Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Confusão de conceitos e de perfis

Nos últimos dias, a imprensa divulgou várias notícias sobre a ‘independência’ do Banco Central do Brasil (BC) e sobre o posicionamento dos dois principais candidatos – José Serra e Dilma Rousseff – quanto à atuação do BC. Os termos independência e autonomia foram usados como sinônimos e se confundiu atitude crítica com intervencionismo. Ficou a impressão de que Serra era intervencionista e Dilma, não.

Na edição do dia 11/04 do jornal O Valor, há uma matéria com o título ‘Serra ataca atuação do Banco Central na crise’ e outra, na mesma página, com o título ‘Petista rebate tucano e defende BC’. Com respeito à primeira, da jornalista Ana Paula Grabois, há o atenuante de que o candidato não foi preciso em sua afirmativa, pois deveria ter-se referido ao nível dos juros, e não ao movimento de juros, pois, na crise, o BC baixou os juros de 13,75% para 8,75%. Com respeito à matéria de Rafael Rosas, o título confunde o leitor (petista defende BC?). Na realidade, a candidata Dilma afirmara que não ia deixar de reconhecer os acertos do BC.

No jornal O Globo, no mesmo dia, o jornalista Merval Pereira teceu alguns comentários sobre a posição do candidato Serra acerca da independência do BC, ressaltou que as suas críticas à política de juros eram conhecidas e que Serra via o BC como um órgão assessor da política econômica. E concluiu que sua fala daria margem à exploração, pelo governo, de que Serra seria mais intervencionista do que Dilma. Cabem reparos nos dois últimos pontos: BC como órgão assessor e Serra mais intervencionista.

De antemão, ressalto que se trata de assunto denso e que as matérias foram derivadas dos estreitos limites do diálogo de Serra com a jornalista Miriam Leitão. Neste sentido, a imprensa deve fazer um esforço para aclarar os conceitos e uniformizar a linguagem, bem como transmitir os perfis dos candidatos de forma mais fiel. Segue-se minha contribuição, como economista.

BC independente vs. BC autônomo

A discussão sobre a independência do BC é antiga. Na sua origem, logo após as experiências de hiperinflação no mundo, a expressão ‘banco central independente’ não requeria qualquer qualificação, pois as mudanças de regime monetário, promovidas pelos bancos centrais da Alemanha, Polônia e outros países, foram determinantes dos fins das hiperinflações. O entendimento foi no sentido de que só um banco central independente do governo (poder executivo, gastador por natureza) seria capaz de controlar a expansão da moeda e, consequentemente, controlar a inflação.

Com o passar do tempo, com os Estados mais organizados e mais conscientes da necessidade de estabilização da economia, tornou-se pertinente a discussão do sentido da independência do banco central. Para muitos, os bancos centrais têm que ser independentes no sentido essencial de estarem imbuídos de controlar a inflação e de buscarem seu objetivo independente das demais políticas de governo, ou mesmo à revelia destas. Independência formal consiste na aprovação do mandato dos diretores do banco pelo poder Legislativo e com prazo fixo e não coincidente com o ciclo político.

Para outros economistas – igualmente zelosos com a questão da inflação – os bancos centrais teriam que ser ‘apenas’ autônomos no manuseio dos instrumentos, no tempo e na intensidade que assim indicassem as análises, mas não independentes, eis que estariam subordinados a uma política econômica. A estabilidade dos preços seria uma meta da política econômica do governo, e não do BC isoladamente.

A essência da questão: dependência e autonomia

Prevalece, na segunda visão, uma preocupação maior do que na primeira com o custo de uma política anti-inflacionária que, segundo essa linha de pensamento, deveria ser como no tango, que, para atingir a excelência na plasticidade, tem que ser dançado a dois. A eficácia da política anti-inflacionária – no sentido de atingir seu objetivo ao menor custo social –, só seria conseguida se as autoridades movessem as políticas monetária e fiscal conjuntamente na direção da estabilidade da economia. Isto porque o custo social é desnecessariamente alto quando as políticas não têm harmonia, como o exemplo do caso da prática de política de aperto monetário e expansão fiscal: ocorre uma redistribuição de riqueza na economia sem qualquer ganho em termos de geração de produto ou de equidade. De sorte que, se ‘A autonomia do BC não é um capricho’, como no título do artigo de hoje (14/5) em O Globo, do jornalista Carlos Alberto Sardenberg, a dependência do BC à política econômica também não é um capricho, segundo essa segunda visão.

