Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

‘Compraram fácil a versão da Abin’

O que aconteceu com o jornalista Vladimir Herzog no breve intervalo em que foi mantido preso nas dependências do DOI-Codi da Rua Tutóia, em São Paulo, é uma das muitas interrogações que ainda pairam sobre a ação das forças da repressão na ditadura militar. A reportagem de 17 de outubro do Correio Braziliense tornou públicas informações importantes sobre a morte de Herzog e sobre as práticas de tortura nos porões do regime militar, ao mesmo tempo em que contribuiu para reacender a discussão sobre o episódio.

A reportagem, assinada pelos repórteres Rudolfo Lago e Erica Andrade, provocou estremecimento entre o Exército, que tachou de revanchismo o esforço do jornal em desvendar os fatos, o governo do PT e a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.

Por exigência do presidente Lula, o Exército retrocedeu e classificou como ‘não apropriada’ sua primeira manifestação. Em nova guinada nos efeitos da reportagem do Correio, a Abin, ex-SNI, afirmou que as fotos divulgadas não seriam de Herzog.

‘É muita estranha a pressa em desqualificar a reportagem do Correio‘, afirma Rudolfo Lago, que teve acesso aos arquivos entregues à Comissão dos Direitos Humanos da Câmara, em 1997, pelo cabo do Exército José Alves Firmino. O repórter também questiona: ‘Por que alguns jornais e revistas compraram tão facilmente a versão da Abin de que não era Herzog?’

Segundo Rudolfo, ‘entregaram uma história mal contada para contrariar uma outra que tinha uma testemunha insuspeita, o depoimento de vários amigos e um laudo técnico do perito Ricardo Molina’. Ele estranha esse esforço de desconstrução de uma matéria que lança luz sobre um dos períodos mais negros da história recente do Brasil.

Por e-mail, Rudolfo Lago concedeu a entrevista que se segue, em que fala da reportagem que considera a mais importante que já fez.

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Em que circunstâncias você tomou conhecimento do material que resultou na reportagem sobre Vladimir Herzog?

Rudolfo Lago – A primeira dica foi dada pelo jornalista David Emerich, que assessora o presidente do PPS, deputado Roberto Freire (PE). Foi dada ao repórter Eumano Silva. David disse que havia na Comissão de Direitos Humanos essa documentação sobre a ditadura militar e que poderiam existir ali documentos que interessariam a Eumano. Ele deu uma primeira olhada no material que havia lá. E ficou impressionado. Eumano, porém, está licenciado do jornal para escrever um livro sobre a guerrilha do Araguaia. Então, me passou a bola.

Como se sentiu diante desse achado?

R.L – A primeira leitura mais atenta do material foi feita por mim e por Eumano. Percebemos de imediato que parecia haver ali vários documentos inéditos – e impressionantes. Como uma tabela que contabilizava entrada e saída de mortos do DOI-Codi e que admitia que alguns que entravam vivos saíam dali mortos. Muitas fotos. Fichas inéditas de pessoas como o líder estudantil Honestino Guimarães. E três fotos, sem identificação, que apostamos que poderiam ser de Vladimir Herzog. Ao fim, sua viúva, Clarice Herzog, acabou identificando o jornalista com certeza em uma dessas fotos.

Já havia se defrontado com uma pauta tão polêmica antes?

R.L – Em todos os meus 18 anos de carreira, eu nunca vi esforço tão grande em desqualificar uma reportagem. Creio que unimos muitos interesses contrariados. Os interesses das Forças Armadas, óbvio. Chegamos a publicar uma lista de arapongas, com nome completo, patente e codinome. Da Comissão de Direitos Humanos, que se viu compelida a explicar como ficara tanto tempo sem nada fazer com um arquivo tão importante. Do PT, que durante anos teve o comando da Comissão de Direitos Humanos. Não entendo (só porque quero ser delicado) é por que alguns jornais e revistas compraram tão facilmente a versão da Abin de que não era Herzog. Eles não apresentaram fotos. O nome do padre Leopold D’Astous não apresentaram oficialmente. Entregaram uma história mal contada para contrariar uma outra que tinha uma testemunha das mais insuspeitas, o depoimento de vários amigos, e um laudo técnico do perito Ricardo Molina.

Você esperava que a divulgação da foto provocasse tanto estremecimento?

R.L – Claro que esperava reações. Sabia que ia contrariar as Forças Armadas. Mas não esperava que o governo do PT, um governo formado por pessoas que também padeceram os horrores da ditadura militar, fosse se unir de forma tão entusiasmada ao esforço de desconstrução da reportagem.

Como você viu a nota do Exército taxando de revanchismo a reabertura do caso?

