Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Churrasco na Quaresma, com o FMI

– Ninguém te condenou?

– Ninguém, Senhor

– Nem eu te condeno. Vai e não tornes a pecar

Este trechinho do Evangelho de São João é uma das mais lindas apologias do perdão.

Os fariseus tinham trazido uma pecadora, flagrada em adultério. Pela Lei de Moisés, ela deveria ser apedrejada. Dizem Evangelhos Apócrifos que o Mestre começou a escrever na areia, em frente ao templo, os pecados dos acusadores. Mostrava assim que sabia muito mais do que eles imaginavam que ele soubesse.

A palavra grega apókryphos, secreto, escondido, antes de chegar ao português, passou pelo latim eclesiástico, apocryphus, sem autenticidade. Designou inicialmente os textos cristãos não incluídos no cânone. No caso dos evangelhos, foram aceitos apenas os de Mateus, Marcos, Lucas e João.

Entre os apócrifos mais célebres estão os evangelhos de Nicodemos, Gamaliel, Bartolomeu e Tomé, além de trechos excluídos do evangelho de Mateus, entre os quais o relato de duas parteiras, Zelomi e Salomé, que, procuradas por José, não puderam ingressar na gruta onde estava Maria por causa do excesso de luz à entrada. Quando enfim puderam ver Maria, encontraram-na já com o Menino Jesus nos braços.

Um dos principais assessores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o frade dominicano Frei Betto, que pagou em seus verdes anos o preço da perda da liberdade, condenado por leis de exceção, gosta muito deste trecho em que o silêncio tem uma função importantíssima.

Frei Betto ficou na cadeia, onde presos comuns olhavam para ele desconfiados e admirados. ‘Ele é um terrorista’, diziam os detentos. Ele continuava calado. O silêncio era seu instrumento de defesa, como ocorre com a defesa passiva na natureza. Há um tipo de sapo que solta um veneno brutal sobre o agressor. Esse veneno atinge o ofensor quando o corpo do sapo é apertado.

Nem sempre se entende que um intelectual, para quem a palavra é ferramenta de trabalho e arma de luta, possa servir-se do silêncio. Mas a Igreja cultiva o silêncio, de que são provas os retiros periódicos. Em nossos tempos de seminário fazíamos retiro. Três dias sem falar. Parecem pouco. Mas você voltava diferente. Pequenas irritações dos colegas encontravam mais tolerância.

Pedagogia da memória

Depois do Carnaval, vêm as cinzas, que inauguram a Quaresma, um período de penitência. O Diabo, porém, insiste com as tentações da carne. Quer que antes de novas cinzas ressurjam as novas brasas, picanhas ardendo sobre elas, temperadas a sal grosso.

Estão em cena neste pós-carnaval, mais do que outros atos, os atos políticos. Ato é palavra que veio de actus, feito, medida, radicado em agere, fazer. Age quod agis (faze o que fazes), reza célebre provérbio latino, recomendando que o que é feito deve ser realizado com toda a concentração para que a empreitada tenha êxito.

Para o bem ou para o mal, o ato de mais interferência na vida é o político, pois afeta a vida de todos, interferindo na organização da sociedade. Por isso, um dos atos mais nefandos de toda a história do Brasil intitulou-se Ato Institucional nº 5, mais conhecido pela sigla AI-5. Foi baixado na noite de 13 de dezembro de 1968, deixando o Brasil às cegas. Por sutis complexidades semiológicas, dia 13 é também o dia do cego, do marinheiro e de quem faz lápides. Ou, como recomendam os Evangelhos: ‘Quem tem olhos para ver, veja!’.

Em resumo, o Brasil começou. Como se sabe, o ano entre nós não começa no dia 1º de janeiro. Começa depois do Carnaval. E já trouxeram vários pecadores para serem apedrejados. A diferença é que agora estão sendo apedrejados velhos apedrejadores. Talvez venha a recair sobre eles as mesmas injustas pedras que atiraram sobre os outros.

Neste período quaresmal de penitência, convém lembrar o episódio do apedrejamento que não houve, graças à diplomacia e a um ato político de Jesus, que evitou que uma pecadora fosse apedrejada.

Temos que ter a grandeza daqueles que perdoam e perdoar, não sem lembrar às novas vítimas o seguinte: viram o que é bom para tosse? O que vocês fizeram com os outros, agora fazem com vocês. A memória tem também esta função, a de ensinar. Infelizmente há pessoas que só entendem a gravidade do que impuseram a outras quando trocam de lugar, passando de acusadores a acusados. CPI, investigações, sindicâncias, todo mundo sabe como começam e não sabe como terminam. Por isso, o partido que mais pedia CPIs quando na oposição, agora lidera as estratégias de abafamento.

Escolher o caminho

Quem é que não sabe como são financiadas as campanhas eleitorais? O caso Waldomiro escancarou para todo o Brasil uma prática que não é ignorada por ninguém. Apenas foi gravada e transmitida por rede nacional de televisão para todo o país.

Ou o Brasil pára com esta síndrome de denuncismos que setores hegemônicos do PT tanto incentivaram e dela se serviram para chegar ao poder ou vamos perder mais um longo tempo patinando sem sair do lugar.

O governo anda atrapalhado. Marcar churrasco em plena Quaresma, na Granja do Torto, uma das residências da Presidência da República, e ainda na companhia de um dirigente do FMI!

Bastou Frei Betto deixar o Brasil por uns dias e já faltou um conselheiro palaciano para lembrar os perigos de tal simbologia para os cidadãos da maior nação católica do mundo!

Desta vez a imprensa, ultimamente mais atenta do que nunca aos atos presidenciais, deixou escapar este detalhe.

Há muitos espíritos exaltados querendo apedrejar o governo Lula de qualquer jeito. Por enquanto estão resguardando o presidente, mas até quando? Os fariseus que levaram a mulher adúltera para ser apedrejada fizeram uma armadilha da qual Jesus se safou magistralmente. Nem discordou de que a Lei devesse ser aplicada, nem condenou a acusada. Perdoou.

Naquela ocasião, Jesus, que nunca escreveu, escreveu na areia. O presidente Lula bem que poderia escolher o caminho que dele se espera e falar. Mas se não quiser ou não puder dizer, que escreva. Talvez seja o caso de não permitir que nenhum assessor desta vez escreva pelo presidente. Daqui a alguns anos leremos seus apócrifos e entenderemos o que hoje está difícil de entender.