Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

“Crime se reconfigura sob a égide do Estado”

Nesta entrevista ao Observatório da Imprensa, o sociólogo José Cláudio Souza Alves contrapõe ao discurso reinante após a ‘Batalha do Alemão’, de ‘guerra ao tráfico’, a percepção de que há uma reconfiguração do crime na Região Metropolitana do Rio de Janeiro sob a égide do Estado, por intermédio das milícias. Segundo Souza Alves, onde há UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) ‘o tráfico continua, mas discreto e sem conflito’.


Souza Alves fala sobre as estratégias de sobrevivência da ‘banda boa’ das polícias e alertas que, para muitos de seus integrantes, ‘bandido bom é bandido morto’. Segundo o sociólogo, o sistema prisional ‘organiza, alimenta, reforça, estrutura e permite a comunicação dos líderes presos com os comandados’. ‘O presídio’, afirma, ‘é a face mais dramática da organização do crime pelo Estado.’


José Cláudio Souza Alves é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Publicou o livro Dos Barões ao Extermínio: Uma História da Violência na Baixada Fluminense, basicamente sua tese de doutoramento. O livro teve uma reimpressão em 2003. A referência é Duque de Caxias, APPH-Clio, e ele pode ser encontrado em algumas livrarias do Rio de Janeiro.


Eis a entrevista.


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UPPs são recentes em comparação com milícias


O senhor acredita que os ataques da semana passada tenham sido uma reação às UPPs? Por que exatamente agora, se o programa das UPPs começou há dois anos?


José Cláudio Souza Alves ‒ As UPPs são recentes em comparação às milícias. Assim, não acredito que as ações atuais tenham a ver diretamente com as UPPs, mas com a dinâmica de alteração da geopolítica do crime, modificada significativamente pelas milícias. Acho que as UPPs são mais legais, menos favoráveis a acordos e ‘arregos’, sobretudo por parte do Comando Vermelho (CV), facção que perde a hegemonia ao longo dos últimos anos, mas possuem um antecessor muito mais organizado, que atua em serviços urbanos, por dentro do aparato de segurança, sem o custo dos conflitos armados, da arregimentação e do treinamento de exército: as milícias. Estas, sim, realizaram uma reincorporação de áreas favelizadas sob o controle do crime. A organização dos atentados vem sendo articulada ao longo deste tempo. Eles não são desesperados e desorganizados, basta ver a linha geográfica em que ocorreram, a baixa vitimização e o efeito assombroso. A precipitação agora pode ter a ver com o amadurecimento dos fatores favoráveis à operação, consenso entre as várias lideranças do CV, elemento surpresa, período de maior movimentação populacional, econômica e turística do Rio ‒ Natal, Ano Novo, 13º, compras. Os efeitos danosos para a economia da cidade e do estado favorecem o futuro acordo, a ser alcançado quando a poeira midiática baixar.


Tráfico continua, sob nova direção


Qual é sua avaliação sobre a iniciativa das UPPs? De dois pontos de vista: dos moradores das favelas em que elas se instalaram e do ponto de vista dos traficantes. Em texto datado de quinta-feira (25/11; ver remissão abaixo), o senhor diz que as UPPs ‘não terminaram com o tráfico e sim com os conflitos’. Assim, não se entenderia uma reação ‘dos traficantes’, genericamente denominados, às UPPs.