Pois bem. Essa é a essência do pensamento do candidato José Serra: o país está suficientemente organizado e maduro para ter uma política econômica da qual faça parte o Banco Central com a função de assessoria – como destacou Merval Pereira –, tendo em vista que é no BC que se encontram as informações e os especialistas, mas, sobretudo, com a função de executar a política monetária autonomamente, como parte integrante da política econômica. O que se quer é evitar o custo social desnecessário provocado pela dissonância de políticas que ocorre quando o banco central ‘independente’ aumenta os juros e, ao mesmo tempo, a política fiscal expande o crédito, como está ocorrendo agora. Basta entrar numa agência do Banco do Brasil ou da Caixa Econômica que se verá fixada nas caixas eletrônicas, com durex, uma folha de papel oferecendo crédito fácil de R$ 2 mil a R$ 10 mil. É o caso de o BC está dançando tango sozinho, e a política fiscal, rumba, também sozinha. Ou vice-versa.

Não cabe intervencionismo

A questão do intervencionismo foi colocada, pela imprensa, como se fosse um ato trivial, quando, na realidade é extremamente grave e só admissível nas mentalidades de poder total, sob o princípio de que os fins justificam os meios. Eis que, mesmo em sua função autônoma, ou independente, o BC acerta e erra. E não cabe intervenção quando erra.

É provável que o BC brasileiro tenha cometido um grande erro de política monetária em 2008 quando subiu os juros de 12% para 13,75%, num período em que os sinais de crise de crédito estavam evidentes, às vésperas da quebra do Lehman Brothers e quando o mundo todo reduzia juros. Mas isso é questão para os analistas e os pesquisadores. A afirmativa do candidato Serra, destacada pelo jornal O Valor, segundo a qual, ‘se houver erros calamitosos, o que é perfeitamente possível de diagnosticar, o presidente tem que fazer sentir sua posição’, é inócua; se ‘fazer sentir’ é equivalente a estrilar. Todos os presidentes, pretendentes a presidentes (entre eles, Lula) e ex-presidentes estrilaram. E o que aconteceu? Nada. O BC subiu ou desceu a taxa de juros de acordo com o que os modelos indicavam. O presidente Itamar Franco foi o que mais estrilou e foi duramente criticado, inclusive por Gustavo Franco, que depois foi nomeado diretor pelo próprio Itamar Franco. Portanto, desde o Real, excluindo a crise de 1999, os erros do BC (digamos assim) provocaram críticas, mas nenhum laivo de intervenção.

Lula e Serra se parecem muito; Lula e Dilma em nada se parecem

As matérias deram margem ao entendimento de que fazer crítica é ser intervencionista e elogiar não é (ou é menos intervencionista). Mas isto é um reducionismo da imprensa, pois, na essência, o prurido intervencionista está no DNA do candidato e na ideologia de seu partido. Já sobre Serra poder ser acusado pelo ‘governo’ de ser mais intervencionista do que Dilma, conforme mencionou Merval Pereira, isso pode ocorrer, mas tal acusação não resiste à análise. O próprio mentor da candidata, o presidente Lula, que não foi intervencionista no BC, sabe que Serra se parece muito com ele, Lula; e Dilma não parece nada com ele, Lula. E, não é apenas com respeito à conduta como militante político, como parlamentar e como chefe do executivo, mas também com respeito às questões da economia.

Na questão objetiva dos juros excessivamente altos no Brasil, a crítica de Serra é igualzinha à de Lula, sem por nem tirar. Ao rebater, de bate-pronto, a opinião de Serra, Dilma preferiu elogiar a atuação do BC pós-crise. Mas, ao preferir o elogio – logo ela, pertencente a grupo político defensor até da extinção do BC, isto é, defensor do ápice da intervenção –, Dilma acabou, mais uma vez, pontuando sua diferença com Lula.

Então, por que a inferência de que Lula acusaria Serra de intervencionista? Como tudo é relativo, e dado o perfil de Dilma, é difícil imaginar qual o fundamento para essa inferência.

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Economista, Rio de Janeiro, RJ