparecerá em toda sorte de argumento em que o autor precisa vender seu pacote de idéias a partir de uma posição de antemão apresentada como superior, supostamente imparcial por ser capaz de ferir a si próprio, dizendo duras verdades que seus iguais não querem ouvir (a motivação para esse auto-ensurdecimento varia: já foi alienação, agora é pura e simples má-fé, estratégia, em qualquer caso sempre acompanhada de suposta ‘covardia’ e carga moral negativa). O discurso identitário radical de hoje apenas faz um upgrade de traços autoritários de dialética/retórica da vulgata comunista. Para quem o queira compreender, a condição judia do autor não será inteiramente indiferente. A condição judia do autor é que o leva ao sacrifício de sua condição pessoal, num discurso político extremista, porque o auto-desprezo é poderosa técnica retórica de ‘legitimação’ de quem dita Verdades. Isso não altera o fato de que, num juízo objetivo de periculosidade, tem completa razão William Goldnadel, um dos signatários da petição contra o artigo de Morin, quando afirma que a condição judia de Morin é indiferente (La judéité de M. Morin m’indiffère. Ce qui compte, c’est la dangerosité de ses écrits).


(d) A base filosófica absolutamente imoral


Podemos entrar mas não permanecer em guerra justa sem definir a justiça das armas. O que afirma Sontag a respeito da doença é algo que toda civilização conhece, quando distingue o direito à guerra do direito na guerra. Morin, como de resto pacifistas radicais, não distingue. Logo, não tem também a humanidade de reconhecer que uma guerra justa pode tornar-se injusta pela absoluta injustiça dos meios. Não admira que Edgar Morin faça apologia explícita do terrorismo, que confunde com um ‘humanismo’ (haja dialética). Adotou uma perspectiva maniqueísta do bem absoluto contra o mal absoluto, o que o leva a metáforas agressivas contra o último, no mesmo passo em que absolve compassivamente os crimes do primeiro. O lado palestino do conflito, afirma, não faz guerra porque não tem meios de lutar. Desesperadadamente ‘apenas oferece esporadicamente atos de resistência ou terrorismo’ (grifei).


Toda dedução segue sua premissa. A premissa falsa falsifica o silogismo inteiro. A premissa de que atos de resistência sejam gênero do qual atos de terrorismo seriam espécie é no mínimo problemática. Lançá-la de modo não-problemático, como uma verdade notória é no mínimo irresponsável. A melhor tradição da civilização ocidental afirma que a premissa é falsa. Atos de resistência são atos militares excepcionalmente praticados por civis. Atos de terrorismo são assassinatos. Repare-se que se fala aqui do assassinato terrorista de civis absolutamente inocentes, sem qualquer confusão com uma outra categoria, igualmente problemática mas distinta, do assassinato político, que segue o que Walzer chama de ‘código político’ e estaria numa zona de fronteira. Por brevidade, na urgência de seguir a discussão com outros assuntos, permito-me remeter o leitor ao sábio livro de Michael Walzer, Guerras justas e injustas – uma argumentação moral com exemplos históricos (publicado em português pela Martins Fontes em 2003), em especial aos capítulos 12 e 13, que tratam do terrorismo e das represálias. Alguma argumentação, ainda que de passagem, também se encontra em ‘Desaviso ou sinal de alerta?’, neste Observatório da Imprensa, de 3/2/2004).


(d.1) Falsa solução do terrorismo de Estado


De premissa falsa irresponsavelmente assentada não admira que sigam fundamentos metafóricos, quase-poéticos, e contudo banais: a bomba-humana é humana, os tanques de guerra são armas inumanas. Pega o leitor pela beleza aparente do raciocínio, até que se descubra sua extrema pobreza. Entre indivíduos sempre foi tido como covardia e desumanidade atacar alguém que não pode defender-se. Entre Estados, desumano é atacar cidadãos e retirar do Estado que os protegeria, por dever, o direito de declarar guerra. Cidadãos de Israel (não recorro ao melodrama, mas sabe-se que se trata de civis, crianças, velhos, mulheres) são constantemente atacados e o Estado que tem dever de protegê-los não pode declarar guerra em legítima defesa. Precisaria recorrer à ‘arma do inimigo’ e nem assim o faz, porque Israel, ao que se sabe, não pratica como política oficial o terrorismo. Onde a melhor humanidade?


Agora que todo discurso intelectual parece ter adoecido de simplificação, aqui não é diferente: cola-se o nome ‘terrorismo’ ao Estado-vítima na expressão ‘terrorismo de Estado’, que assumiria uma forma ‘lógica’ equiparada ao terrorismo da bomba-humana, sem necessidade de exame casuístico, que sempre exigiria provas. O império estalinista praticou terrorismo como política de Estado, segundo descobrimos pelo informe Kruschev de 1956. Não é, porém, toda e qualquer represália ao terrorismo identificável logicamente ao terrorismo. Por mais criticáveis que possam ser investidas militares em represália a atentados terroristas, elas não equivalem logicamente a terrorismo de Estado. Nem os Estados Unidos nem Israel praticam terrorismo de Estado, só estados totalitários praticam terrorismo de Estado (não tenho espaço nem estudo para fundamentar melhor esse tópico, razão principal por que remeto o leitor ao artigo de Agnes Heller, ‘911, or Modernity and Terror‘, publicado na Revista Constellations, Volume 9, Nº 1, 2002).