J.C.S.A. ‒ Meu filho, estudante de geografia na UFF, puxando o pai, para meu orgulho, fez uma pesquisa sobre o Santa Marta. Entrou três vezes no morro, falou com moradores nas ruas. O tráfico continua, mas discreto e sem conflito. Provavelmente controlado agora por elementos associados ou às milícias ou ao Terceiro Comando (TC), nos moldes de novos acordos, como o citado por mim, que inclui aluguel de favelas. O consumo da droga ocorre direto, nas ruas. A segregação interna à favela permanece, valorizando as áreas mais urbanizadas, com teleféricos, comércio etc. A presença da polícia acentua a insegurança, já que o controle feito pelo tráfico é substituído por um controle estranho. Claro que é a substituição de uma tirania por outra, mas a anterior era já conhecida. Claro que a ausência de conflito traz um diferencial. Mas reflita comigo. Os conflitos só ocorriam quando algum elemento do acordo entre a polícia e o tráfico se modificava. Isto podia ser: não pagamento, melhor pagamento pela facção rival, novas lideranças políticas e sua relação com grupos políticos mais amplos, correlação de forças dentro da polícia, com modificação de comandos e novos patamares de ‘arregos’ etc. Desse modo, agora o acordo não necessita mais de conflitos abertos, passando a ocorrer internamente, de forma mais negociada. A insegurança geral da favela diminui, com relação a conflitos abertos, mas a insegurança mais pontual, relacionada ao dia a dia, à presença do tráfico e do consumo, à desigualdade interna, à castração de autodeterminação pelas lideranças locais, perdura.


A reação do CV está localizada na perda dessas áreas para milícias e UPPs, mais as primeiras do que as segundas. Mas há também a articulação milícia-TC, que tem um peso subestimado. No momento atual a mídia foca UPPs, pois não há nenhuma reflexão acumulada sobre a geopolítica mais ampla, ou porque focar nas UPPs significa uma resposta político-midiática mais interessante, reforçando a lógica maniqueísta, de guerra do bem contra o mal, centralizando no poder do governador, reformulando um projeto de segurança pública calcada na execução sumária, na criminalização da pobreza, na reformulação do capital urbano.


‘Ninguém corta na própria carne aquilo que o alimenta’


O que o senhor tem a dizer sobre a hipótese do secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, na manchete de quarta-feira (24/11) do Globo: ‘Facções se unem’? No texto do Globo, essa união é explicada como reação às UPPs, mas, lendo o seu texto, poderia ser entendida como reação ao crescimento do poder das milícias.


J.C.S.A. ‒ Como avancei acima, centralizar nas UPPs valoriza o projeto atual do governo. Desvia da discussão mais ampla. Bem e mal se enfrentam. Ignora-se o peso e poder das milícias. É um tema maldito, pois tirando Marcelo Freixo [deputado estadual, PSOL-RJ], com a CPI das Milícias e seus atuais 177 mil votos, o governo sequer arranhou a estrutura das milícias. Até porque ninguém corta na própria carne aquilo que o alimenta.


Por que não houve referência à Rocinha no noticiário até sábado? Sob a manchete com a declaração de Beltrame, mencionada na pergunta anterior, o Globo diz que ‘A aliança dos bandidos já teria se concretizado também na Zona Sul, com a ida de traficantes do Complexo do Alemão para a Rocinha’. Depois, durante vários dias, não se voltou a mencionar a Rocinha.


J.C.S.A. ‒ A Rocinha tem um caráter simbólico. É colocada no centro de uma aliança do CV. Na verdade, o termo aliança é inadequado. Seria uma unificação do CV. Os vários líderes, das diferentes favelas, teriam chegado a um acordo, uma unificação em termos de atuação. Mas é Zona Sul. Já pensou numa operação de guerra ao lado de São Conrado, desagradável para a classe média, com direito a reclamações e perdas políticas? Nada comparado ao Alemão: pobres, massacre longe da ZS, sem direito a voz, sem imagem, execução sumária tranquila. Mas por que não Maré, que tem uma parte controlada pelo CV? Por que não Jacarezinho, por que não as miríades de áreas pulverizadas pelo subúrbio e Baixada Fluminense? Porque o Alemão transformou-se num símbolo. O Globo falou em Colinas de Golan e Guerra dos Seis Dias de Israel. Ora, há uma maximização dos ganhos político-midiáticos com o Alemão. É um achado. Globo ao vivo o dia inteiro, Tropa de Elite 3 ao longo de dias. Governador, ao invés de ser ‘o outro inimigo’ padilhano, é ufanisticamente aclamado como Chefe da Reação, Churchill tupiniquim do dia ‘D’ ou ‘G’, de Globo, à carioca.


