Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Carta Capital


TELINHA
Leandro Fortes


Rigor contra a baixaria, 12/7/06


‘No início dos anos 80, um fantasma com nome e sobrenome pairava sobre a
produção artística brasileira: Solange Maria Teixeira Hernandes, a severa ‘Dona
Solange’, da Censura Federal de Brasília. Na época, para não afrontar a ditadura
militar, os produtores nacionais de cinema investiam nas pornochanchadas, mas a
censura, ainda assim, era implacável. O clássico Bacanal de Colegiais, por
exemplo, produzido pelo cineasta Juan Bajon, sofreu um corte da zelosa censora
em termos inesquecíveis, em agosto de 1983. Assim escreveu Dona Solange:
‘Suprimir enfoque do órgão sexual masculino, eliminando a tomada em que o rapaz
carrega a mulher para a cama, expondo o falo’.


Fator educativo.


A Constituição de 1988 encerrou a carreira de Dona Solange e, oficialmente,
acabou com a censura prévia no Brasil para dar lugar ao que se convencionou
chamar de ‘classificação indicativa’, não obrigatória. Foi uma forma de o Estado
regular, minimamente, o conteúdo das produções de tevê e cinema colocado à
disposição, principalmente, dos jovens brasileiros. Para os donos de emissoras
de radiodifusão, no entanto, classificação indicativa é, até hoje, uma forma
mascarada de censura.


Na próxima semana, um manual preparado pelo Ministério da Justiça vai tentar
mediar esse conflito e se livrar dessa pecha. Além de construir critérios mais
objetivos para graduação de faixas etárias, vai criar um selo novo, o de
‘Especialmente Recomendado’. O ‘ER’ vai privilegiar produções que tragam
mensagens ‘positivas’, mas pode abrir uma nova polêmica sobre a utilização
política da nova faixa classificatória.


‘A comparação com censura sempre foi motivo para não se fazer essa discussão,
por parte das radiodifusoras’, explica José Elias Romão, diretor do Departamento
de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação (Dejus) do Ministério da
Justiça. Advogado especialista em direitos humanos e professor do curso de
Direito do Instituto de Ensino Superior de Brasília (Iesb), Romão tem 32 anos,
uma filha de 2 e uma convicção: não é possível delegar às emissoras controle
absoluto sobre os horários em que certos programas podem passar na televisão.


Certo de que será sempre criticado, ele lembra que essa opinião não é dele,
nem muito menos do governo Luiz Inácio Lula da Silva. Na verdade, começou no
governo do arquiinimigo dos petistas, Fernando Henrique Cardoso, também pelas
mãos de um velho combatente de direitos humanos, o ex-ministro da Justiça José
Gregori. Ele é autor da Portaria 796, de 2000, que garantiu a participação do
Ministério Público Federal na fiscalização dos parâmetros estabelecidos pela
classificação indicativa.


O Ministério da Justiça faz a classificação do programa e monitora a
aplicação da norma, sem, no entanto, possuir poder de intervenção. Isso vai
continuar do jeito que está. Quando uma emissora sai da linha, os técnicos do
ministério registram a infração, preparam uma notificação e encaminham o assunto
para os ministérios públicos federal e estaduais. O MPF inicia um procedimento
judicial para responsabilizar a emissora com base nas obrigações que as empresas
de radiodifusão têm por serem concessionárias públicas. Os ministérios públicos
dos estados ficam responsáveis pelas multas, que podem ser de até 200 salários
mínimos (70 mil reais) e resultar na suspensão da programação colocada no ar
fora da faixa classificada.


Essa ação do MP visa suprir a falta de uma legislação eficiente capaz de
punir com rigor os infratores. Caso emblemático é o da fraude montada, em 2004,
pelo apresentador Gugu Liberato no programa Domingo Legal, do SBT. Na época,
Gugu forjou uma entrevista com supostos integrantes de uma organização
criminosa. Mesmo diante da gravidade do caso, o Ministério das Comunicações
aplicou uma multa de apenas 1.482 reais à emissora de Silvio Santos. A
intervenção do Ministério Público, contudo, forçou a suspensão do programa em um
fim de semana, o que provocou um prejuízo razoável com a perda de anunciantes e
uma quebra irreversível na credibilidade do apresentador.


Com o novo manual, o Ministério da Justiça espera acabar com os conceitos
subjetivos que norteavam os trabalhos de classificação indicativa de filmes de
cinema, espetáculos públicos, jogos eletrônicos e programas de emissoras de
rádio e tevê. Herança da ditadura militar, os critérios usados pelos analistas
eram divididos em: conflitos psicológicos, tensão, desvirtuamento de valores
éticos (que incluía homossexualidade), sexo, drogas e violência. Os três
primeiros conceitos foram abolidos, para início de conversa, que, aliás, incluiu
a participação de setores da sociedade, pela primeira vez.


