Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Com quantas manchetes se derruba um presidente?

O jornalismo político está em crise no Brasil? Que fatores levaram a maioria do eleitorado a eleger Lula? Profissionais do setor e a sociedade, especialmente após as eleições gerais de 2006, vêm discutindo essas questões a partir da observação sobre a cobertura dos fatos feita pelos grandes meios de comunicação, as quais envolveram personalidades do governo federal e da oposição em uma seqüência de escândalos de corrupção que se desenrolaram ao longo dos últimos 20 meses, muitos deles não comprovados.


O combate da grande mídia brasileira contra o governo Lula iniciou-se em maio de 2005, durou todo o período pré-eleitoral e eleitoral, culminando na ocorrência do segundo turno para as eleições presidenciais quando tudo indicava que o pleito se decidiria no primeiro. Nessa temporada, os acontecimentos políticos tiveram sucessivos desdobramentos. Um episódio levou a outro, que levou a outro, que nem sempre confirmou as hipóteses iniciais, mas rendeu muitas matérias e críticas ao governo e à própria imprensa.


A grande mídia optou pelo tom espetacular dos acontecimentos. Deu extensa publicidade à farta quantidade de denúncias; às diversas Comissões Parlamentares de Inquérito formadas para inquiri-las; à divulgação de nomes de inúmeros políticos envolvidos em artimanhas ilícitas. Nessa linha, o jornalismo embarcou várias vezes em teses inconsistentes.


De maneira geral, a crítica que tem pautado a discussão pós-eleições (em discussões que acontecem cada vez mais através de veículos pela web), é de que, na cobertura política, nos últimos 20 meses, a imprensa tradicional deu visibilidade a falsas premissas, submeteu-se a pautas forjadas por interesses predominantemente partidários, ideológicos e econômicos, e, como conseqüência, afastou-se do princípio jornalístico de bem informar a sociedade, optando por fazer campanha por este ou aquele candidato. Atuou como partido político.


A novidade é que se formalizou uma opinião pública apesar da mídia. Distante da influência das manchetes, o eleitor não se deixou levar pelo canto da sereia nos maiores veículos de comunicação. As conseqüências deste fenômeno ainda estão por ser medidas.


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A observação dos fatos recorrentes no último processo eleitoral no Brasil, por especialistas em análise crítica da mídia, profissionais da área e uma parcela da sociedade civil aponta que a política foi abordada pelos meios de comunicação com ares de espetáculo, de maneira geral, à medida que se aproximava o processo de eleições para a Presidência da República, Congresso Nacional, assembléias legislativas e governos estaduais, em 2006. Mesmo que o próprio mundo político em crise de formulações e atores o tenha pautado dessa forma, o jornalismo, por princípio, não deveria reproduzir simplesmente essa conjuntura, mas ir buscar seus meandros, fazer os nexos entre os fenômenos e traduzi-los à sociedade. Tal conduta confirma a constatação do pesquisador francês Dominique Wolton, de que o relacionamento entre a política e a comunicação está desequilibrado, com esta última levando vantagem.


Examinando o comportamento da ‘velha mídia’ (rádio, jornal e televisão) nos últimos 18 meses, dentro da sua ‘autonomia empresarial e relativa’, e à sua maneira própria de ser imparcial e objetiva, constata-se que ela noticiou toda a questão da corrupção no governo Lula de maneira sistemática, ‘como deveria ser’, avaliou o jornalista Caio Túlio Costa, em debate realizado em dezembro, na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, onde é professor. Para ele, esse é um dos acontecimentos mais importantes dos últimos tempos, porque a mídia não parou de mostrar os problemas de corrupção em nenhum momento, nem o jornal, nem a revista, nem a televisão. O jornalista trabalhou durante 21 anos para a Folha de S.Paulo, da qual foi também ombudsman. Ele observou que é um fenômeno jamais visto na sociedade brasileira o que se falou de corrupção e revelou das entranhas dos partidos que compunham o poder, e da oposição.


Aziz Filho, presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro, considera ‘natural e saudável que chegando próximo das eleições o governo seja mais fiscalizado, e com mais intensidade do que a oposição, porque está manipulando o dinheiro público’. Ele avalia que o jornalismo político brasileiro tem grandes nomes, ‘profissionais com opinião e crítica’, capazes de abordagens de alto nível. Porém, acredita que no episódio da cobertura das eleições, em 2006, a imprensa distanciou-se do interesse público, perdendo seu papel de intermediária com o poder.