Milícia é sofisticação dos grupos criminosos


Em seu texto, o senhor escreve que ‘o processo de reconfiguração da geopolítica do crime no Rio de Janeiro vem ocorrendo nos últimos cinco anos. De um lado milícias, aliadas a uma das facções criminosas, do outro a facção criminosa que agora reage à perda da hegemonia’. Com que facção se aliaram as milícias e qual é a lógica dessa união? A facção que reage à perda da hegemonia, parece muito claro, é o Comando Vermelho, certo?


J.C.S.A. ‒ Parte da pergunta já respondi. Os cascudos do jornalismo no Rio, já ouvi dizer, afirmavam no passado que o TC foi criado pela polícia para dividir o monopólio do CV. A milícia já é uma sofisticação tanto na cobrança por serviços urbanos como pelo controle político-eleitoral e montante superior de ganho. O caso de Vigário Geral, por mim mencionado [‘a polícia sempre atuou matando membros de uma facção criminosa e, assim, favorecendo a invasão pela facção rival de Parada de Lucas‘], revela a articulação milícia-TC. Essa articulação vem se ampliando. De UPPs nas áreas controladas por TC não tenho notícias. Diante da derrocada geopolítica e financeira, associada ao deslocamento para subúrbio e Baixada, o CV introduz, pela primeira vez, uma alteração do mercado das drogas impensável há alguns anos, no Rio. A entrada do crack, nos últimos meses, de forma massiva, ocorre enquanto alternativa para a facção diante de um mercado com poder aquisitivo menor. Assim, o crack, simbolicamente definido como o ‘trailer’ das drogas, avança sobre o ‘restaurante’ da cocaína que predominava na cidade.


As estratégias da ‘banda boa’ das polícias


Como avaliar o papel de policiais desvinculados da criminalidade e dos comandantes e chefes que o sejam? Mais especificamente: os policiais honestos, que não ignoram os fatos que o senhor relatou, até porque eles são públicos e notórios, entram como nesta ‘guerra’? Sob a lógica de uma vinculação política ao secretário de Segurança e ao governador do estado?


J.C.S.A. ‒ Em um debate que fiz, acho que em 2006, a convite do coronel [da reserva da PMRJ] Jorge da Silva, então secretário da Secretaria de Ação Social e Direitos Humanos, lembro-me que depois de falar o que sempre falo, sobre a vinculação da violência a interesses de grupos políticos, alguns comandantes, após a palestra, foram até mim para confirmar que eles eram compelidos pelas ordens a obedecer a estes projetos. Falavam escondidos, pois temiam consequências se falassem em público, e demonstravam uma indignação calada, velada, ao concordarem comigo.


Acredito que exista a ‘banda boa’, e ela tem diferentes estratégias de sobrevivência. Podem ficar somente nos trabalho internos, para não se comprometer na rua, pois caso não entrem no esquema serão mortos ou envolvidos em algum crime que os prejudique para sempre. Podem procurar batalhões e comandantes menos comprometidos, atuando em áreas e setores menos envolvidos com corrupção, tráfico… crimes em geral. Podem ir para as corregedorias. Acho mesmo que sejam capazes de atos heróicos, como os relatados na recente literatura cujo tema é o Bope. Mas a pergunta é: até onde vai o limite da sua atuação? Até onde não se contaminam ou legitimam a estrutura mais ampla e poderosa? Vivem pobres e morrem pobres como policiais honestos, isto tem que ser reconhecido, mas a estrutura continua, inabalavelmente corrupta.


A lógica militar é a lógica de obedecer a ordens. Na ditadura era o que mais se falava: militar não pensa, obedece a ordens. Na ficção do José Padilha [Tropa de Elite 2] um capitão espanca o Secretário de Segurança. Puxa, como invejo esta liberdade ficcional. É quase impossível, dentro da realidade, que um capitão espanque o secretário de Segurança. Normalmente, os capitães são seguranças do secretário.