‘Essas coisas só eram levadas em conta porque, justamente, não havia
participação das pessoas no processo’, avalia Romão. Também se decidiu pela
mudança de procedimentos primários. As sinopses de filmes, por exemplo, deixarão
de ser o principal elo entre os produtores e os classificadores. A prioridade
será a avaliação do filme pronto, não mais o resumo enviado pelos produtores. O
envio de sinopses não será proibido, mas quem optar por esse expediente terá de
fazer uma autoclassificação prévia da obra, dentro dos novos critérios previstos
no manual, a ser distribuído, gratuitamente, pelo Ministério da Justiça. Além
disso, todos os textos serão colocados no site do Dejus
(www.justica.gov.br/classificacao) para análise de qualquer cidadão, que também
poderá acessar o conteúdo do manual.


As emissoras não podem ter controle total


‘A participação da sociedade já é um grande avanço’, afirma o deputado
Orlando Fantazzini (PSOL-SP), idealizador do movimento ‘Quem financia a baixaria
é contra a cidadania’. Segundo ele, a classificação indicativa ajuda, mas está
longe de ser uma solução definitiva para o problema de conteúdo das tevês. ‘As
emissoras sempre dão um jeito de colocar no ar o que querem, ainda que em outros
horários’, diz o parlamentar.


As bases científicas para a elaboração do manual e, por conseguinte, da nova
política de classificação, saíram de uma consulta pública preparada pelo Dejus.
Entre 19 de setembro e 20 de dezembro de 2005, foram distribuídos 12.660
questionários com nove perguntas sobre o que a população brasileira pensava e
esperava da classificação indicativa de tevê. Os questionamentos também foram
disponibilizados no site do Ministério da Justiça, onde mais de 10 mil pessoas
se dispuseram a respondê-los. De acordo com o levantamento, 57% dos
participantes vêem a classificação como um serviço cujo objetivo é o de proteger
crianças e adolescentes. Outros 25% disseram que, além disso, ele servirá para
controlar a qualidade da programação e defender os direitos humanos.


Antes da consulta pública, o Dejus coordenou, por quatro meses, de abril a
agosto de 2005, cinco reuniões de um grupo de trabalho formado por
representantes das emissoras de televisão, dos Poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário, do Ministério Público, especialistas na área audiovisual e ONGs. Só
então partiu para a elaboração do manual com parâmetros a serem usados para
classificar a programação veiculada na tevê. ‘Agora, as emissoras também vão
participar do processo de classificação’, afirma o diretor do Dejus.


‘Nunca fui consultado a respeito, nem sei de alguém aqui da associação que
tenha sido’, dispara Amilcare Dallevo, presidente da Rede TV! e da Associação
Brasileira de Radiodifusores (Abra), que congrega, também, a Rede Bandeirantes.
Dallevo, no entanto, sabe da confecção do novo manual de classificação
indicativa, mas desconfia das intenções do texto. ‘Existe uma linha muito tênue
entre classificação e censura’, argumenta. ‘Não queremos uma nova Dona Solange,
mas o direito de a sociedade decidir, via controle remoto, o que quer assistir
ou não.’


A birra da Abra tem fundamentos próprios. O programa humorístico Pânico na
TV, de maior audiência da emissora de Amilcare Dallevo, foi mudado de faixa
(livre) e horário (18 horas), para 12 anos, só podendo ser veiculado a partir
das 20 horas. A alteração, segundo o Dejus, foi feita porque os humoristas
humilhavam anões e tratavam as mulheres como objetos sexuais. ‘Eles fizeram isso
por causa do tamanho do biquíni da Sabrina Sato’, explica Dallevo. Segundo o
empresário, havia brincadeira com anões, como poderia haver com homens de mais
de 2 metros de altura. ‘Daqui a pouco, não será possível fazer humor no Brasil’,
reclama.


Alheios à choradeira das emissoras, os analistas do Dejus trabalham em dupla,
uma novidade aplicada ao sistema a partir do governo Lula. Com o manual na mão,
cada um vai estabelecer um juízo de valor em separado. Se coincidirem, por
exemplo, na opinião de que um programa deverá ser classificado na faixa de 16
anos, o relatório será encaminhado à direção do Dejus. Se houver divergência
entre eles, o processo será refeito. Caso o impasse continue, o departamento
convocará um conselho de colaboradores, formado por servidores públicos,
estudantes, donas de casa e jornalistas, para assistir e dar um parecer final.
‘Muitos vêm para ver filmes de graça’, diverte-se José Romão. ‘Mas também não
recebem nada, a não ser a pipoca, que a gente faz aqui no microondas.’