R.L – Revanchismo seria exigir punição de militares pelo episódio Herzog ou por qualquer outro fato narrado na ampla documentação que obtivemos. O interesse do Correio foi jornalístico. Há um período da nossa história que ainda é extremamente sombrio. E que os militares insistem em querer deixar assim. Do tapete para onde quiseram varrer a história, sempre irão escapar documentos. A mim, essa posição parece um erro. Se os militares têm algum constrangimento do que fizeram nesse período, essa disposição em esconder só prolonga esse constrangimento, à medida em que vez por outra algum papel sempre escapa.

Como você considerou as informações de que a foto de Herzog seria falsa?

R.L – As fotos não tinham identificação. Eram três fotos de um homem calvo, com cabelos apenas dos lados. Pareciam ser fotos da mesma pessoa. Quando Clarice nos confirmou que tinha certeza ser de Herzog a foto do homem nu que aparece de frente, com a cabeça baixa e a mão tentando esconder seu rosto, concluímos que as três fotos eram de Herzog. Numa das fotos, havia um homem nu ao lado de uma mulher. Essa foto – e, ao que tudo indica, apenas essa – parece ser do padre canadense Leopold D´Astous. O padre não se reconhece na foto que Clarice afirma com toda a segurança ser de Herzog. E Clarice desde o início disse ter dúvidas quanto à foto em que aparece a mulher. O Correio em nenhum momento escondeu isso. Desqualificada essa foto, o governo apressa-se em desqualificar a outra. Mas o padre diz que não é aquele homem nu que aparece de frente. Seu advogado à época diz que em todas as fotos que apareceram na época o padre estava ao lado da mulher. Em nenhuma estava sozinho. É muita estranha a pressa em desqualificar a reportagem do Correio. Além disso, o trabalho de desconstrução ainda revela outra barbaridade cometida nos tempos da ditadura [a da humilhação de sacerdotes]. É outro serviço que o Correio presta ao país:

As fotos, assim como outros documentos, foram entregues por um ex-cabo do Exército em 1997 à Câmara dos Deputados. Por que somente agora esse rico material chega ao conhecimento da imprensa?

R.L – Porque, durante esse tempo todo, ninguém mais se deu ao trabalho de analisar o que havia naqueles papéis entregues pelo cabo José Alves Firmino.

Você acredita que matérias como essa sobre Herzog é o diferencial de que os impressos precisam para amenizar uma crise crescente de circulação?

R.L – Os jornais precisam investir em reportagem. Com o aparecimento das mídias em tempo real, o leitor já está minimamente informado de tudo quando apanha o jornal pela manhã. O jornal precisa, então, dar-lhe alguma coisa nova. Ou sua leitura será uma enfadonha perda de tempo. Acho que há dois caminhos. O primeiro é a aposta em alguns temas, que possam ser aprofundados, analisados, complementados com informações de bastidores. O outro é a aposta na reportagem inédita, que a mídia em tempo real não teve acesso no dia anterior.

Essa matéria poderia reavivar o interesse pela grande reportagem, praticamente ausente das páginas da grande imprensa?

R.L – Compreendo as limitações financeiras dos jornais, que me parece são o grande impedimento da volta da reportagem. Mas ela tem de reaparecer. Os jornais precisam investir em bons repórteres. É o que o Correio tem feito. Essa talvez seja a razão de estar incomodando tanto.

A matéria chega ao grande público graças a uma decisão fortuita de um personagem daquele período. Esta é uma prova cabal de que falta esforço investigativo por parte da nossa imprensa?

R.L – A reportagem chega ao público porque resolvemos revolver um arquivo que criava poeira desde 1997. Falta, por falta de investimento de muitos jornais, esforço investigativo por parte da nossa imprensa.

Na sua opinião, por que a questão sobre os desaparecidos políticos da ditadura ainda se mantém sob o véu do desinteresse por parte do governo?

R.L – Os militares são os donos dos arquivos. E não têm interesse em abri-los. E o governo, ao que parece, não tem força suficiente para mudar essa situação.

A matéria está sendo desdobrada numa série. Foi sua reportagem mais importante?

R.L – Tenho um Prêmio OK de Jornalismo por ter desvendado no Globo, com Denise Rothenburg (hoje também no Correio), a máfia dos Anões do Orçamento. Um Prêmio CNT por matérias sobre a máfia dos Precatórios do DNER (também com Denise e com Olímpio Cruz Neto). Um Prêmio Esso por ter participado da equipe que fez a cobertura da cassação do ex-senador Luiz Estevão. Mas esta, ainda que essa pressão contrária nos impeça de ganhar prêmios, é, sim, a minha reportagem mais importante.

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Estudante de Jornalismo da Universidade Tiradentes (SE) e editor do Balaio de Notícias (www.sergipe.com/balaiodenoticias)