Para além dos espaços opinativo e crítico, a cobertura política em geral, na grande mídia brasileira, tem sido de estrema superficialidade, na opinião de Victor Gentilli, jornalista, professor da Universidade Federal do Espírito Santo. Para ele, a ênfase no jornalismo declaratório foi o que caracterizou a imprensa no último período pré-eleitoral. ‘O político é um ator, e por isso representa, e muitas vezes mente. Se o jornalismo é declaratório, vai reproduzir esta mentira. Isso não é coisa de jornalista’, conclui. Gentilli considera que o saldo mais importante da cobertura política nestas eleições é a mídia ter entrado para o debate público. ‘A questão de fundo é a qualidade da informação que se oferece ao cidadão. É isso que vai definir a qualidade da nossa democracia’, constata.


Os acontecimentos políticos no final do primeiro turno eleitoral e as escolhas editoriais dos maiores veículos de comunicação do Brasil suscitaram uma série de discussões que se disseminaram principalmente através da internet, envolvendo profissionais da área e a sociedade em geral. Nos veículos alternativos, a ‘crise da mídia’ sobre a pauta política foi tema constante.


A ‘trama’


A revista Carta Capital (único veículo impresso, na sua categoria, a fazer isso, na época) publicou, duas semanas após o pleito, uma edição denunciando ‘A trama que levou ao segundo turno’. Na reportagem de Raimundo Rodrigues Pereira, um outro viés do capítulo do dossiê comprado pelos petistas Valdebran Padilha e Gedimar Passos para incriminar os candidatos do PSDB ao governo do Estado de São Paulo e à Presidência da República – José Serra e Geraldo Alckmin. A matéria


fatos ocultados pela mídia na divulgação de ‘informações cruciais’ sobre a negociação das fotos da pilha de dinheiro do dossiê. Revelava a preocupação do delegado Edmilson Pereira Bruno em fazer com que as fotos chegassem imediatamente à TV Globo para sair naquela noite, no Jornal Nacional. Como de fato saiu.


A reportagem questionava a opção da cúpula do jornalismo da TV Globo por divulgar amplamente as imagens do dinheiro, em detrimento de noticiar a tragédia do avião da Gol (que caiu na Floresta Amazônica, naquela data, matando 154 pessoas). Revelava ainda que o comportamento da Globo na cobertura do caso do dossiê ‘provocou reclamações de vários funcionários da emissora, porque não havia um tratamento igual para as duas pontas da história’. Esses fatos editoriais, segundo a revista, evidenciavam um ‘golpe através da mídia’ que conseguira levar as eleições presidenciais para um segundo turno.


Numa edição posterior da revista CartaCapital, em 25 de outubro, Raimundo Pereira e Antônio Carlos Queiroz publicaram ‘O Dossiê da Mídia’, um segundo capítulo com novos registros sobre a ação do jornalismo no Brasil. Nesta mesma edição, a revista publicou uma carta de Ali Kamel, diretor-executivo da Central Globo de Jornalismo, na qual ele defende as escolhas editoriais da empresa; afirma que eram falsas as premissas utilizadas por Carta Capital ao dirigir-se à emissora na matéria ‘A trama que levou ao segundo turno’; que os episódios apontados não existiram e que a revista tinha por objetivo colocar em dúvida a isenção da TV Globo em relação ao PT. Kamel repudiava a suposição de que jornalistas da Globo e a própria emissora possam perder de vista o compromisso com a ética e se submetam a objetivos políticos subalternos. ‘Não sou movido a paixões políticas e meu compromisso é apenas com a minha profissão: relatar os fatos com correção e imparcialidade, não importando se beneficiam ou prejudicam esta ou aquela corrente política’, escreveu.


Em dezembro, tornou-se pública uma carta de despedida que Rodrigo Vianna – ex-repórter especial da TV Globo em São Paulo – encaminhou aos colegas da empresa, onde ele reclama da intervenção minuciosa nos textos dos profissionais, das trocas de palavras a mando de chefes, das entrevistas de candidatos escolhidas a dedo e a distância, ‘por um personagem quase mítico que paira sobre a redação’, o qual, segundo ele, alterava trechos e mudava palavras nos textos apurados. Vianna desabafou com os colegas que já teve orgulho de participar do ‘jornalismo comunitário, da cobertura política’ da Globo, a qual integrou de 98 a 2006. Lamentava, entretanto, a cobertura das eleições de 2006. ‘O que vivemos aqui entre setembro e outubro de 2006 não foi ficção’, escreve.