A ‘banda boa’ não significa ter uma concepção mais crítica. Eles podem tranquilamente ser partidários do ‘bandido bom é bandido morto’. Sabem da corrupção, mas não a percebem de forma tão organicamente vinculada a um projeto de poder tão articulado. Ir para o Alemão matar pobres supostamente tidos como traficantes não seria nenhum problema para a ‘banda boa’. Pode lhes dar, ao menos por uma vez, a sensação de serem úteis, de cumprimento do dever, que, infelizmente, não pode prosseguir até atingir a estrutura toda na qual se encontram.


Chefes militares têm mais liberdade, mas pagam tributo à corporação


A mesma pergunta é extensiva aos chefes militares, subordinados ao comando de Brasília. Sempre partindo da premissa de que são pessoas honestas, ‘do bem’, ou seja, neutras em relação aos interesses de quadrilhas, opondo-se profissionalmente a todas.


J.C.S.A. ‒ Os chefes militares a princípio estão em posições que favorecem a melhor percepção dessa estrutura. Possuem mais liberdade de fazer parte dela ou não. Mas há a corporação, a tropa, a ordem unida, ou seja, os elementos que dão espírito de corpo, de unidade, na lógica do exército. Obedecem a ordens também, e possuem vinculações a autoridades mais elevadas. Mas, por outro lado, entre eles e a operação no varejo da máquina a distância é maior. Podem se beneficiar na ponta do sistema, recebendo sua parte para que tudo permaneça como está. Podem reagir e com isso optar por situações menos contaminadas, batalhões, comandos, etc.


A grande questão seria estudar como se constituem as verdades dentro desta realidade. Como as mentiras são construídas enquanto verdades, reforçadas, inculcadas, até que tudo se transforme num hábito, num consenso hegemônico, numa visão de mundo própria deste segmento.


Deputados e vereadores preferem o silêncio


Por que, na sua opinião, excetuado o deputado estadual Marcelo Freixo,não se viu a menor manifestação de integrantes dos legislativos fluminense e carioca ao longo desta crise, pelo menos até o domingo (28/11)?


J.C.S.A. ‒ A não manifestação é a melhor coisa. Evita o risco de ser tratado como apoiando vagabundo e assim se beneficiando da lógica dominante do ‘bandido bom é bandido morto’, mas com o povo dos Direitos Humanos não se queimam também, pois não se manifestam favoráveis à execução sumária.


Somente quem trilha caminhos como o do Marcelo, já experiente nos percalços desta realidade, pode fazer seu discurso e trabalho sem ser vinculado a vagabundos que devem morrer. Sua integridade moral e militante o garante. Isto não quer dizer que não sofra retaliações. O discurso da Cidinha Campos [PDT-RJ], acho que na sexta (26/11), dizendo que Marcelo estaria prejudicando as operações por conta dos 60 policiais envolvidos no seu esquema de segurança, revela o uso da calúnia para prejudicá-lo. Assim, estes que não se manifestam se manifestam de acordo com seus interesses. Outros não se manifestam porque mesmo que quisessem jamais seriam capazes de fazê-lo, pois não possuem qualquer acúmulo de conhecimento nesta questão. Outros, como [o deputado Alessandro] Molon [PT-RJ], que foi presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, estão mais interessados nas suas carreiras federais, se autonomizando frente aos anteriores vínculos e tratando de uma bem-construída carreira, ao invés de entrar num espinhoso debate. Mesmo que não tenha feito campanha para Sérgio Cabral, numa tentativa de se redimir da aliança que tentou construir com este para a prefeitura do Rio, Molon sabe que os que são dos Direitos Humanos no Rio sabem quem ele é. Daí ser mais vantajoso ir para outros temas.


Clima de otimismo não vai durar muito


A mudança de estado de espírito da população, de um ceticismo amargo e paralisante para uma esperança em dias melhores, será suficiente para cobrar das autoridades todas as medidas no plano social indispensáveis à integração à cidade das áreas degradadas?