(d.2) Falsa analogia de Israel com a França colonialista


Da mesma forma eu precisaria de mais estudo e espaço do que disponho para provar a falsidade da analogia pretendida entre Israel e a França colonialista. Registro uma intuição, que se admite como ponto frágil argumentativo, a ser explorado e aprofundado separadamente, de que a pretendida equivalência é resultante de grosseira simplificação histórica, e que a situação de Israel no Oriente Médio não é anàloga à dos grandes Estados-nação europeus em suas investidas de colonização do Novo Mundo ou da África. Registro apenas que a simplificação também é apresentada por todos que sustentam tal analogia, de modo que parece ser mais um truque retórico do que uma argumentação com base histórica. Quer-se emprestar a Israel a ilegitimidade de uma França que se recusara a desocupar a Argélia. Importa aqui é que nem essa ilegitimidade retoricamente emprestada ajuda na tarefa de ‘normalizar’ a transgressão absoluta do terrorismo, porque na Argélia o recurso ao terrorismo não foi justa conduta de guerra, sem prejuízo de que os argelinos tivessem direito à guerra de libertação nacional.


Não será casual que a apologia filosófica mais representativa do terrorismo tenha surgido na pena de um intelectual francês, em prefácio ao belo livro escrito por um intelectual e médico argelino que não defende o terrorismo.


Jean-Paul Sartre acolheu nos anos 60 do século 20 com merecido entusiasmo o livro de Frantz Fanon intitulado Os desgraçados da terra (Les damnés de la terre) (refiro-me à edição em inglês: FANON, Frantz. The wretched of the earth. Preface by Jean-Paul Sartre. Translated by Constance Farrington. New York: Grove Press, 1963). O leitor de hoje, porém, se admiraria da merecida sobrevivência do livro, em detrimento do interesse meramente historiográfico do ensaio de Sartre. No livro não se faz apologia do terrorismo, no livro se descreve o mundo violento da descolonização como um mundo maniqueísta, mas não se faz propaganda ou incitação à vendetta genocida.


Jean-Paul Sartre foi muito além do autor argelino. Identificado com o estalinismo intelectual (nas palavras do próprio Morin, em sua Autocrítica de 1958), viu no livro de Fanon o mote para uma tentativa de reescrever, para o seu tempo, a dialética do senhor-escravo. Para o celebrado (à época) filósofo francês matar um francês seria o mesmo que matar dois coelhos com uma só cajadada, porque se mata o francês e o colonialista que o oprimia. Irrefutável, porém, é a crítica de Michael Walzer:




‘Com seu próprio estilo e certa queda pelo melodrama hegeliano, Sartre está aqui descrevendo o que considera ser um ato de libertação psicológica. Somente quando se revoltar contra o senhor, enfrentá-lo fisicamente e matá-lo, poderá o escravo criar a si mesmo como ser humano livre. O senhor morre. O escravo renasce. Mesmo que essa fosse uma descrição crível do ato terrorista, o argumento não é convincente. Ele está aberto a duas perguntas óbvias e frustrantes. Em primeiro lugar, a relação unívoca é necessária? Era preciso um europeu morto para libertar um argelino? Se assim fosse, não haveria na Argélia europeus em quantidade suficiente (…) A segunda pergunta levanta questões mais familiares: qualquer europeu serve? A menos que Sartre pense que todos os europeus, até mesmo as crianças, são opressores, ele não pode acreditar que qualquer europeu sirva. Porém, se somente for libertador atacar e matar um agente da opressão, estamos de volta ao código político. A partir da perspectiva de Sartre, isso não pode estar certo, já que os homens e mulheres que ele está defendendo tinham rejeitado explicitamente esse código. Eles mataram europeus a esmo, como na conhecida cena do filme A batalha de Argel (fiel em termos históricos), na qual uma bomba é detonada numa sorveteria onde adolescentes franceses estão tomando vitamina e dançando’ (Walzer, op. cit. pp. 348-350).


Com mais pesada queda pelo melodrama histórico, Morin simplifica ainda mais a dialética e limita-se a identificar nos atos terroristas dos oprimidos a legitimidade das resistências. Parece adotar do discurso de Huntington a resignação diante de duplos padrões de justiça (double standards), que para o analista americano seriam inevitáveis num mundo que vive em choque de civilizações.


Seria mais civilizado que um intelectual conclamasse as partes em conflito – as duas partes – a uma reflexão de justiça. Com certeza, se a verdade dói, dói para os dois lados e dói mais para o lado que deliberadamente rompeu com todos os interditos de humanidade e admite o assassinato como tática.


Seria mais civilizado que Edgar Morin conclamasse, ainda hoje, o Hamas à renúncia unilateral de toda e qualquer ação terrorista e à aceitação unilateral do direito de Israel a existir como Estado. Qualquer manifesto de convite à paz procuraria reformular, até mesmo lingüisticamente, o conflito, substituindo toda metáfora agressiva por outras mais humanas, menos militares. Um divórcio litigioso, um problema de vizinhança, qualquer metáfora menos fatalista que a da doença grave e eventualmente terminal.


Mas esse não seria o jovem estalinista desesperado que parece ter ressuscitado no octogenário Edgar Morin.


