Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Caso Battisti e “caso Dreyfus”, nada a ver

O ministro da Justiça irritou-se novamente com a imprensa e resolveu acusá-la de neoliberal. Estava no Fórum Social Mundial de Belém, e contagiado pelo clima ‘alternativo’ preferiu não comentar as críticas à sua decisão de conceder o status de refugiado ao militante italiano Cesare Battisti. ‘Falei tudo o que tinha que falar sobre Battisti. Está fora da minha jurisdição.’


Manhoso, confundiu alhos com bugalhos e desancou a imprensa que crítica algumas indenizações pagas a vítimas da repressão durante a ditadura militar (‘Tarso ataca a imprensa‘, O Globo, 31/1, pág. 3).


Nada a ver: a política de indenizações foi adotada ainda no primeiro governo FHC quando a Secretaria de Direitos Humanos estava subordinada ao Ministério da Justiça. A imprensa geralmente respeita os pareceres sobre as indenizações. Críticas ou gozações são inevitáveis, embora injustas, no caso de celebridades eventualmente agraciadas com vultosas reparações.


Terceiro voto


O ministro Tarso Genro tentou confundir as pesadas reclamações contra a maneira como desconsiderou o parecer do Conare (Comitê Nacional para os Refugiados, que recomendou a recusa do status de refugiado a Cesare Battisti) com uma suposta campanha para condenar o ex-militante.


Como lhe faltam argumentos, recorre ao velho bordão ideológico. E antes que alguém lhe sopre a idéia de reviver o caso do capitão Alfred Dreyfus – um dos maiores erros judiciários da história – convém lembrar alguns fatos. O capitão do exército francês foi condenado em 1894 pela imprensa católica anti-semita francesa antes mesmo de julgado num tribunal militar. E foi reabilitado pela justiça graças à pressão da imprensa liberal-progressista do mundo inteiro (o nosso Ruy Barbosa foi um dos primeiros a escrever a seu favor).


Cesare Battisti foi julgado pela justiça do seu país que, até prova em contrário, é plenamente democrático. Erro judiciário, se houve, foi do ministro da Justiça que arvorou-se em juiz sem o devido processo.


Tarso Genro estava furioso naquele dia com o ‘furo’ da Folha de S.Paulo (‘Decisão do comitê contradiz todas as alegações de Tarso‘, 30/1, pág. A-4). O jornal fez um excelente trabalho investigativo e obteve o documento sigiloso de 16 páginas no qual os integrantes do Conare justificam a não concessão de asilo a Battisti.


O ministro recusava-se a divulgar o teor do documento porque dos três funcionários do governo que votaram contra Battisti, dois são subordinados seus, altos funcionários da pasta da Justiça (um deles secretário-executivo do ministério e o outro, delegado da Polícia Federal). O terceiro voto contra a concessão de asilo veio da representante do Ministério das Relações Exteriores.


Contraponto eficaz


Graças às revelações da Folha o STF soube da existência do documento e imediatamente requisitou uma cópia. A divulgação do placar no Conare deixa o ministro em péssima situação. Confrontou três abalizados técnicos do governo, divulgou sua decisão e escondeu o parecer que lhe era contrário. Apesar do seu republicanismo adotou uma posição claramente anti-republicana. E como não poderia investir contra a Folha, que cumpriu estritamente o seu papel, voltou-se contra a mídia ‘neoliberal’.


CartaCapital não pode ser considerada uma publicação identificada com o neoliberalismo. Os artigos de Mino Carta e Walter Fanganiello Maierovich sobre o caso Battisti (edições de 28/1 e 4/2) não têm qualquer travo ideológico. Discutem o comportamento voluntarista e impulsivo do governo brasileiro numa complexa questão jurídica. Seu poder de persuasão advém justamente do fato de que não se trata de um veículo do establishment.


A entrevista de IstoÉ com Cesare Battisti na prisão da Papuda não pode ser considerada como manobra neoliberal para subverter os fatos. É justamente o contrário (ver, neste Observatório, ‘Entrevista reequilibra o noticiário‘).


