Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Caso Isabella, uma pauta à procura de um jornalista

O ingresso de George Sanguinetti no caso Isabella produziu algumas conseqüências imediatas, entre as quais se podem destacar duas: a percepção do reforço à defesa do casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá e o combustível para o prolongamento da novela midiática que se vem exibindo dia após dia, já há mais de um bimestre, desde a noite do assassinato da menina em 29 de março.


O médico alagoano notabilizou-se há mais de dez anos ao emitir sua opinião sobre outro fato de grande repercussão: o caso PC Farias. Na época, ele contestou o laudo de uma equipe de especialistas comandada pelo legista da Unicamp Fortunato Badan Palhares. Sanguinetti rechaçou as conclusões que referendavam a hipótese de um crime passional, ou seja, que confirmavam a tese de que Suzana Marcolino assassinara o namorado Paulo César e, em seguida, se suicidara. Nada disso aconteceu, garantiu então o professor da Universidade Federal de Alagoas: na verdade, PC – empresário que fora braço-direito do presidente Collor – e Suzana haviam sido assassinados por terceiros, na trama que muitos consideraram ser uma ‘queima de arquivo’.


O jornalista Joaquim de Carvalho cobriu o caso PC Farias para a revista Veja. Anos depois, lançou o livro Basta! Sensacionalismo e Farsa na Cobertura Jornalística do Assassinato de PC Farias (ed. A Girafa, 2004). Para o repórter, foi, sim, um crime passional. E George Sanguinetti, aquele que disse o que todo mundo queria ouvir. Por isso, teria sido incensado por uma opinião pública conduzida por uma mídia desinformada e preconceituosa.


Uma reviravolta?


Agora, depois de ridicularizar o trabalho dos legistas e dos peritos paulistas que trabalharam no caso Isabella, o médico está sob a mira da Associação Brasileira de Medicina Legal. Apesar de dar aulas na universidade, ele não seria legista: não teria qualificação nem experiência para emitir pareceres.


Joaquim de Carvalho, integrante da equipe da Veja que ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo em 1992, diz na entrevista a seguir que, em 1996, ‘ano em que foi promovido pela imprensa a sábio da medicina legal’, Sanguinetti não era legista e não havia realizado autópsia alguma sequer no Instituto Médico Legal de Maceió.


Com a ressalva de que, no entendimento deste articulista, todas as supostas distorções apontadas por Sanguinetti devam ser investigadas, desde que apoiadas na lógica e nas provas, o jornalismo brasileiro tem a obrigação de verificar: afinal, quem é a fonte que pode provocar uma reviravolta no caso Isabella?


É o que Carvalho se propõe a dizer nesta entrevista.


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Por que, no seu livro, você desqualificou o trabalho de George Sanguinetti?


Joaquim de Carvalho – Em primeiro lugar, quando desqualifiquei o trabalho de Sanguinetti, não o fiz por motivações pessoais. Disse apenas que a imprensa deu crédito a quem não merecia, por não ser qualificado tecnicamente. O que a imprensa queria, na ocasião, era um contraponto ao que diziam os peritos. Ele, então, percebendo que poderia surfar, pegou sua prancha e acompanhou a onda, tendo muito espaço. O Sanguinetti é um pequeno ponto no oceano. No livro, minha atenção é dedicada ao trabalho da imprensa, a qual, na busca da verdade, deve ser mais criteriosa na seleção de suas fontes. Sobre Sanguinetti, naquela ocasião ele não tinha capacitação técnica porque:


1 – Não era legista;


2 – Sua maior experiência era a de diretor do manicômio de Alagoas e, nessa função, tinha até sido investigado no estado por uso de eletrochoque;


3 – Tinha pretensões políticas evidentes, já tinha sido candidato a um cargo eletivo e desempenhou funções políticas (nada relacionado à área de Medicina Legal) no governo de Geraldo Bulhões;


4 – Por sua truculência e sua biografia – tinha prestado serviço a um órgão de repressão no tempo da ditadura –, não era levado a sério por seus pares e no estado onde trabalhava.