(e) Morin explica Morin


Parece incrível que o intelectual refinado que assinou O paradigma perdido seja o mesmo autor de ‘Israel-Palestina: o câncer’. Compreender é preciso. Não para perdoar, mas para aprender com o autor. Aprenderemos com ele a negar legitimidade a esse agressivo manifesto de 2002. Vale recuperar como patrimônio ilustrado a crítica pungente que fez o intelectual de ontem sobre sua militância estalinista, em obra escrita em 1958 [MORIN, Edgar. Autocrítica. Trad. Janine Muls de Liarás y Jaime Liarás Garcia. Barcelona: Kairós, 1976 (Original de 1970: Autocritique.)]. Morin reflete sobre os motivos que o teriam levado a militar por dez anos num partido estalinista, considerado por ele sugestivamente como organização guiada pelo princípio do ‘câncer’ (p. 204). O depoimento é verdadeiro, não imputa tudo a circunstâncias objetivas, ao espírito daquele tempo, pois reconhece que havia alternativas, como quando se pergunta ‘por que não me tornei trotskista’? E responde, porque o moralismo trotskista era incompatível com sua personalidade trágica, fatalista, de um ‘pessimismo congênito’. Seu complexo messiânico-masoquista sempre exerceu forte influência sobre suas atitudes, o que exemplifica lembrando que




‘em 1940, estava disposto a suportar o nazismo como se fosse um brutal ardil da razão histórica que abriria caminho ao socialismo. Em 1941-1942, o estalinismo se reabilitou diante de meus olhos, porque oferecia resistência à prova de força. A partir de 1949, permaneci em estado de catalepsia no partido até minha exclusão. (p. 275).


O marxismo, tornado religião, respondia à necessidade de vencer o nada, o desespero. Era uma espécie de ‘evangelho segundo São Marx’. O que regulava a militância era uma uma vulgata marxista, e esta era uma espécie de ‘bíblia interior’, feita de ‘um marxismo vulgarizado, abastardado, repleto de ingredientes decadentes e neomedievais, um sincretismo que se cuidava de erigir em síntese racional’. Essa vulgata justificava a existência do partido como ardil da razão (pp. 61/2). A dialética dos ardis da razão era um misto de idealismo e religiosidade que, com o tempo, ‘levaria necessariamente ao credo quia absurdum: tem-se razão em não ter razão, com o partido; não se tem razão em ter razão, contra o partido’ (p. 65).


O que resulta ‘verdadeiramente admirável’ nessa dialética é que ‘sempre se pode justificar tudo’ (p. 67). A forma de argumentação do estalinismo intelectual é também dissecada com notável lucidez por Morin. O ‘materialismo histórico se convertia num determinismo mecânico que, por sua vez, se degradava em fatalismo; a antropologia se via avassalada por uma mística em que progressivamente os argumentos-translação e as metáforas se substituíam às noções’ (p. 163). Modernizado, um raciocínio típico do argumento-translação, de feitio sofístico e que jamais responde sim ou não a um problema moral, seria algo como: O terrorismo mata crianças e mulheres, civis em trens e cafés, e isso é absolutamente imoral? Responderia a vulgata hoje: mas do outro lado não estão matando?


Junte-se a essa sofística argumentativa o princípio de que o estalinismo ‘aceitava a violência na história, aplicava o fórceps para ajudar o nascimento da história’ (p. 62), e retirava a moral por absoluto do domínio político.




‘Éramos naturalmente impelidos a desacreditar toda moral. Esta não podia ser mais que sentimentalismo, subjetivismo, medo da realidade. (…) A moral ficava, pois, totalmente identificada com a política. Política que era, por seu turno, totalmente identificada com a eficiência. O proletariado, lançado num mundo de violência e mentira, via-se obrigado a retornar contra o inimigo as mesmas armas deste. A moral significava, pois, eficiência. Para ser mais preciso: a eficiência de guerra’.


A verdade está ‘do lado em que a gente está’, tudo vale em favor dos oprimidos. Não há mais tabus, interditos, tudo é possível, tudo é legítimo, desde que tático. Uma dialética desse tipo normalmente responde a certos traços de personalidade desesperançados, fatalistas, que tendem à recusa do presente em nome de uma redenção, individual e coletiva, no futuro. O militante despreza a vida, própria e dos outros, porque o sacrifício pela causa e pelo ‘futuro absoluto’ é heróico.


A militância estalinista é perfeita para os que adotam ‘cruzadas’ contra o mal, unindo traços masoquistas e narcisistas de personalidade a soluções messiânicas e extremistas. Seu ‘pessimismo congênito’ se transmuda em misticismo do sacrifício. Um certo narcisismo também está presente: os comunistas, afirma, ‘éramos os melhores, os mais generosos, os mais lúcidos, pensava eu, contemplando-me ao espelho’. E sempre dispostos a imaginar que seriam os herdeiros de todos os grandes mártires da história universal.




‘Estávamos totalmente convencidos de ser os delegados de todas as vítimas da opressão no mundo. Estávamos seguros de que a mínima das nossas ações, inclusive torpe ou brutal, apressava a emancipação de toda a humanidade’. (p. 88)


Da situação política propriamente, depõe Morin com autenticidade, quase nada compreendia. Nesses dez anos de ‘catalepsia’, fora absolutamente ‘incapaz de análise política, de crítica política’ porque ‘reduzia do modo mais natural todos os problemas a critérios de necessidade e de moral militares’.