J.C.S.A. ‒ A Rede Globo tenta manter este espírito de esperança na forma de um rescaldo midiático. A Guerra, após o seu dia G, uma batalha de Itararé dos tempos modernos, não revelou suas cenas de sangue e guerra como esperado. Resta uma espécie de construção do otimismo, da vitória da seleção sem o jogo final, por WO. Mas, e agora? Vai durar mais uma semana este rescaldo. Armas, drogas, revistas de casas, hipóteses de fuga, apoio da população, alegria da população das áreas liberadas, etc. comporão esta agenda. Daí em diante, vai-se para o cotidiano de uma massa deserdada. As mazelas centenárias insolúveis do estado, coisas que progressivamente sairão de pauta, que reaparecerão esporadicamente. Voltamos à miséria da favela no dia a dia sem solução.


A UPP será veiculada como a grande solução. Mas o que é a UPP? Sai o tráfico e entra outro tirano. A UPP proíbe que os jovens escutem funk e qualquer festa ou manifestação com este estilo musical. A polícia continua tratando favelados como sempre tratou: revistas agressivas, suspeição permanente, maior incidência do controle sobre jovens. Reforço das segregações internas à favela em relação aos espaços e grupos sociais mais pobres internamente. Não autodeterminação da comunidade. Restrição e mesmo castração das lideranças. ‘Policização’ das políticas públicas, que agora passarão necessariamente pela polícia e seu controle. Beneficiamento dos grupos políticos aliados do grupo político que controla o Estado.


O debate sobre integração da favela à cidade é antigo. Nos anos 1960 falava-se em marginalização destas comunidades. Posteriormente a isso vêm os projetos de urbanização e remoção dos 70. Nos 80 emerge a questão da exclusão, da pobreza. Hoje a UPP transforma-se em modelo de política pública. Na realidade, a favela já é integrada. O baixo custo de reprodução daquela massa de trabalhadores permite sua existência dentro de uma economia que vive da precarização dos contratos, da insegurança, da instabilidade, da não carteira, dos direitos trabalhistas negados, do baixo salário. Este é o diferencial que estimula a integração da favela. O atraso, o precário, o não desenvolvido, como apontou Francisco Oliveira, é extremamente útil para o capital moderno, pois nele se obtém um lucro maior.


‘UPPs e áreas liberadas reconfiguram o capital urbano para novos grupos econômicos’


A mídia, depois de exaltar a parte bélica do trabalho das autoridades (em outras ocasiões ela foi mais descritiva e menos engajada), não teria a obrigação cívica de cobrar transformações estruturais mais difíceis e custosas, mesmo sabendo que elas não se farão no curto prazo e não atraem a mesma audiência?


J.C.S.A. ‒ A mídia engajada atua num projeto mais amplo de poder político e econômico. Interessa mais a lógica da política de segurança mais bélica, da execução sumária, do Bope, da liberação de áreas. UPPs e áreas liberadas reconfiguram o capital urbano para novos grupos econômicos, tanto nos negócios do crime como nos negócios legais, imobiliários, de serviços, etc. Sem falar aqui na relação entre o legal e o ilegal formalizado pelo mercado financeiro que não pergunta de onde vem o dinheiro. Assim, os projetos de megaeventos, do Porto Maravilha, das UPPs na Zona Sul e a Guerra do Alemão se alinham num projeto mais amplo. As transformações estruturais mais amplas serão conduzidas para estes projetos, que progressivamente controlarão as agendas midiática e política, já que estas se pautam pela maximização de lucros dos grupos que disputam tais projetos. É claro que continuarão a existir denúncias e exemplos de casos a serem resolvidos por políticas públicas, mas nada que tenha a proporção real daquilo que se deveria fazer, por exemplo, no caso do complexo do Alemão. Voltaremos ao miúdo, mas agora com a Guerra como patrimônio. As UPPs como projeto público, as mesmas mazelas e abandono, as mitigações pontuais, os PACs, as UPAs, as formas compensatórios e de fachada das políticas públicas e da propaganda midiática.


A unificação das polícias favoreceria uma política de respeito aos direitos dos cidadãos e de maior controle sobre a violência? Qual a diferença básica entre os desvios de conduta praticados no âmbito da Polícia Militar e no âmbito da Polícia Civil?