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Kamel só fala sem edição


MídiaComDemocracia procurou entrevistar o diretor executivo da Central Globo de Jornalismo, Ali Kamel, a respeito da cobertura da imprensa nas eleições. Uma porta-voz da emissora informou que a entrevista só seria concedida se as respostas de Kamel fossem reproduzidas na íntegra, ‘sem edição’, eliminando o risco de aparecerem ‘distorcidas’. A revista optou por não publicar as declarações do jornalista, considerando que isso poderia desequilibrar a reportagem em relação aos demais entrevistados, que aceitaram ter suas afirmações editadas pela equipe da publicação sem qualquer tipo de exigência ou privilégio de tratamento.


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As reações que se sucederam a partir das matérias da revista CartaCapital não encontraram eco na grande imprensa (veículos tradicionais – principais jornais diários, TV e rádio), mas na internet, uma avalanche de manifestações partiu da sociedade civil e especialmente de profissionais da área, com repercussões inclusive fora do país. ‘Hoje, contraditoriamente, porque ainda vivemos um momento de concentração midiática, os deslizes e as crises morais da mídia e as suas teses são cada vez mais questionados, porque se dissemina como nunca, na humanidade, a crítica à própria mídia’, analisa o jornalista Francisco Karam, professor da Universidade Federal de Santa Catarina,


estudioso da Ética no Jornalismo. Ele cita como exemplo diversos organismos que se ocupam em fazer a reflexão sobre a mídia, como o próprio Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), o Observatório da Imprensa, o site Comunique-se, as universidades, o Sala de Prensa, o Instituto Gutenberg, as universidades públicas, as privadas, as TVs Assembléia e Câmara, as TVs universitárias e os veículos legislativos. ‘Existe uma multiplicidade de mídias que também estão trabalhando neste sentido’, avalia.


Para Karam, sobretudo no primeiro turno das eleições, a mídia aproveitou muitos momentos para denunciar o governo, ‘não num campo próprio de apuração, de investigação com métodos jornalísticos, mas quase como uma salvaguarda da campanha anti-Lula’, avalia. Ele cita o exemplo da revista Veja, que ‘abandonou muitos princípios e fundamentos da atividade profissional jornalística, transformando suas matérias em campanha publicitária, sem informação, sem fontes e sem comprovação’. Karam considera que houve várias coberturas corretas sobre escândalos de desvios e fraudes. Entretanto, diz, o comportamento é notoriamente diferente ao que a mídia teve em relação ao Fernando Henrique Cardoso, quando foi denunciado, por exemplo, que houve desvio nas privatizações, mas não houve apuração. O que houve, agora?


O jornalista Paulo Henrique Amorim, que se mostrou nos últimos meses um dos colunistas mais críticos sobre a abordagem da grande mídia na cobertura dessas eleições no Brasil, afirmou no seminário ‘A mídia nas eleições 2006’, realizado em dezembro, na Câmara dos Deputados, que todos os jornais (brasileiros) foram e são contra o presidente Lula, assim como todas as revistas (com exceção da CartaCapital), todas as rádios, com exceção das rádios comunitárias. ‘E uma rede de TV, líder de audiência, a Rede Globo de Televisão, que mistura informação com opinião levou as eleições para o segundo turno ao mostrar a foto do dinheiro que seria usado para comprar o dossiê e o lugar vazio de Lula no debate’. Amorim considera central a discussão sobre a democratização da comunicação na questão brasileira e destacou a importância da mídia alternativa neste processo. ‘Acho que é uma revolução importante. E que nós devemos lutar, como jornalistas preocupados com a democratização e a facilidade de acesso aos meios de comunicação’, afirmou.