Morin relata seu processo de exclusão do partido, que era seio materno e autoridade de pai, quase como uma rebeldia inconsciente contra essa catalepsia. Não que tivesse acordado de repente: não queria ser excluído, mas ao mesmo tempo foi excluído porque quis. Para acordar mesmo, declara que precisou de um fato exterior do peso das revelações de Kruschev no 20º Congresso do PCUS, em 1956. Então começou a descongelar, então começou a tentar compreender melhor, sobretudo valorizando Freud, completamente ignorado pela vulgata marxista. Freud incitaria os intelectuais estalinistas a uma reflexão mais humana, como a compreensão do par barbárie-civilização que não é jamais maniqueísta, porque sob o verniz muito fino de civilização se revolve um subterrâneo bárbaro. Como ainda acontece hoje. Pena que no manifesto à ação política contra Israel não se apresente o intelectual lúcido da Autocritique, mas o jovem fatalista, desesperado e maniqueísta daquele tempo de ‘catalepsia’.


Morin tirou da panela da esquerda européia pós-moderna o caldo de todos os preconceitos e simplificações grosseiras que vêm servindo para canalização (sem nenhuma sublimação cultural) de instintos agressivos. Leneide Duarte-Plon considerou a condenação ‘liberticida’ e o texto brilhante. Mas pode-se ler sua comunicação como tradução do senso-comum da esquerda pós-moderna dos fóruns regionais ou mundiais. Em grosso resumo, um discurso de esquerda fundamentalista que defende sub-repticiamente o racismo, desde que seja o racismo para o Bem: falar mal de árabe é politicamente incorreto, logo é crime e esses dinamarqueses com certeza estão associados à extrema-direita chauvinista. Mas: falar mal de judeus é afirmação de liberdade diante de um povo que se vitimiza como intolerável chantagem para não ouvir as verdades que a esquerda lhes diria.


Mas será que uma verdade-mais-verdadeira (se me permita a redundância) doeria tanto a Israel? E a mais ninguém? É sempre lícito duvidar, e mais que ilustrado, porque justo.


O que se tem aqui é um senso-comum de esquerda que embora nominalmente critique o que seria um ‘discurso imperialista’ do choque de civilizações toma-o à risca em seu fatalismo e agressividade.


Choque de civilizações?


Urge que façamos algo que nem todo mundo fortemente influenciado pelo título de Samuel Huntington fez: ultrapassar o título. O artigo celebrizou-se com certeza muito mais pelo título que pelo conteúdo. No geral, parte de uma leitura correta da situação política pós-moderna mas retira dela deduções simplistas.


Com o fim da Guerra Fria, a queda do muro de Berlim e a queda do Império soviético, o conflito ideológico (comunismo x capitalismo) foi substituído pelo renascimento dos nacionalismos e pelas afirmações de identidades locais, unidas por vínculos religiosos e comunitários. Numa descrição metafórica afirma-se, por exemplo, que ‘a cortina de veludo da cultura substituiu a cortina de ferro da ideologia como a linha divisória mais significativa da Europa’. O mapa geopolítico pós-moderno seria dividido em grandes civilizações, e não mais em dois blocos ideológicos. As grandes civilizações seriam sete ou oito, e poderiam ser identificadas como a ‘ocidental, a confuciana, a japonesa, a islâmica, a hindu, a eslavo-ortodoxa, a latino-americana e possivelmente a africana’.


Desde que os laços culturais seriam mais fortes que os ideológicos, Huntington profetiza que o mundo global será um mundo em ‘choque de civilizações’. Sequer um padrão universal de justiça será possível, porque um mundo desses é ‘inevitavelmente um mundo de duplos padrões (double standards)’. Embora a diversidade pareça relativamente grande, porque afinal seriam sete ou oito grandes civilizações, quando aprecia o mapa geopolítico Huntington retorna à bipolaridade: no frigir dos ovos, o mundo se divide mesmo é entre o Ocidente (the West, que parece compreender os EUA e a Europa) e o Resto (the Rest). Finaliza conclamando o Ocidente ao ‘esforço de identificar elementos comuns com outras civilizações’. O que evidentemente é um fechamento retórico, porque a conclusão do seu artigo é mesmo uma receita geopolítica para sobrevivência do Ocidente: dividir para imperar.


Huntington é explícito ao recomendar que o Ocidente fomente divisões entre o mundo islâmico e o confuciano, por exemplo, para enfraquecê-los e evitar que se construam num novo ‘bloco’ de poder, ao mesmo tempo em que procure co-optar civilizações simpáticas ao Ocidente.


Crítica a Huntington


O que não fica muito evidente é que o Ocidente (leia-se Estados Unidos e Europa) deva promover uma intensificação de diferenças, dividindo para imperar, entre os inimigos, e cooptando povos amigos. A tática é nitidamente imperial. Por outro lado a própria divisão de civilizações peca por não explicar exatamente o que assemelha e o que distingue os subgrupos. A Venezuela de um Chávez, por exemplo, assemelha-se muito mais a novíssimas ditaduras fundamentalistas do que ao Brasil.


