Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Cobertura eleitoral e democratização da mídia

A questão da democratização da mídia passou praticamente ao largo da campanha eleitoral, tanto a presidencial, no primeiro e segundo turnos, quanto a proporcional que renovou a Câmara dos Deputados, parte do Senado e as Assembléias estaduais. Praticamente não houve empenho dos candidatos, muito menos dos jornalistas, em colocar o tema na pauta de discussões. A exceção ficou por conta do jornalista Bob Fernandes, do Portal Terra, que colocou uma pergunta sobre o tema no debate realizado na Record entre Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin.


As respostas foram decepcionantes, tanto de Lula, como de Alckmin. Possivelmente o jornalista deve ter ficado frustrado com o (nada) que disseram os candidatos, demonstrando total desconhecimento do tema. Como as regras não previam questionamentos nas respostas, ficou tudo por isso mesmo. Alckmin, se é que pode haver grau de comparação nas respostas dos candidatos, foi pior ainda, porque em vez de responder pelo menos dentro do tema proposto, preferiu o discurso óbvio da defesa da liberdade de expressão, quando democratização da mídia propriamente dita já pressupõe de antemão a liberdade de expressão em toda a sua plenitude, muito mais do que o simples discurso eleitoral. Alckmin desconhece esse fato.


Lula também preferiu a generalidade ao falar, muito por alto, do início do sistema digital de televisão no país a partir de 2007. Ou seja, mais uma vez milhões de brasileiros perderam a oportunidade de tomar conhecimento de um tema relevante para o aprofundamento da democracia e que está em discussão, nos movimentos sociais brasileiros e de toda a América Latina, sobretudo em função das distorções cada vez maiores da mídia conservadora que domina o espectro informativo da região.


Shows midiáticos


Na verdade, os políticos brasileiros – e o raciocínio, com raras e honrosas exceções deve se estender aos políticos latino-americanos de um modo geral – desconhecem, ou não querem conhecer, a luta que se trava em favor da democratização dos meios de comunicação. Os mais questionadores se limitam a eventualmente criticar esta ou aquela publicação quando uma delas edita matéria que não lhes agrada. De um modo geral os atingidos pelas críticas se contentam quando aparecem em algum telejornal que funciona em cadeia nacional. Cunhou-se até uma expressão, segundo a qual os políticos trocam qualquer coisa por ‘cinco minutos de fama’, ao aparecerem na pequena tela, muitas vezes falando até besteiras. Mas, vale tudo para aparecer em telejornais nacionais.


Pois bem: independente da visão dos políticos tradicionais da área parlamentar, sejam eles de esquerda ou de direita, o tema democratização da mídia está ganhando dimensões maiores do que se possa imaginar – o que demonstra que pelo menos os setores mais voltados para as mobilizações por um país mais justo e humano estão antenados na matéria, por entenderem que a democracia passa por uma análise profunda do funcionamento da mídia.


A própria campanha eleitoral recém-encerrada pode servir de termômetro de como o mundo gira na área midiática. O Observatório Brasileiro da Mídia acompanhou de perto o noticiário demonstrando concretamente que a propalada imparcialidade da mídia conservadora é realmente uma balela. Nos cinco maiores jornais do país (O Globo, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, Correio Braziliense e Jornal do Brasil), ficou comprovado estatisticamente que houve um desnível absoluto contra um candidato, no caso Lula, e em favor de Alckmin. O mesmo aconteceu nas revistas (Veja e Época, sobretudo) e com a maioria absoluta dos colunistas, que também nunca esconderam suas preferências ou, se não o fizeram, agiram de forma aparentemente sofisticada. Não importa que esses posicionamentos no final das contas não tiveram influência no resultado do segundo turno presidencial, como ficou demonstrado nas urnas. Fica a constatação.


Outro aspecto que vale ser mencionado neste balanço da cobertura midiática das eleições 2006 é a pauta da despolitização, em maior ou menor grau, nos quatro debates feitos pelas TVs Bandeirantes, SBT, Record e Globo. Em função das regras do jogo e pelo desinteresse jornalístico em aprofundar questões que ajudariam os eleitores a diferenciar em gênero número e grau as linhas programáticas dos candidatos, ocorreu nos debates o que a primeira vista pode parecer algo contraditório e até mesmo um erro de conceituação: a despolitização da política. Nas poucas vezes que houve oportunidade de se demonstrar quem é quem, sobretudo nas questões da política externa e no tema das privatizações, faltou interesse no aprofundamento das questões. Parecia até que todos os protagonistas dos shows midiáticos, dos próprios candidatos aos formuladores de perguntas, não queriam o aprofundamento. Como shows midiáticos ficam na superficialidade, por que ir ao fundo das questões?


