Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Cobertura restrita, preconceito amplo e irrestrito

Em meados de abril, jornais do Rio e de São Paulo estamparam sua preconceituosa perplexidade diante do caso de uma jovem de 17 anos, moradora de Ipanema, que foi viver com o namorado, suposto traficante, no Morro do Turano, no Rio Comprido, Zona Norte do Rio de Janeiro. O assunto foi comentado neste Observatório (ver remissão abaixo).

No filme Quase dois irmãos, de Lúcia Murat, uma das histórias liga uma menina de classe média, Juliana (interpretada por Maria Flor), com um traficante, Deley (Renato de Souza). Lúcia foi entrevistada para um programa do OI no rádio que não foi transmitido em 25 de maio devido aos problemas causados à Rádio Cultura FM pela forte chuva que caiu na véspera [ver o texto aqui]. Contou como foi assediada na época para revelar nomes de pessoas conhecidas suas que tinham vivido situações semelhantes em 1997.

Sua experiência como jornalista – passou pela Economia do Globo e do Jornal do Brasil na década de 1980 – lhe permitiu desembaraçar-se sem hesitação, como relata abaixo. Lúcia mostra também como a mídia cobre de modo parcial a realidade. O cotidiano de segmentos muito amplos da população brasileira está ausente de veículos cujo jornalismo é feito com cabeça de classe média para cabeças de classe média.

Para começar, o conceito de classe média deveria ser revisto. Isso ajudaria a mídia a repensar sua cobertura. Talvez apontasse caminhos novos capazes de ajudá-la a enfrentar a crise financeira e editorial em que se meteu.

Como está, a cobertura não melhora em nada o permanente estranhamento entre o que se imagina que seja a classe média – os leitores de jornais e revistas – e os mais pobres, sobretudo moradores de favelas e outros bairros estigmatizados. Ainda que aqui e ali pipoquem esforços de aproximação, como as boas entrevistas com Ferréz, do Capão Redondo, que lançou seu quarto livro, Amanhecer Esmeralda, no Estado de S. Paulo, e com MV Bill e Luis Eduardo Soares, dois dos autores do livro Cabeça de Porco, no Caderno B do Jornal do Brasil, ambas publicadas no domingo, 29 de maio.

Lúcia Murat foi entrevistada em 23 de maio por telefone. Ela estava em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, para um debate sobre seu filme.

***

Você pode relatar o que aconteceu quando saiu nos jornais uma notícia sobre uma menina da Zona Sul do Rio de Janeiro que foi parar num morro da Zona Norte?

Lúcia Murat – Quando aconteceu isso, começaram a me ligar desesperadamente, da imprensa. Eu não estava no Brasil, estava em Paris, num festival, e as pessoas enlouquecidas para falar. Primeira coisa, queriam de todas as maneiras que eu desse os nomes das pessoas com quem eu tinha conversado, que tinham sido, digamos, as minhas fontes de pesquisa para fazer o filme. Já que eu tinha dito que tinha conhecido algumas pessoas. Eu me espantei e disse: ‘De jeito nenhum, não vou dar o nome da pessoa, isso aconteceu há muito tempo, e é uma questão muito privada, vocês vejam o filme, [nele] tem uma discussão, e vocês procurem também saber o que está acontecendo’.

E houve uma insistência que para mim foi muito desagradável. ‘Não, mas você não vai ter matéria’. Eu disse: ‘Não me interessa ter matéria. Interessa respeitar as pessoas com quem eu estou lidando’.

Foi a primeira coisa que eu achei desagradável. A segunda foi a maneira como o assunto foi colocado na imprensa. De uma forma extremamente preconceituosa. Que é uma questão que eu abordo no filme. A classe média extremamente espantada, como se aquilo fosse, primeiro, um absurdo, uma menina de classe média se interessar pelo mundo do morro, quando eu acho que o interesse é uma coisa extremamente saudável, e, segundo, (….) como se isso não acontecesse, quando na verdade acontece freqüentemente, pelas pesquisas que eu tinha feito era uma coisa que acontecia freqüentemente.

Você diria que por esse caminho se conseguiria melhorar as coisas? Como é que as pessoas que moram em favelas sentem o trabalho da mídia?

L. M. – Essa é outra questão em relação à imprensa que eu venho sentindo através da pesquisa, do meu contato maior com esse pessoal do morro, na medida em que eu filmei lá, e também através dos meninos do Nós do Cinema [ONG criada em 2001 para promover ‘a inclusão social dos jovens de comunidades de baixa renda através do cinema e tecnologia’], através [dos meninos] do Nós do Morro [movimento cultura criado no Morro do Vidigal, Zona Sul do Rio de Janeiro, em 1986] que participaram do filme; mantenho um trabalho conjunto.

E até, na semana passada, eu estava conversando com uma menina do Nós do Morro que vive no Vidigal, e o Vidigal vive uma guerra há um ano, uma guerra diária. E é impressionante. Eu acho que essas pessoas que vivem essa guerra diária não têm acesso a jornais, elas não são retratadas no jornal. São pessoas que simplesmente não são cidadãs. Não existe cidadania neste país para elas.