Por sua vez, a visão casuística de Huntington peca por falta de familiaridade com as civilizações observadas. O México de Salinas, observado como um país que se inclinava para o lado dos Estados Unidos em 1993, em realidade já estava às portas de uma grave convulsão social que explodiu na virada do ano, no estado de Chiapas. Seria como se considerasse que o Irã de Pahlevi era um Estado que se orientava amigavelmente para o Ocidente, quando em realidade estava sendo ‘ocidentoxicado’ (a metáfora foi muito usada na Revolução iraniana, e é correta do ponto de vista descritivo de uma ocidentalização opressiva que fomenta revoluções, conforme ARMSTRONG, Karen. Em Nome de Deus – O Fundamentalismo no Judaísmo, no Cristianismo e no Islamismo. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 337).


Talvez fosse muito mais produtivo que o diagnóstico do mundo político, já que resumido numa bipolaridade, fosse traçado em linguagem política mais segura: com o declínio das grandes ideologias que sustentaram a Guerra Fria, restam no mundo Estados que se inclinam para a democracia-liberal (inclinar-se é uma palavra ambígua, mas traduz suficientemente o fato de que há diferentes gradações de inclinação, dependendo da intensidade com que a democracia-liberal esteja enraizada nas tradições locais, seja de qual civilização for, até porque não é impossível que exista uma civilização muçulmana e democrática e liberal) e outros que vêm se inclinando para regimes antidemocráticos e anti-liberais (será mais conveniente, para evitar rótulos, deixar de dizer que espécies de regimes são esses, até porque podem variar desde ditaduras fundamentalistas até democracias ocidentais acometidas de reveses ditatoriais/demagógicos).


Por seu turno, talvez o diagnóstico cultural também deva ser mais seguro, concebendo a civilização no sentido freudiano. Aí se verá que nas civilizações ocidentais e que possuem tradições democrático-liberais mais ou menos enraizadas também são possíveis (e têm sido evidentemente mais que possíveis) reveses de barbárie.


Não é inevitável que civilizações colidam. Até porque possivelmente não são as civilizações que colidem (clash), são os subterrâneos bárbaros de cada uma das civilizações que colidem entre si. Mas se o poder do Ocidente (leia-se: dos Estados Unidos da América) tiver de entrar em guerra para resgatar qualquer civilização do mundo de uma ditadura fundamentalista que se torne genocida, é preciso reconhecer os fatos, por menos que a esquerda performático-autoritária pós-moderna os recuse: qualquer pessoa comprometida com a paz e com a liberdade lhe dirá que ‘seja bem-vindo’. Mas recomendável seria que todos no globo tivessem direito de ‘voz’, para tentar algo que nem sempre os poderosos conseguem exercer: a insistência na solução pacífica, na conversa diplomática. O mundo todo se ressente de liberalismo político, inclusive o Ocidente.


Tentativa de compreensão do negacionismo


Discursos fatalistas precisam apelar à guerra. Não é casual que o pacifisca Morin troque a compreensão freudiana do par de categorias civilização-barbárie pelo mais simplificado ‘choque’. Mais simplificado ainda que a geopolítica de Huntington, porque seu choque de civilizações se daria entre os Pobres e os Ricos, o Oriente e o Ocidente, os Religiosos e os Laicos. Difícil escolher o que é pior em texto tão curto. Mas certamente o que mais exige esforço compreensivo é a trivialização da Shoah.


Morin recusa-lhe o nome hebraico, mesmo pagando o preço de ser tido como um ‘mau judeu’, porque Holocausto seria mais ‘universal’, mais facilmente equiparável a tantas opressões de outras tantas vítimas. Pode ser, contudo, que Morin se tenha esquecido da sabedoria do Nathan de Lessing: não é sua ideologia que faz bom ao judeu, o que o faz bom é o mesmo que faz bom ao cristão: sua bondade. O bom cristão tem direito de insistir no nome hebraico: Shoah. O nome tem algo de divino, é o nome singular de um evento que está ‘além da História’ o que lhe assegura unicidade.


A trivialização do Holocausto, sob quaisquer das formas apresentadas no discurso da esquerda identitária pós-moderna, é intelectualmente pobre, moralmente indefensável, religiosamente sacrílega. As políticas identitárias adentraram o cenário pós-moderno com muita legitimidade, mas como sói acontecer às ideologias também com a força dos modismos intelectuais e suas simplificações grosseiras. Uma delas é a ‘igualdade’ de todos os excluídos, generalizada sobre falsas analogias.


É absolutamente falso, por exemplo, equiparar um projeto de assassinato massivo dirigido a um povo e concretizado na câmara de gás ao sofrimento imemorial da raça negra pela escravização, porque esta, como sistema de opressão econômica, é ainda um fato histórico, um sistema econômico de exploração conhecido e praticado, aliás, na África antes das primeiras levas de escravos à América (cito fonte idônea, que pode ser até reacionária, mas não deturpa fatos históricos, Gilberto Freyre: ‘a transferência de afro-negros, como escravos, da África para o Brasil, ocorreu em termos, para sociedades africanas, socialmente normais’. Insurgências e Ressurgências atuais. Rio de Janeiro: Globo, 1983, p. 230). Não é homenagem aos outros excluídos trivializar o Holocausto porque per accidens, depois de criada e implementada a máquina de assassinar em massa criada em essência para a Solução Final da questão judaica, todo tipo de indesejáveis tenha sido ‘incluído’, entre os quais ciganos, homossexuais, deficientes mentais.