J.C.S.A. ‒ A unificação da polícia sempre foi debatida. Não é muito minha praia. Entra na questão de administrar e gerenciar para resolver o problema. Luiz Eduardo Soares tornou-se um especialista deste tema. Trabalho mais com a necessidade de instrumentalizar a sociedade para controlar socialmente o aparato policial. A Polícia militar vai no varejão, pegando tudo que acha pela frente, do pequeno ao grande, na rua, no trânsito, na favela. Tem um poder de ação mais amplo, uma rede maior, que penetra tudo. A polícia civil pega os investigados, é mais seletiva, menor na ação mas com grande efeito, pois vai na certa. Contudo, opera também no varejo. Vários líderes de milícias vieram da civil, como no caso da precursora Rio das Pedras, em Jacarepaguá.


Nos presídios, ‘tudo organizado pelo próprio aparelho estatal’


Qual o papel do sistema prisional na arquitetura atual da disputa entre facções, milícia e polícia?


J.C.S.A. ‒ O sistema prisional organiza, alimenta, reforça, estrutura e permite a comunicação dos líderes presos com os comandados. Você é preso por qualquer coisa, sei lá, roubou um pão. Condenado, ao chegar ao presídio o cara pergunta: CV ou TC? O cara piscou, não respondeu rápido, leva um safanão e para onde cair, CV ou TC, será o grupo dele dali em diante, sem direito a sair fora. O presídio é a face mais dramática da organização do crime pelo Estado. Da caixa de fósforo à relação sexual com sua companheira, do jogo de futebol à fuga, tudo tem um preço. A manutenção das facções rivais distantes ou a permissão de invasões e chacinas de uma facção sobre a outra também tem seu preço. Diretores que querem acabar com isto são sistematicamente eliminados ao longo da história. A tortura, a humilhação, a crueldade que transforma pessoas em monstros, psicopatas, assassinos, um não humano, se dá ali dentro. É uma espécie de caldeirão onde se amalgamam as entranhas psicológicas do crime, tanto para os agentes penitenciários como para os presos. Ele perpassa projetos de eliminação de líderes ou de preservação de outros, de organização de crimes como os falsos seqüestros por celular. Tudo organizado pelo próprio aparelho estatal. Os milicianos praticamente não se encontram aí. Pouquíssimos foram presos, ou acabam em prisões especiais por causa da condição especial: ser policial.


Mudanças no Código Penal e na Lei de Execuções Penais podem ajudar a combater a criminalidade? Não me refiro a mudanças feitas no calor dos acontecimentos, mas meditadas serenamente por especialistas, policiais, promotores, outras autoridades e parlamentares, à luz, inclusive, de experiências de outros países.


J.C.S.A. ‒ Este é o eterno debate que nos faz crer que endurecimento de penas significaria redução da criminalidade. Este debate escamoteia que o problema não está na lei mas no sistema judiciário que a aplica. O sistema judiciário pune determinados segmentos da sociedade e não outros. Pobres, negros, favelados, são sempre visados e sofrem as descargas punitivas. Ricos, brancos, dos bairros nobres praticamente são intocáveis. A construção da imagem do pobre criminoso perpassa este sistema, o alimenta, o faz funcionar, o caracteriza. É uma espécie de profecia autocumprida. Se possui este perfil já é certo sua condenação futura. Redução da maioridade, penas mais duras, recairão mais uma vez sobre o ‘alvo’ do sistema. A judicialização das relações resolve de fato as questões? Ou o Judiciário é transpassado pela mesma estrutura desigual da sociedade, reforçando ainda mais esta estrutura? 


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Na quinta-feira (25/11), José Cláudio Souza Alves distribuiu por e-mail o texto ‘A Guerra do Rio ‒ A farsa e a geopolítica do crime‘. Em junho de 2007, participou de um debate publicado neste Observatório sob o título ‘Milícias são a novidade, mas permanecem ocultas‘. O primeiro debate da série foi realizado em janeiro daquele ano, sob o título ‘Debate busca raízes da violência’, parte 1 e parte 2. O terceiro, realizado em julho/2007, se chamou ‘As narrativas da polícia e da mídia se alimentam‘.