Aqui, cabe a pergunta que a imprensa deve fazer: o que é um legista? Qualquer médico pode ser legista? A resposta é: não. Legista é uma função da estrutura de segurança pública, assim como o delegado, o escrivão, o investigador, o papiloscopista, o perito criminal. Um advogado pode ser chamado de delegado? Não. Para ser delegado, o advogado deve passar num concurso público e ser nomeado para a função. Assim é Sanguinetti. Que concurso ele fez? Cadê a nomeação dele para a função de legista? É um dado tão objetivo que nem deveria ser objeto de polêmica: é só perguntar: assim como um delegado precisa passar em concurso público para assumir a função, o senhor fez concurso e foi nomeado? Em 1996, ano em que ele foi promovido pela imprensa a sábio da medicina legal, eu asseguro que ele não era legista. Ponto final. Simples assim.


Sanguinetti tem apresentado ‘certificado de legista’ em programas de televisão e diz que, como coronel da PM, não era obrigado a se filiar à Associação Brasileira de Medicina Legal. Não pode estar havendo um mal-entendido ou uma simples desinformação de quem afirma que ele não tem as qualificações necessárias para exercer a sua profissão?


J. de C. – Para ser legista, não precisa de diploma de legista, nem de certificado. É necessário diploma de médico e a nomeação, mediante concurso público, para a função. É necessário que seja funcionário público de carreira. Ele tem que ocupar a função em algum Instituto Médico Legal. No caso dele, qual é o instituto? Alagoas? São Paulo? Por exemplo, para ser delegado, um bacharel em direito tem que prestar concurso e ser nomeado delegado. Em São Paulo, o delegado é nomeado para trabalhar na Secretaria de Segurança Pública e, normalmente, está lotado em algum distrito. Assim como, para ser juiz, não existe diploma de juiz nem certificado. O juiz tem o diploma de bacharel em direito, e a nomeação dele, mediante concurso público, para o cargo de juiz. Normalmente, ele está lotado em alguma comarca.


Não sei que papel é este que o Sanguinetti mostra na TV, mas afirmo que em 1996, ano da morte de PC Farias, quando Sanguinetti ganhou notoriedade, ele não era legista. Acho, aliás, que esta é a pauta à procura de um jornalista. Verificar que papel é esse que ele apresenta na TV e checar se esse papel o torna, de fato e de direito, legista. Sanguinetti é uma fraude e alguém precisa contar esta história. Não é difícil fazer essa matéria. Basta olhar o papel – tirar xerox ou foto é mais seguro – e verificar se a informação é verdadeira. Não é preciso ir à tal associação de médico legista que ele menciona. Mas pode-se ir lá também. É só verificar se ele está lotado em algum Instituto Médico Legal. O papel tem que fazer essa referência. Imagine uma pessoa se dizer juiz e não estar em nenhum departamento do Poder Judiciário… É impossível. Na estrutura de Estado, é impossível. Fora dela, você diz o que quiser. Tem um cara em Curitiba que se diz Jesus Cristo. Tem quem acredite. Mas no caso de funções de estado, ele tem que estar em algum departamento de medicina legal. Não vale dizer que ele deu aula, ocupava uma cadeira na universidade de Alagoas. Isso não o credencia como legista. Ele é, no máximo, professor de Medicina Legal. Alguém pode dar aula de Direito Constitucional e nem por isso poderá se apresentar como juiz ou ministro do Supremo Tribunal Federal. O titular de Direito Constitucional da USP não é, por definição, desembargador, embora possa sê-lo. Legista também não é qualquer um. É uma função de estado, como o investigador, o escrivão, o auditor fiscal. Um detalhe curioso: na época do caso PC, Sanguinetti dizia coisas absurdas. Aí, eu fui ao Instituto Médico Legal de Alagoas e pedi para que me informassem quantas necrópsias ele já havia feito lá. Sabe o que me responderam, por escrito? Nenhuma. Ele havia feito dois exames de corpo de delito, e esse tipo de exame pode ser feito por qualquer médico, na ausência de um legista. Já a necrópsia, por lei, só o legista pode fazer. Como Sanguinetti não era legista, nunca tinha feito uma necrópsia. Repito: Sanguinetti é uma pauta à procura de um jornalista. É uma matéria que já deveria ter sido contada naquela época.