Sacrílego sucumbir à pobreza das falsas analogias meramente quantitativas, a macabra guerra dos números. Porque se milhões de combatentes morreram em guerras desde sempre, isso não entra em analogia, salvo com o erro lógico da migração para outro gênero, com o assassinato massivo de inocentes. É grosso equívoco sugerir que o Holocausto seja uma ‘intolerável chantagem’ porque Auschwitz não é, por excelência, o símbolo de identidade coletiva dos judeus. Agnes Heller, no belíssimo ensaio A Ressurreição de Jesus judeu, afirma com toda propriedade que Auschwitz deve ser alçado à condição de símbolo religioso, mas não para a identidade coletiva dos judeus e sim nossa (dos gentios). Para os judeus, afirma Heller, não é Auschwitz, mas Jerusalém o símbolo da identidade coletiva. (cf. em especial o capítulo ‘Auschwitz und Jerusalem’ pp. 91-102 de HELLER, Agnes. Die Auferstehung des jüdischen Jesus. trad. do húngaro por Christina Kunze. Viena: Philo, 2002).


É óbvio que dizer isso não retira dos judeus o direito de manterem a Shoah eternamente viva na memória coletiva universal. É direito de toda vítima, até porque é crime que não prescreve, é crime que – como afirmava Arendt, nem se pode esquecer nem perdoar. Mais vigilante se precisa ser quando mais fortes aparecem tendências esquecionistas (o nome certo deve ser conferido pelo fim almejado), que admitem versões mais sofisticadas (o negacionismo intelectual) e mais brutas. Messadié registra, em capítulo que fecha sua História Geral do Anti-Semitismo, essa tendência mais brutal:




‘Menos de 20 anos depois da guerra, o horror da Shoah (…) desencadeou uma reação de defesa entre os que continuaram ruminando um anti-semitismo e um racismo secretos. De uma forma muito mais primária, essa reação desenvolveu-se na juventude, de início sob a aparência de uma moda: tráfico de insígnias nazistas, trajes absurdos ou simplesmente ridículos, crânios raspados, botas e casquetes de SS, tatuagens de broncos, em suma, toda uma exaltação primária de pseudomachos possuídos por um narcisismo igualmente primário.’ (MESSADIÉ, Gerald. História Geral do Anti-Semitismo. trad. Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 405).


A trivialização intelectual do Holocausto, presente explicitamente no panfleto de Morin, é sintomática de neurose negacionista. Arriscaria uma hipótese, inspirada em Freud, para sua compreensão. O Holocausto é um evento que ‘salta’ para fora da História. É a transgressão absoluta. Na consciência coletiva dos povos cristãos, a consciência da culpabilidade absoluta jaz eternamente adormecida. Ela retornou, principalmente no século 20, nas grandes empreitadas de compreensão do fenômeno totalitário, como sublimação cultural. Herdamos aqui um valiosíssimo patrimônio civilizatório, de que refiro dois pontos representativos tão afastados no tempo quanto As Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt, de 1950, e a proposta de compreensão de Norbert Elias, em Os Alemães, de publicação original no final do século, em 1992. Cada qual a seu modo aspira à conciliação com o passado, eternamente presente, do Holocausto. Toda compreensão é matriz de esperança. Ainda assim toda compreensão meramente intelectual esbarra na impossibilidade de compreender completamente.


Talvez o passo seguinte seja mesmo o de tentarmos completar a sempre limitada sublimação intelectual pela sublimação religiosa. No início do século 21, Agnes Heller propõe o retorno dessa Shoah eternamente presente na consciência coletiva como sublimação religiosa.


Pessoalmente experimentei a verdade dessa sublimação religiosa ao visitar o Museu do Holocausto, em Washington: ele não é um museu histórico, como a palavra museu sugere, ele é antes um ‘templo’ dedicado à reflexão. No mesmo sentido, a leitura da História da Alemanha desde 1789, de Gollo Mann, convenceu-me de que a categoria do ‘salto’ de Kierkegaard, aplicada por Heller ao Holocausto (um ‘salto’ para o Mal), era igualmente verdadeira. Gollo Mann recusa-se a historiar, como apenas um capítulo numa série de outros eventos históricos, a Solução Final.


As duas formas de sublimação dessa culpabilidade absoluta seriam formas ‘saudáveis’ de transformar essa consciência de culpa, guiadas pelo poderoso instinto de Vida, pacificador.


Mas tem um porém. Não sabemos exatamente por que, algumas células sociais fracassam na sublimação compreensiva (cultural) ou religiosa da culpabilidade absoluta e retornam como agressividade. É possível que labore aqui um aspecto de ‘frustração intelectual’ bem apontado por Heller em ‘911, ou Modernidade e Terror‘ (já referido). É possível também que esse fracasso esteja relacionado com o aspecto essencialmente narcisista presente em potência em toda política identitária. Toda política identitária pode ser desenvolvida até os extremos de um comunitarismo anti-liberal muito pouco republicano (no sentido de lutar pelo que é comum a todos, a res publica). Qualquer fanatismo aqui seria expressão de ‘fracasso’ na sublimação.