No mesmo seminário, segundo boletim da Agência Câmara, o diretor de jornalismo do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), Luiz Gonzaga Mineiro, disse que a mídia perdeu o último pleito porque não garantiu cobertura à eleição do Parlamento, que era mais importante para o país, ficando focada na cobertura presidencial. Mineiro apontou outro erro da mídia em focar a cobertura na classe média: ‘Sonegou informações importantes sobre o que estava acontecendo com a classe baixa no País’ e, no dia seguinte à eleição, sofreu o desconforto com o resultado porque não conseguiu entender as razões para a reeleição do presidente Lula. O diretor do SBT também lembrou que, no fim de semana seguinte ao da eleição, as denúncias haviam desaparecido dos jornais. ‘Parecia que estávamos em outro país. Isso mostra que o que houve foi campanha’, acredita.


Em defesa da imprensa, Paulo Tonet Camargo, diretor-geral da Rede Brasil Sul de Comunicações (RBS) em Brasília, lembrou que o jornal é o veículo de menor penetração, entretanto, o de maior credibilidade. Por isso, argumentou, se o jornal não for idôneo e isento, perde seu ativo que é o leitor. Para Tonet, a mídia brasileira respeita a legislação eleitoral. ‘Há erros, mas que sejam tratados como erros, jamais como uma regra a que os jornais brasileiros estejam subordinados. Tivemos um processo eleitoral que foi invejado pelo mundo, por sua condução, pela maturidade com que os debates foram travados entre os candidatos, das propostas levadas por eles. A mídia impressa brasileira tem um papel muito importante nesta evolução de uma eleição limpa, correta, pacífica’, afirmou Tonet no seminário da Câmara.


Quem influencia quem?


Aziz Filho acha que os jornais brasileiros trabalham relativamente bem, em geral, mas existe um ‘descolamento’ entre o jornalismo político e a consciência popular, que é diferente da opinião pública. Ele cita um conceito defendido pelo professor Cândido Mendes: a imprensa trabalha para a opinião pública, e que a opinião pública, no contexto da imprensa, tem a ver com público consumidor, formador de opinião. Conforme essa teoria, além da opinião pública existe a ‘consciência popular’. Para Aziz, nesta eleição a imprensa mostrou que influencia a opinião pública mas se distanciou da consciência popular. E a grande maioria dos formadores de opinião da ‘classe A’, dos grandes centros, principalmente do Sul e do Sudeste, caminharam na linha da imprensa, com o ‘discurso moralista’ do PSDB. ‘Mas a consciência popular entendeu que era hora de analisar outro tipo de tema para a formação do seu voto. O tema da inclusão social, da continuação dos programas assistenciais, dos projetos de financiamento para as famílias do campo, enfim, esse tipo de projeto que o governo tem formulado’, considera. Aziz acha que os veículos tentam interferir demais no processo eleitoral. ‘Muitas vezes, os jornais pareciam inconformados demais com a decisão do eleitorado’, observa.


Caio Túlio Costa analisa que a grande derrotada nestas eleições foi a mídia como um todo, porque não conseguiu formar opinião. ‘O quanto as novas mídias, o Bolsa Família e estes outros aspectos importantes jogam cada um neste jogo como um todo, eu não sei. O que eu sei é que não podemos entender, pelo menos nesta eleição, que a mídia tradicional brasileira tenha sido formadora de opinião. Ela não o foi’, concluiu.


O deputado José Carlos Aleluia (PFL/BA) avalia diferente. Segundo ele, a população brasileira votou da forma como votou (em Lula, 60,8 %) porque tem problemas de capacidade cognitiva e cultural e, portanto, não entendeu as mensagens da mídia. ‘Ninguém no país deixou de saber dos atos de corrupção praticados pelo governo. Acho que é uma questão que assola o Brasil e a América Latina a necessidade de evolução na capacidade de interpretação das pessoas’, considera. Segundo Aleluia, a população não consegue decodificar as coisas que ocorrem, porque há uma concentração de renda e de conhecimento muito grande, em oposição a uma faixa de população mais pobre economicamente e desinformada, com dificuldade de interpretar. ‘Você vê que o resultado (das eleições) mostrou claramente que nas regiões onde o saber e o dinheiro estão mais bem distribuídos, as informações chegaram com mais precisão’, conclui. Para o deputado, esta foi a primeira eleição brasileira que mostrou a existência de duas mídias distintas: uma antiga, clássica, de grande circulação, e outra nova, dos blogs, dos sites, do e-mail. ‘Acho que a mídia brasileira teve um papel oscilante, mas de um modo geral, correto’,analisa Aleluia.


Informação ou espetáculo?