Participação dos eleitores colocada em dúvida


A TV Globo, numa cópia grotesca do esquema estadunidense de debates entre os presidenciáveis republicanos e democratas (algo que poucos comentaram), tentou inovar, mas não conseguiu. O debate ficou ainda mais insosso e até a ‘novidade’ dos eleitores foi questionada. Internautas no Orkut, por exemplo, colocaram em dúvida o posicionamento de um dos indecisos sorteados para fazer uma pergunta ao futuro presidente sobre transportes. O cearense Alan Brito perguntou o que seria feito para a melhoria dos transportes, dando como exemplo ele próprio, que pegava três ônibus para chegar ao local de estudo. Segundo foi dito num dos grupos de discussão da Orkut, Brito não poderia pegar três ônibus para chegar à faculdade porque mora próximo do local onde estuda.


A dúvida não foi respondida pela Globo, tampouco alguma outra mídia correu atrás para verificar a autenticidade da acusação, que teria sido formulada principalmente, segundo os internautas, com o visível objetivo de prejudicar o candidato Lula. Fica a dúvida, que só pode ser esclarecida se houver vontade política e midiática para apurá-la.


Outra grave acusação, que circula em comunidades hackers, especializadas em questões informáticas, também coloca em xeque a credibilidade do debate. O painel da Globo, que Lula e Alckmin tinham que clicar estaria, segundo a denúncia, programado para que dos 80 indecisos que compunham o cenário junto com os dois candidatos em pé, 12 fossem ‘sorteados’ (no caso, entre aspas) – ou seja, foram escolhidos de antemão e com as perguntas prontas e formuladas por uma equipe da própria emissora.


Para esclarecer a dúvida, só mesmo se tivesse sido feita uma auditoria do painel antes do debate, o que poderia ser proposto pelos assessores dos candidatos.


Na verdade, todas estas questões estão colocadas na pauta dos questionamentos em função dos antecedentes da TV Globo em outras coberturas eleitorais, e mesmo nas atuais coberturas da área política. Uma breve retrospectiva histórica, que remonta 1982 com o episódio da Proconsult , passando por 1989 com a edição do último debate entre os então candidatos Lula e Fernando Collor de Mello, visivelmente favorecendo a este último, o silêncio em torno da cobertura dos comícios das Diretas Já e, mesmo na atualidade, as recentes denúncias de Paulo Henrique Amorim, Antonio Carlos Queiroz e Raimundo Rodrigues Pereira sobre o episódio da divulgação das fotos do dinheiro apreendido pela Polícia Federal, que um grupo de trapalhões do PT pagaria para ter acesso a um dossiê incriminando José Serra, candidato vitorioso no primeiro turno para o governo de São Paulo, tudo isso coloca em dúvida a própria credibilidade da emissora.


[Para os de memória curta, o caso Proconsult, de 1982, refere-se a um esquema montado que levaria a vitória do candidato Moreira Franco, então apoiado pelo PDS e por setores de inteligência que receavam a ascensão do candidato Leonel Brizola, que acabou eleito governador do Estado do Rio de Janeiro.]


É claro que denúncias dessa natureza geralmente são contestadas com veemência pela direção da Rede Globo. E agora até por jornalistas da emissora, que assinaram nota contestando o que foi informado por Amorim. Mas o fato é que os desmentidos se sucedem e as denúncias se avolumam – o que, na verdade, coloca em questão a própria credibilidade da emissora. E, sem dúvida, o maior prejudicado é sempre o próprio telespectador, pois, os desmentidos veementes não eliminam as dúvidas.


Não resta dúvida que todas estas questões e problemas devem ser objeto de profundas reflexões. Remetem às discussões da democratização da mídia, matéria que mais cedo ou mais tarde o mundo parlamentar terá de aprofundar, sem paixões ou preconceitos, deixando de lado a postura até agora predominante de que o que vale a pena mesmo são os cinco minutos de fama em algum jornal nacional, não importando o resto, mesmo em se tratando de uma causa justa como é a da democratização dos meios de comunicação.


Um tema que desagrada


A democratização da mídia remete automaticamente a um outro assunto relevante e que os sucessivos governos se negam a discutir: a questão da democratização das verbas públicas nessa área. Aliás, esta deve ser uma questão que independe de governos, mas sim do Estado. Em outros termos: seja qual for o governante, federal, estadual ou municipal, a questão da distribuição de verbas públicas na área da mídia deve ser questão de política pública.