Quem tiver experiência no foro criminal saberá de criminosos que negam peremptoriamente, diante de toda evidência, a brutalidade do ato que lhes é imputado. A negação talvez seja um poderoso mecanismo de defesa do ego para poder sobreviver. Essa negação denuncia, porém, ainda que neuroticamente, a consciência do tabu, da interdição, e lá muito no fundo, a consciência da transgressão. Coletivamente talvez se passe algo semelhante. Edgar Morin adotou, num mecanismo retórico de legitimação, esse retorno neurótico da culpabilidade absoluta que seria essencialmente cristão. É profunda a intuição de Françoise Giroud, que publicou alguns dias depois do manifesto de Morin um texto intitulado ‘Cette Shoah qui ne passe pas‘ (Le Monde, 13-6-2002), quando afirma que:




‘Acredito que os povos cristãos jamais engoliram a Shoah… essa revelação do mal no coração dos europeus criados na fé cristã (…) foi intolerável, insuportável, sufocante. A meu ver, é por essa razão que aqueles a quem chamamos negacionistas negam diante de todas as provas a realidade da Shoah’ (retraduzo a partir do inglês, versão disponível na rede mundial, tradução de Douglas, ‘The Shoah they can’t swallow’)


O negacionismo poderia ser identificado ao fracasso na sublimação de instintos agressivos, e esse fracasso em Freud está associado à patologia do narcisismo. Seguindo nesse desenvolvimento, chegaremos tão longe quanto identificarmos nessa neurose a ‘metáfora’ mais perigosa. Freud, ainda que de passagem, num de seus escritos referiu-se a uma possível analogia entre células narcisistas e o modo de multiplicação enlouquecido de neoformações malignas (FREUD, Sigmund. ‘Mas allá del principio del placer’. em Obras Completas en 3 Tomos, trad. Luis López-Ballesteros y de Torres, Madrid, Biblioteca Nueva, 1996, Tomo 3, p. 2.533).


A analogia, porém, está longe da agressividade militarista. É uma analogia com fenômeno que o pai da psicanálise reconhece não compreender completamente: a reprodução quase que por contágio de células cancerígenas, que seriam neste sentido análogas a células narcisistas. Socialmente, já extraímos do estudo do caso Morin que o narcisismo intelectual está intimamente associado a concepções fatalistas, catastróficas da história, que clamariam por soluções radicais, redentoras, Para seguir humanizando ainda mais a metáfora militarista do câncer, precisamos esvaziar ainda mais essa concepção fatalista do ‘choque’ de civilizações. Precisamos, em resumo, retornar mais desde Morin e Huntington, a Sigmund Freud. Precisamos afirmar que:


Civilizações não se chocam (Civilizations do not clash)


São os subterrâneos bárbaros de todas as civilizações que se agridem injustamente. A visão de choque de civilizações de Huntington é imperial. Sua receita de paz é guerreira. É geopolítica de alto risco, e sempre impõe a dúvida sobre se de fato estaremos dividindo as barbáries para que impere a civilização, ou o contrário. Uma outra visão é possível. Proponho uma concepção humanista e republicana, como a de Euclides da Cunha.


Euclides não era republicano de modismos, chegou a dizer que era o ‘último’, um republicano romântico, reclamava que depois de feita a República havia republicanos demais, que todo mundo virou republicano. O cadete-repórter, forjado nesse criadouro de rebeldes que fora a Academia Militar da Praia Vermelha, embrenhou-se pelo sertão para cobrir o que seria em sua primeira concepção a nossa ‘Vendéia’, um foco de restauração monarquista. O correspondente de A Notícia descreve Euclides, repórter do Estado de S.Paulo, como o




‘distinto colega que, chegado ainda anteontem, se apresentou de vistosas botas de verniz, calça branca de fina seda e chapéu de fina palha. Bons tempos o esperam neste canto da Bahia, em que um banho constitui o x do mais complicado dos problemas.’ (citado em VENTURA, Roberto. Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha. Org. de Mario César Carvalho e José Carlos Barreto de Santana. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 167).


No curso da expedição, Euclides começa a deparar-se com a fragilidade de nossos conceitos de civilização, com a possibilidade de que extirpássemos um pedaço de sertão mais por medo do desconhecido que da barbárie que ele de fato pudesse representar. Euclides depara-se com a barbárie de modo interrogativo. Afinal, é sempre possível que o conflito fosse mesmo o choque de duas barbáries. Seu relato sobre a Campanha de Canudos (Os Sertões) foi sensivelmente interpretado pelo romancista húngaro Sándor Márai, que desenvolve, aliás, como tema central de seu romance o ‘banho em Canudos’ (MÁRAI, Sándor. Veredicto em Canudos. Tradução de Paulo Schiller (do original em húngaro: Ítélet Canudosban). São Paulo: Companhia das Letras, 2002).


Márai associa Canudos a uma poderosa metáfora, ao câncer. Porém aqui a mais militarista das metáforas despe-se de agressividade, porque o autor se enfrenta com a doença de modo humano, desmilitarizado. É interessante substituir a visão masoquista-messiânica e militarista de Morin por essa metáfora. Notável que Márai tenha feito o próprio Euclides da Cunha personagem de seu romance, que seria um complemento ‘fictício’ a’Os Sertões.