Protesto.


Nem sempre, no entanto, as faixas de classificação agradam aos produtores ou
diretores de emissoras. Os recursos são acatados de imediato e apreciados por
José Romão e seus assessores mais próximos dentro do Dejus. ‘Isso joga sobre mim
uma pressão enorme’, reconhece Romão. ‘Mas agora, com o manual, todas as razões
são técnicas, não há espaço para subjetividade’. Em alguns casos, ocorre
justamente o contrário. No ano passado, o longa-metragem Meninas, de Sandra
Werneck, que trata do tema gravidez na adolescência, foi encaminhado ao Dejus
com uma auto-classificação de 12 anos. Os analistas, depois de perceberem o
conteúdo educativo do filme, rebaixaram a faixa para ‘livre’.


A grande novidade do manual é a implantação do selo ‘Especialmente
Recomendado’. A idéia, segundo o diretor do Dejus, é privilegiar produções
voltadas para crianças e adolescentes que contenham, prioritariamente, conteúdos
‘positivos’, como ações contrárias a tráfico de drogas e seres humanos, trabalho
infantil e escravo, homofobia e racismo. ‘Isso não significa que vamos acalentar
qualquer bobagem politicamente correta’, avisa Romão. No futuro, as produções
que entrarem na faixa ER poderão ficar isentas ou terem redução da taxa de
distribuição paga ao Ministério da Cultura, a depender de um estudo ainda em
andamento no governo.


O diretor da Dejus também quer evitar a possibilidade de uso político das
produções, sobretudo de artistas interessados em receber um selo de
‘Especialmente Recomendado’ por conta de ligações com o governo. ‘Nossa análise,
como tudo o mais, será feita dentro dos parâmetros do manual’, informa. Para dar
o exemplo, a primeira obra a receber essa autorização de faixa será a coletânea
de desenhos infantis Juro Que Vi, sobre figuras do folclore brasileiro, como
Curupira, Iara e o Boto da Amazônia. Os filmes foram produzidos pela prefeitura
do Rio de Janeiro, onde está encastelado um dos mais ferrenhos críticos do PT e
do governo Lula, o prefeito Cesar Maia, do PFL.


Outra novidade prevista no manual de classificação indicativa é a introdução
da faixa etária de 10 anos, a ser distribuída em qualquer horário da grade de
programação. ‘A única diferença é que os programas dessa faixa terão de ter um
aviso nesse sentido, para que os pais saibam’, diz José Romão. Ele reconhece, no
entanto, ser complicado para os pais controlarem o que os filhos vêem na tevê
aberta, pelo menos até as 20 horas. ‘Depois desse horário, pode-se presumir que
a criança terá algum tipo de companhia em casa.’


Essa presunção parte da lógica de que os pais voltam para casa depois do
trabalho. Como nem sempre é assim, o Ministério da Justiça também aposta na
tecnologia para ajudar a controlar o acesso de crianças e adolescentes a
produções ‘inadequadas’. Trata-se do V-chip, mecanismo de controle a ser
adaptado aos aparelhos de tevê brasileiros pelos fabricantes até o fim do ano. O
mecanismo serve para selecionar, por meio de um decodificador, a programação das
tevês a partir do controle de sinais de cada programa. Romão admite, no entanto,
que os testes feitos com V-chips nos Estados Unidos e no Canadá deixaram muito a
desejar.


Com as novas regras, outra novidade com potencial polêmico: qualquer criança,
de qualquer idade, poderá entrar no cinema nos filmes classificados na faixa de
16 anos. Para tal, deverá estar acompanhada pelos pais, e estes terão de
preencher um documento, na porta do cinema, responsabilizando-se pela presença
do filho. ‘Isso é a democracia’, explica José Romão. Problema de comportamento
da criançada mais nova, explica, se houver, ficará por conta da responsabilidade
dos pais e a administração do cinema. Nos filmes de 18 anos, vale a regra da
maioridade, sem chances para quem ainda não chegou lá. Nesses, nem pai nem mãe
podem ajudar a entrar.


ONTEM CENSORES, HOJE ANALISTAS


O perfil dos profissionais encarregados da classificação


Otávio, 20 anos, ganha 390 reais e assiste a cerca de 50 filmes por mês


Metido em uma saleta de paredes de fórmica, Otávio Chamorro Mendoza, 20 anos,
tem um emprego aparentemente ótimo. Estagiário do Departamento de Classificação
do Ministério da Justiça, ele passa as tardes vendo filmes, lendo sinopses e
monitorando programas de tevê. Em pouco mais de um ano, tornou-se um dos mais
dedicados e requisitados analistas do lugar, mas não consegue mais ir ao cinema
como um ser humano normal. ‘Sem querer, me pego analisando o conteúdo do filme,
pensando em inadequações para a faixa etária, em detalhes que ninguém percebe’,
diz.