Segundo Dominique Wolton, a onipresença da comunicação e da opinião pública desestabiliza uma lógica política menos arrogante, onde os homens políticos são fragilizados, porque, entre outros motivos, são eleitos por um curto período, com uma margem de manobra estreita, em sociedades burocratizadas. ‘Devem dar a impressão de que sabem aonde vão e que têm uma visão a longo prazo’.


Para o autor, estamos longe do esquema ideal do homem político que se alimenta da informação e da opinião pública, avalia a ação desenvolvida e divulga a escala dos problemas que lhe parecem importantes para o futuro. ‘Na realidade, os atores políticos são os perdedores dessa hipermediatização […] com o tempo, o público desmascara com bastante facilidade os homens políticos que se tornaram especialistas em comunicação espetáculo’, escreve no livro Pensar a Comunicação.


Para a cineasta Berenice Mendes, da coordenação executiva do FNDC, estas eleições confirmaram a subordinação completa da mídia ao poder. ‘Se a gente já detectava isso no plano empresarial, do ponto de vista editorial, a cobertura das eleições deixa muito clara essa subordinação’. Berenice usa o exemplo do Estado do Paraná, onde mora. Para ela, o tratamento diferenciado que a imprensa deu à disputa entre os candidatos ao governo do estado, Roberto Requião (PMDB) e Osmar Dias (PDT) foi flagrante, a favor do candidato do PDT, ‘chegando a tal ponto que, ao final, o governador reeleito (Requião) fez um desabafo que acabou sendo mal interpretado. Acho que tudo o que ele segurou durante toda a campanha, ele acabou descarregando naquela fatídica entrevista para os jornalistas’ [ver abaixo, ‘O caso do Paraná’]. Segundo Berenice, a atitude crítica do governador retratava muito mais do que um problema de relacionamento entre ele e os profissionais, uma postura de indignação com o tratamento da imprensa durante o período pré-eleitoral [ver abaixo, ‘Eleitores e o uso da internet’].


Para o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Paraná, o governador Requião colocou os jornalistas que cobrem as atividades governamentais em ‘situação altamente constrangedora’, confundindo a atuação dos repórteres, como se fossem eles os responsáveis pelos desentendimentos do governo com os proprietários das empresas de comunicação. ‘Quando um homem público desrespeita uma classe, expondo os profissionais de forma vexatória num ato público, como ocorreu no Palácio Iguaçu, coloca-se acima das instituições democráticas’, reclamou o sindicato.


O jornalista Bernardo Kucinski avalia, em seu artigo ‘A Babel revisitada’, publicado no site da Agência Carta Maior, que foi muito profundo o estrago dos últimos desmandos do PT na cultura política brasileira. Em especial, o de levantar como bandeira principal a ética na política. Ele aponta como equívoco ainda maior, o de enterrar em poucos meses todas as posições conquistadas no difícil tabuleiro da hegemonia ideológica, adotando as mesmas práticas que criticava. Mas pondera: ‘os desmandos do PT não justificam desmandos da imprensa (…) que a denúncia assuma características de linchamento’.


Para Kucinski, a mídia está fazendo justiça com as próprias mãos, acusando, condenando e executando, tudo num ato só, sem considerar a presunção da inocência e sem individualizar e hierarquizar as culpas. Segundo o jornalista, o que se passou na mídia brasileira nos últimos 18 meses é muito mais grave do que uma tentativa de golpe, pois o golpe se esgota no seu próprio resultado. ‘Foram estigmatizados milhares de filiados do PT que estão tão ‘p. da vida’ com o que fizeram algumas de suas lideranças’. A mídia, afirma Kucinski, passou o sentido de que a disputa política é entre honestos e desonestos. Com isso, ocultou não apenas os eventuais conteúdos de classe e ideológicos do conflito, como tratou de modo desigual situações formalmente parecidas. ‘Pois não foi o tucanato que inventou ao Valerioduto? Ou, para ficar no episódio mais recente: por que repetir ad nausean as fotos do dinheiro do caso Vedoin e omitir as fotos dos cheques passados por eles aos associados do tucanato?’, questiona o jornalista, ex-assessor especial da Presidência da República.