Era naquele desertão no Brasil onde ‘esses seres desgraçados que se arrastavam como animais na mata primitiva tinham fé – mesmo em meio à lama e aos dejetos – na Escritura, na verdade da Palavra dada, na força bíblica que proclamava que no princípio existia o Verbo, mais poderoso que o Corpo’ (Márai, op. cit. p. 29) que se lançava um republicano traído em seu ideal. Era em Canudos que outro dos personagens de civilização, médico, queria descobrir como se alcançava essa fé, que perdemos. A mulher dele, em interrogatório, conta que:




‘meu marido não queria decifrar o câncer, disse ao amigo que não tinha idéia do que fazer com esses doentes, por onde começar… Mas desejava descobrir por que num organismo que nos demais aspectos era saudável uma célula de repente enlouquecia e começava a crescer, se disseminar… e ninguém sabia a razão… (…) Ninguém sabia nada ao certo… Mas a célula crescia como um gigante entre anões… E a seu redor as demais células enlouqueciam e também começavam a crescer, se disseminar… Isso era o câncer. O amigo de meu marido falava muito disso… E um dia meu marido dissera que esse fenômeno existia não só no organismo de algumas pessoas, mas também na vida das sociedades, das nações… Entre milhões e milhões de células sadias aparecia uma que se insurgia. Tinha pensamentos diferentes das demais. E a transmissão era veloz. O país, o governo, as autoridades, ficavam impotentes como o médico. E porque não podiam fazer outra coisa, tomavam da faca e começavam a cortar… (Márai, op. cit. pp. 115-116).


Socialmente, células cancerígenas são células narcisistas que enlouquecem. São narcisistas por um fracasso na sublimação cultural e religiosa. Os fundamentalismos agressivos, que caricaturam as verdades de todas as religiões, podem ser metástases de focos primários. Os focos primários talvez sejam intelectuais.


A política pós-moderna acentua a metáfora e o silêncio em detrimento da palavra e do discurso. A legitimação política de hoje é midiático-performático-autoritária, versão que toma de empréstimo a Max Weber a dominação carismática, mas a Freud a chave da força desse carisma e de sua alta capacidade de contágio: é o apelo sempre renovado ao inconsciente social agressivo que é fonte de poder. Qualquer gesto, caricatura, cartoon, que mexam nesse terreno são perigosos. Joël Kotek – que colecionou cartoons antijudaicos, chega a concluir, com um pouco de razão, que ‘um cartoon é mais eficiente que um editorial’ (‘A caricature may have as much influence on public opinion as an editorial‘, fonte citada acima). Em Israel, como pode-se ler na ilustrada coleção de entrevistas realizadas por Guila Flint e Bila Sorj, a metáfora do câncer é vista nesse mesmo sentido profundamente humano de Márai. Haim Beer, escritor nascido em Jerusalém em 1945, fala de células fundamentalistas numa sociedade democrática como um perigo que pode acometer qualquer democracia-liberal moderna e ocidental:




‘A opção fundamentalista está presente em todas as culturas. … Não acredito que exista alguma cultura ou experiência que não contenha a opção fundamentalista. É como afirma um amigo médico: o homem sempre produz células cancerígenas, mas um corpo saudável possui um sistema de imunidade que as ataca e as destrói antes que elas proliferem.’ (Entrevista a FLINT, Guila & SORJ, Bila Grin. Em Israel – Terra em Transe: Democracia ou Teocracia? Tradução Yara Nagelschmidt. Fotos Efrat Tordjman. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 351pp. Aqui p. 315).


Células terroristas são células nutridas por narcisismo intelectual. Este é o foco primário do câncer. Mas nem por isso deveremos sucumbir à fatalidade. O câncer já perde, hoje, muito de sua crueldade e injustiça como metáfora porque avançamos no conhecimento e na cura. Já não é o inimigo bárbaro de um corpo civilizado.


Um verdadeiro manifesto pacifista não deve ser dirigido primariamente a governantes eventualmente desesperados em tentativas sempre falíveis e potencialmente ineficientes de proteger seus cidadãos. Deve ser dirigido, primariamente, aos intelectuais de Ocidente e Oriente. Deve convocá-los a responderem com autenticidade (sem meias-respostas, sem argumentos-translação que devolvam um pergunta retórica, sem truques de razão dialética) a uma pergunta fundamental: se eles são suficientemente civilizados para admitirem que recusam, absolutamente, o terrorismo como ação política.


Enquanto não responderem, teremos toda legitimidade em desconfiar de quem se apresenta como vítima de chantagens intoleráveis. Pode ser que alguns discursos da esquerda pós-moderna, em sua forma midiático-performático-autoritária de razão, sejam canalizações de um instinto agressivo que fracassou na sublimação cultural e religiosa. Pode ser que Morin não seja um Dreyfuss às avessas; pode ser que a esquerda européia reclame injustamente de ‘assédio’ ou histeria judiciária.


Pode ser que na condenação de Morin se tenha visto apenas mais uma proposta, sempre falível, nem sempre eficiente, de veto civilizado à soberba encrustada profundamente na razão ocidental. E a soberba, o que é?


Agostinho a definiu muito bem: é conhecimento sem amor, sem bondade (Cidade de Deus, I Parte, Livro IX, capítulo 20).

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Procurador da República, mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e em Filosofia pela New School for Social Research (Nova York, EUA), autor de Democracia ou Fundamentalismo? Esboços de compreensão política. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004