A ‘grande mídia’ (para usar a expressão empregada por Tarso Genro) está desde o início mais interessada na decisão a ser votada no plenário do STF pelos supremos magistrados do que na canetada do ministro da Justiça.


A sociedade brasileira aprendeu a respeitar as votações do STF, confia no seu saber jurídico e no seu senso de equilíbrio. O plenário do STF tem sido um eficaz contraponto ao generalizado simplismo vigente nas esferas oficiais.


Em compensação, a sociedade brasileira deixou de respeitar o Ministério da Justiça a partir do vergonhoso episódio do repatriamento dos boxeadores cubanos, Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara, num avião cedido por Hugo Chávez durante os Jogos Panamericanos no Rio (agosto de 2007).


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Battisti, uma questão italiana


Roberto Cotroneo (*)


Publicado no L´Unità, 27/1/2009, tradução de A. Veiga Fialho para o site Gramsci e o Brasil; incluído às 12h30 de 4/2/2009


Não há nada a fazer, o caso Cesare Battisti não é mais um problema diplomático entre Itália e Brasil, está se tornando algo muito mais grave. Hoje [27/1], o embaixador italiano no Brasil voltará à Itália para consultas. É um ato duríssimo e sob certos aspectos clamoroso. Neste momento, a tensão entre os dois países, com uma longa tradição de boas relações diplomáticas, parece pelo menos surpreendente. Nesta altura, Batisti certamente terminará como refugiado político no Brasil, porque nenhum país no mundo expõe-se com um parecer do seu presidente e depois recua das suas decisões. E é francamente impensável, sendo o Brasil uma das maiores potências do mundo, que a Itália interrompa as relações diplomáticas.


Mas não é no Brasil que a partir deste momento se joga a partida, mas sim na Itália. Porque o caso Battisti faz reaparecer o nó da solução política a propósito do terrorismo dos anos setenta na Itália. E é um nó que ninguém é capaz de cortar ou desatar. O que fazer? Aceitar que um país soberano e importante conceda e legitime os homicídios de Battisti, reconhecendo que aqueles homicídios eram só a parte mais extrema e violenta de uma guerra civil, de um projeto político? Não era assim e não pode ser assim. O único argumento seria este: passados trinta anos, tendo mudado de vida, tornando-se um senhor que vive de escrever, que sentido tem reabrir um caso do gênero? Pode-se não estar de acordo, mas tem uma lógica.


Pena, e aqui está de fato o problema, que Battisti não peça uma solução política com base numa reflexão dolorosa e lúcida sobre a luta armada. Todos sabemos que jamais disse uma só palavra sobre suas vítimas, jamais pediu desculpas aos familiares, mas de algum modo, por conta deste caso, tornou-se um testimonial da inevitabilidade da luta armada na Itália e do fato de que esta luta armada podia levar ao homicídio.


Tudo isso é realmente inaceitável, e o é ainda mais porque avalizado por um país soberano, importante, entre os maiores do mundo. Aceitar esta decisão significa uma derrota para todos nós, e talvez algo mais: implica a idéia de que pegar em armas contra um país, contra toda uma sociedade civil, contra cidadãos comuns, pode ser um mal inevitável ou, pior, uma necessidade. O caso Battisti afasta para sempre do nosso cenário a solução política para o terrorismo dos anos setenta, faz-nos recuar, aniquila-nos. Não servem para mais nada anos e anos de reflexão de todos os protagonistas sobre a luta armada na Itália, as palavras de perdão que dirigiram aos familiares das vítimas, o arrependimento autêntico de quem viveu aqueles anos e provocou vítimas, a reflexão crítica dos que se dissociaram da luta armada ou mesmo de quem quis acertar até o fim suas contas com a justiça. Está tudo cancelado, naquele sorriso zombeteiro que Battisti mostra diante dos flashes dos fotógrafos.


(*) Jornalista do L´Unità


 


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