Veja não publicava o nome dele


J. de C. – Mas no dia em que a matéria for feita a imprensa terá que se penitenciar e revelar que deu espaço a uma fraude. Será que o vai fazer? Quando Sanguinetti ainda não era famoso, ele tirou à força duas fotos dos cadáveres de Suzana Marcolino de um colega seu na universidade, convidou a imprensa para uma coletiva na OAB e disse que ‘tudo indicava’, ‘havia indícios’, ‘era impossível’ que a morte de Suzana se tivesse dado daquela forma etc. etc. etc. Investiguei Sanguinetti, assim como outros repórteres de Veja. Eu era subeditor e meus editores perguntaram: ‘Joaquim, e esse Sanguinetti?’ Eu disse: ‘Para discutir esse assunto, ele não vale um pingo de tinta da editora Abril.’ Veja não publicava o nome dele porque ele não tinha vinculação alguma com o caso, não tinha capacitação técnica. Para que enganar os leitores com uma opinião de quem apenas buscava notoriedade? Enquanto Veja agia dessa forma, absolutamente responsável, Sanguinetti brilhava com Jô Soares em seu programa de televisão. Jô entrava no estúdio rebolando, ao som do quinteto. Olhava de um lado para o outro e cantava: ‘Quem matou PC Farias? Quem matou PC Farias?’ Sentado na poltrona, com suas sobrancelhas grossas e roupa branca de médico – no espetáculo, é figurino é importante –, Sanguinetti cumpria o papel do médico que resolveu enfrentar os poderosos em sua terra. Que poderosos? Os peritos que ele contestava estavam com o salário atrasado em quatro meses, moravam em casa apertada de conjunto habitacional de classe média baixa. Mas os jornalistas olhavam para a figura de Sanguinetti e diziam: ‘Taí um cabra porreta, corajoso, enfrenta os coronéis de Alagoas.’ Curioso é que Sanguinetti era, de fato e de direito, um dos coronéis de Alagoas. Era implacável na perseguição aos adversários do governo de Geraldo Bulhões. Como é que agora os jornalistas vão desmontar a farsa?


‘Dúvida alimenta sensacionalismo’


O que os veículos deveriam fazer?


J. de C. – Checar, checar, checar. Dar a moldura, informar o contexto. E não querer agradar a opinião pública, nem alimentar a polêmica pela polêmica, apenas com o objetivo de manter o espetáculo, de não permitir o show acabar. Neste caso Isabella, como em qualquer outro, a simples elucidação não interessa à mídia, à forma como ela exerce seu papel na sociedade. Quanto mais polêmica, melhor. Mantém a chama acesa. Isso já foi magistralmente mostrado no filme A Montanha dos Sete Abutres e também no filme O Quarto Poder. Em minha opinião, a mídia tem que dar respostas, não lançar dúvidas. Isso não contribui, não esclarece, não faz a sociedade evoluir. Apenas alimenta a fome pelo sensacionalismo.


Qual é o peso de um parecer em um processo, em comparação com o de um laudo oficial? Como se deve informar o público sobre essa questão?


J. de C. – Parecer é opinião. Tem o mesmo valor jurídico que a opinião da sogra do Cid Gomes a respeito do caso Isabella. Parece que é isso, parece que é aquilo. É a opinião de uma pessoa sobre um assunto. No caso, os advogados dos Nardoni contratam alguém com notoriedade na mídia para desqualificar o trabalho do perito criminal, do legista, enfim, daqueles que exercem uma função pública e têm por dever de ofício dizer a verdade, sob pena de responder criminalmente.


Você diz que Sanguinetti está errado em relação ao caso PC Farias. Ainda que o admitamos como verdade, não quer dizer que ele esteja equivocado em todas as observações sobre o caso Isabella…


J. de C. – Quem diz que a opinião do Sanguinetti no caso PC não tem valor algum é o Ministério Público de Alagoas. Suas considerações foram desprezadas no processo. É só consultar os autos. Sobre o caso Isabella, eu digo apenas que ele, pela origem que tem e pelo histórico, não é qualificado a falar sobre assuntos de medicina legal. Isso inclui o caso Isabella.


Nota-se, de parte da mídia, uma desconfiança quanto ao trabalho de Sanguinetti e um apoio expresso ao dos especialistas da polícia de São Paulo. Não está havendo dois pesos e duas medidas? Não é necessário prudência? Ou é correto assinar sob os laudos dos peritos e dos legistas de São Paulo?


J. de C. – Existem especialistas em medicina legal que não construíram seu nome com base num conluio desonesto com alguns jornalistas – desonesto no sentido de que Sanguinetti não foi apresentado à opinião pública da forma correta. Ao recorrer a Sanguinetti, os advogados de defesa dos Nardoni talvez não queiram o esclarecimento do caso, mas apenas jogar mais gasolina na fogueira. Isso interessa à defesa, pois embaralha os fatos e confunde a opinião pública, que no final julgará o caso através de membros do júri.

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Jornalista