É preciso, desde já, enfrentar as críticas que, sem dúvida, surgirão em função de uma eventual mudança de postura na questão da distribuição das verbas públicas na área midiática. Historicamente tem-se um exemplo marcante, a do jornal Última Hora, de Samuel Wainer, nos primeiros anos da década de 1950, no segundo governo de Getúlio Vargas. A área conservadora em peso voltou-se contra Vargas e Wainer, o que originou até uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Ao mesmo tempo em que isso acontecia, o governo da época continuava contemplando a mídia conservadora com as verbas de publicidade governamental, na mesma proporção ou até mais que a própria Última Hora. É só consultar os jornais da época para confirmar o que foi dito neste comentário.


Hoje, embora a todo instante se alegue que ‘os tempos são outros’, toda vez que o tema democratização das verbas públicas na área da mídia é colocado em discussão, até mesmo timidamente, os setores conservadores de sempre são os primeiros a criticar duramente eventuais mudanças de postura no setor. Em outros países da América Latina, como Venezuela, Bolívia, Argentina e Uruguai, o tema é também objeto de críticas do conservadorismo, que na área midiática é representado pelo patronato agrupado na Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol).


Na Venezuela, depois da tentativa de golpe estimulado pela mídia conservadora, em abril de 2002, o governo de Hugo Chávez decidiu fortalecer as mídias públicas e comunitárias, formando o chamado Bloco da Imprensa Alternativa. O setor pôde se desenvolver graças a essa política adotada, o que provocou uma raivosa oposição dos setores conservadores, que acusam o governo de atentar contra a liberdade de imprensa, quando acontece exatamente ao contrário.


Na área da televisão, os governos da Venezuela, Argentina, Cuba, Uruguai, e mais recentemente a Bolívia, participam, com quotas e estrutura jornalística, do projeto da Telesul, um canal de integração latino-americano que é captado em todos os países da América e Estados Unidos. A Telesul funciona ininterruptamente há mais de um ano e vem se firmando como canal alternativo à grande mídia conservadora. O seu noticiário abarca temas ignorados pelos jornais dos canais abertos ou mesmos dos das TVs a cabo. Ou seja, a Telesul mostra que, apesar da mídia conservadora, muitas vezes contraria interesses em jogo, sobretudo os do receituário neoliberal, noticiando fatos relevantes e de interesse geral, apesar do silêncio comprometedor da mídia conservadora.


O tema da participação do Estado na área mídiática é amplo e, claro, suscita reações das mais variadas. Mas é a forma mais viável que se tem para levar adiante o fortalecimento e o aprofundamento da democracia e dos meios de comunicação alternativos. É também a forma concreta de os setores sociais, que são colocados à margem pela mídia conservadora, terem vez e voz. E isso é fundamental, porque, parafraseando o pensador italiano Umberto Eco, um país só pode ser considerado democrático quando todos os setores sociais têm vez e voz em pé de igualdade. É o caso de se perguntar: no panorama atual da mídia brasileira, o Brasil pode ser considerado democrático na concepção de Umberto Eco?


Fica então a sugestão de se aprofundar o debate que visa basicamente o fortalecimento da democracia. E que os políticos – que em determinados momentos apenas resmungam ao sentirem de perto a manipulação da informação – passem a entender melhor o mundo midiático além dos tais cinco minutos de fama.


Em tempo


Depois de escrever este artigo, li uma nota que não deixa de ser uma prova de que nem tudo foram (e são) flores na cobertura das eleições do segundo turno. Na coluna ‘Gente Boa’, assinada por Joaquim Ferreira dos Santos (O Globo, 29/10), justamente no dia que os brasileiros iam às urnas escolher o presidente da República, informou-se erradamente sobre um fato. No tópico ‘Vai um dedinho aí?’, o colunista informava que ‘o bar Escondidinho, no final da Ataulfo de Paiva, no Leblon, aproveitou o tititi em torno da petista que arrancou numa mordida um pedaço do dedo de uma tucana, no Jobi, para lançar novo prato’.


A informação, no alto da página, como se fosse a principal da coluna, divulgada por coincidência (?) no dia da eleição, apareceu completamente deturpada. O lamentável incidente protagonizado por uma publicitária e por uma jornalista foi exatamente ao contrário do que revelou a coluna. Quem perdeu parte do dedo não foi a tucana (jornalista): foi ela quem mordeu e arrancou o dedo da petista (publicitária), como tinha sido amplamente noticiado pelos jornais duas semanas antes da ‘informação’ divulgada por Joaquim Ferreira dos Santos.


Erros primários como este demonstram de alguma forma uma tendência. Mesmo depois dos desmentidos ou do ‘erramos’, o estrago no dia da eleição já estava feito.

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Jornalista