Origem ideológica


O ministro das Relações Institucionais, Tarso Genro, em ensaio para a revista CartaCapital, edição de 13/12, reflete que a ‘grande mídia’, em relação ao governo Lula, deu vezo e espaço às teses mais radicais e extremas da oposição, conseguindo, num certo momento, fixar a imagem dos petistas – independente da sua relação com os fatos criticados – como suspeitos pelo simples fato de serem simpatizantes ou filiados ao partido.


Para Genro, a grande imprensa nacional fez oposição ao governo Lula e ao PT não por qualquer ‘conspiração’ ou má vontade contra a ‘origem operária’ do presidente ou por sua falta de ‘formação acadêmica’, mas por ‘divergência programática e ideológica da mídia, a respeito de como devem ser tratados os grandes problemas nacionais’. O ministro considera que é preciso avançar numa discussão ‘não sobre a liberdade de imprensa’, que já está assegurada na Constituição e não deve ser tocada, mas em como ampliá-la, no sentido do direito de as pessoas e instituições da sociedade poderem fazer circular suas opiniões e informações de maneira mais equânime. No bom sentido, diz, ‘ir às raízes’, radicalizar a democracia, pluralizando a formação do juízo popular, nos últimos anos sufocado pela gestão histórica do caminho único’, avalia Genro.


Também para Sérgio Murillo de Andrade, presidente da Fenaj, a cobertura política eleitoral em 2006 foi ideológica. ‘Os meios de comunicação foram incoerentes com o papel que se espera da sua atuação. Houve um protagonismo da mídia, que atuou muito além dos limites democráticos desejáveis’, estima. Segundo Murillo, a identificação do profissional das redações com os interesses da empresa para a qual trabalha é pragmática. ‘Há uma geração de profissionais no controle das principais redações do país, hoje, que defendem a ideologia do neoliberalismo’, ou seja, de um projeto de poder que não estava contemplado, por exemplo, na candidatura do Lula. Andrade, assim como Caio Túlio, acredita que neste processo a mídia saiu perdendo. ‘Houve uma avalanche de críticas de todos os lados. Da esquerda, do centro, da direita, com prejuízo à imagem dos meios de comunicação de massa’.


Murillo avalia que esse prejuízo só não foi maior porque a sociedade brasileira vem construindo um distanciamento da abordagem dos grandes veículos, produzindo meios críticos à suposta opinião pública por eles representada. O jornalista valoriza, neste processo, o surgimento de outras vozes e projetos de poder visando a pluralidade; as diversas manifestações que ocorreram e vêm considerando e sustentando a importância da existência de mecanismos de controle – que nada têm a ver com censura – e asseguram a responsabilidade social na mídia.


Victor Gentilli destaca a importância do espaço do horário eleitoral gratuito, mas julga que este espaço vem sendo manipulado por uma série de controles, como a prevalência do marketing sobre o jornalismo e a publicidade. ‘O momento eleitoral precisa de uma boa propaganda e um bom jornalismo para encarar o grande desafio, hoje, que é o de repolitizar a política’, avalia o professor. Gentilli considera fundamental enfrentar estas questões e trazer o debate político à sociedade. ‘Vencemos a ditadura, avançamos na democratização com uma Constituição interessante. O Conselho de Comunicação Social foi uma luta fundamental (que hoje precisa voltar a ascender). Enquanto tivermos populações desinformadas, a gente precisa de jornalismo, de jornalistas’, observa o professor, para quem, além da questão da concentração dos meios, falta jornalismo nas questões fundamentais da cidadania no Brasil.


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O caso do Paraná


Um dia após ser reeleito Governador do Estado do Paraná, Roberto Requião (PMDB) concedeu uma entrevista coletiva no Palácio Iguaçu, sede do governo, na qual proferiu ataques ferrenhos à imprensa. Segundo matéria de Bia Moraes para o site Comunique-se, em 31/10, Requião atacou diversos veículos da imprensa paranaense e nacional, ironizou jornalistas presentes e ausentes (citando-os pelo nome), acusou boa parte da imprensa de manipular notícias deliberadamente, durante a campanha, para prejudicá-lo. E ainda culpou a mídia pelos pontos perdidos nas pesquisas de intenção de voto e pela pouca diferença com que se elegeu em relação ao adversário.