Otávio está no sétimo semestre do curso de Audiovisual (rádio, tevê e cinema)
da Universidade de Brasília. Chega a assistir a quase 50 filmes por mês, além de
acompanhar novelas, sempre de olho nos deslizes dos autores. Gaúcho de
Uruguaiana, está na capital federal há quatro anos. Foi parar no Dejus graças à
indicação de uma amiga. ‘Sempre gostei de televisão, esse emprego é mesmo para
mim’, afirma. Diante dele, sete controles remotos, um aparelho de DVD, dois de
videocassetes, uma tevê e um computador fazem figuração. Por mês, ele ganha 390
reais. Atualmente, é o responsável pelo monitoramento da novela Cobras &
Lagartos, da TV Globo.


Ao todo, há 23 analistas, entre profissionais e estagiários, no Dejus. Como
nunca houve interesse pela área dentro do serviço público, não há uma carreira
específica para eles. Por isso, o Ministério da Justiça pretende promover, até o
fim do ano, um concurso público para o cargo de ‘analista processual de conteúdo
audiovisual’, e desenvolver o setor sem o estigma dos antigos censores. A idéia
é montar um curso de formação e criar nova especialização dentro do governo.
Otávio pensa na possibilidade.


Para se manter no cargo, contudo, é preciso ter alguma disposição para
encarar produções de décima categoria. Na semana passada, Otávio esteve diante
daquele que pode ter sido o pior filme jamais visto por ele: The Curse of
Komodo, ainda sem título em português, mas que significa A Maldição de Komodo.
Comprado por uma emissora de tevê, o filme é uma paródia de Jurassic Park, só
que os dinossauros são lagartos – os chamados dragões-de-comodo – geneticamente
modificados. ‘Eu me divirto com filme trash’, resigna-se. Em tempo: o filme foi
indicado para maiores de 12 anos, com exibição depois das 20 horas.


AS NOVAS INDICAÇÕES


As faixas etárias, segundo o Manual da Nova Classificação Indicativa*


Especialmente Recomendado – ER


Obras, diversões e espetáculos com conteúdos ‘positivos’ voltados para
crianças e adolescentes. O ER servirá, em alguns casos, como redutor da faixa
etária recomendada.


Livre para todos os públicos – L


Quando não contém inadequações ligadas a sexo, drogas ou violência.


Não recomendado para menores de 10 anos


Quando contém de 5% a 10% de violência no conteúdo analisado, embora sem
relevância para a compreensão da trama; linguagem obscena; insinuação de consumo
de drogas; e/ou ‘linguagem depreciativa’ (em relação a terceiros).


Não recomendado para menores de 12 anos


De 10% a 30% de violência no material analisado, inclusive presença de sangue
e sofrimento da vítima; até 10% de nudez, mas sem nu frontal ou insinuação de
sexo e masturbação; consumo de drogas lícitas ou ilícitas, mas com cena
minimizada por fundo musical; linguagem chula e gestos obscenos.


Não recomendado para menores de 14 anos


De 30% a 50% de violência, com recompensa para o agressor, vítimas em estado
de agonia e apresentação de atos de violência de forma divertida; 10% a 30% de
cenas de nudez, sem nus frontais, mas com seios e nádegas; 10% a 30% de conteúdo
envolvendo drogas apresentadas como objeto de prazer, sem punição do traficante;
linguagem erótica; valorização da beleza física como imprescindível para uma
vida feliz.


Não recomendado para menores de 16 anos


De 50% a 70% de violência, sobretudo do tipo tortura, estupro, mutilação,
abuso sexual e suicídio; violência contra adolescentes e crianças; banalização
da violência; 30% a 50% de nudez completa; sexo sem penetração; 30% a 50% de
conteúdo envolvendo drogas, com consumo explícito, inclusive cenas com crianças
e adolescentes.


Não recomendado para menores de 18 anos


De 70% a 100% de violência com requinte de crueldade; 50% a 100% de nudez,
com sexo explícito, incesto e grupal; estupro apresentado como conseqüência da
paixão, não como crime; 50% a 100% de conteúdo envolvendo drogas; consumo
explícito e apologia ao consumo de drogas.


*Os fatores, segundo o manual, não são analisados separadamente, mas dentro


do contexto geral da obra. Dessa forma, um filme violento poderá ser
enquadrado em uma faixa etária menor se essa violência for desancada e colocada,
no final, como um mau exemplo para os jovens.’


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