Em carta divulgada um dia após a coletiva, o governo do Paraná condenou a postura da imprensa, considerando-a especialmente tendenciosa em sua abordagem durante a cobertura das eleições, em 2006. ‘Tendo a liberdade de expressão como álibi, os veículos mais críticos superdimensionaram problemas que habitualmente são desafio para qualquer administração pública ou exploraram fatos que estão sob investigação da Justiça e que, ainda sem conclusão, não autorizam qualquer acusação’, dizia a carta. O governo acusava que foram esquecidas regras mínimas e óbvias, como ‘ouvir o outro lado’ e lembrou que existe uma distância muito grande entre liberdade de imprensa e a opinião dos patrões. A carta lamentava a falta de percepção dos profissionais, de que o governador estava criticando a posição facciosa de algumas empresas no processo eleitoral, e não a liberdade dos jornalistas de se manifestar.


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Eleitores e o uso da internet


A crescente versatilidade e difusão da rede pode ameaçar a hegemonia dos atores políticos (candidatos, partidos e jornalistas especializados) como produtores do discurso político?


Este questionamento surge a partir da pesquisa ‘Novas mídias e esfera pública’, o primeiro acompanhamento sistemático do uso da internet nas eleições, no Brasil. No estudo, foram observados os principais blogs políticos do país, comunidades políticas com mais de mil integrantes, no Orkut, e alguns registros no YouTube. As apurações mostraram que, no universo de um eleitorado de 126 milhões de brasileiros, onde 30 milhões têm acesso à internet, as comunidades classificadas como anti-Lula reuniram até 960 mil pessoas; as classificadas como pró-Lula reuniram até 279 mil pessoas; e as classificadas como pró-Alckmin reuniram até 248 mil pessoas. O estudo foi realizado por Marcelo Coutinho, Clóvis de Barros Filho e Vladimir Safatle, pesquisadores do Centro de Altos Estudos de Propaganda e Marketing da Escola Superior de Propaganda e Marketing.


‘A gente não tem como afirmar que a internet influenciou nas eleições. O número de eleitores com acesso à internet é limitado no Brasil (somente 25% do eleitorado)’, revela Marcelo Coutinho. Até às vésperas do primeiro turno, diz o pesquisador, todo mundo dava como favas contadas a eleição do Lula. Porém, com o desenrolar dos acontecimentos políticos e a cobertura na mídia tradicional, a web revelou-se rapidamente um canal expressivo.


A pesquisa concluiu:


** Maior uso da internet por eleitores e militantes que não se sentiram representados pelo agendamento da mídia tradicional (especialmente os militantes do candidato Lula, embora o perfil sócio-econômico do internauta esteja mais próximo do eleitor de Alckmin);


** Comunidades e espaço para comentários dos blogs funcionaram como fontes de informação para ‘ratificar’ as preferências e opiniões políticas, principalmente quando fontes mais ‘oficiais’ (mídia tradicional) estavam sob suspeição;


** No segundo turno desta eleição, estratégias de desqualificação da mídia tradicional foram amplamente utilizadas na Internet, ao menos para um público com tendências a votar no candidato governista;


** Em certas circunstâncias, a desqualificação ‘digital’ da mídia tradicional e do discurso dos adversários pode aparecer como estratégia político-eleitoral com um certo grau de eficiência;


** Nesta eleição, a internet mostrou-se um instrumento eficaz de mobilização de eleitores orgânicos – aqueles que já têm maior envolvimento com a política, e que a utilizaram como espaço para circular informação e contra-informação;


** ‘Política’ não é um tema de grande audiência, mas o volume de militantes no ‘cyberespaço’ já é suficiente para tornar a Web uma ferramenta indispensável para organização da campanha;


** Expansão do uso da rede aponta para um aumento da sua importância na arena política e vai se firmar como alternativa para o papel da mídia tradicional, mas somente quando atingir uma parcela expressiva do eleitorado – a verificar em 2010 ou em 2008 nas cidades aonde o percentual de internautas atingir proporções significativas do eleitorado.


Os pesquisadores observaram que o blog tem a característica de levantar histórias e lançar hipóteses que podem ou não ser exploradas pela mídia tradicional. Algumas apareceram de maneira periférica nesta mídia e tiveram maior destaque nos blogs e nas comunidades. Segundo ele, isso significa que boa parte dos eleitores não reconhecia ou não acreditava na cobertura da imprensa. ‘O impacto da web ainda é limitado com relação à decisão do voto, mas é muito importante para organizar e informar os ativistas políticos’, destaca.

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Jornalista, da Redação do FNDC