Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Crítica e pluralismo ou achincalhe e tumulto?

Um dos temas mais difíceis, em termos de liberdade de manifestação do pensamento, é o de saber onde termina o direito de crítica e onde começa o achincalhe.

‘Crítica’, com efeito, muitas vezes é designada como sinônimo de ‘ato de apontar defeitos’. Contudo, a crítica, embora seja isto, não é só isto. A crítica é, na realidade, um juízo. Um juízo que pode ser tanto favorável quanto desfavorável, mas que decorra, quando se trate de uma crítica digna deste nome, da tomada em consideração das características dos fatos e dos seus personagens.

É comum em empresas, em unidades operacionais das Forças Armadas, em repartições públicas, em clubes de futebol, enfim, onde quer que haja uma organização voltada para atingir determinados fins, a realização de ‘reuniões de crítica’ para se verificar os pontos positivos e negativos das atividades desenvolvidas. Também se costuma chamar estas reuniões de ‘balanço geral’ – não no sentido da contabilidade, evidentemente.

Para que não se pense que somente nos últimos tempos tem havido polêmicas neste Observatório – como pareceu a um comentarista, que considerava este veículo como dotado de um discurso monocorde antes do denominado ‘escândalo do mensalão’, deflagrado em 2005 –, refiro o debate que se travou entre o Marco Aurélio Dutra Aydos e mim [ver aqui e aqui], no ano de 2004.

‘Torcida organizada’

Claro que a crítica não se confunde com o achincalhe. Este constitui a pura adjetivação, o ataque não a proposições mas a pessoas, lançando mão de todos os estratagemas que foram elencados minuciosamente por Schopenhauer em sua Arte de ter razão. Também se configura o achincalhe quando se imputa a alguém fato depreciativo e inverídico, ou quando se lhe diz algo gratuitamente ofensivo à dignidade e ao decoro.

Quando o fato imputado constitui crime, estamos diante do tipo ‘calúnia’. Quando o fato é meramente ofensivo à reputação, estamos diante da ‘difamação’. E quando se ofende a dignidade e o decoro de alguém, sem lhe imputar fato, o que se faz é injuriá-lo. Aliás, foi justamente em função da constatação de uma confusão da crítica com o achincalhe que Luiz Weis tomou a decisão que comunicou no texto ‘Cessam os comentários‘, que, em seguida, passaram a ser moderados pela Redação do Observatório.

A crítica digna deste nome se expressa por argumentos e com o objetivo real de contribuir para o melhoramento das relações que se travam naquele determinado campo. O achincalhe, em todas as suas manifestações, é sempre corrosivo, é sempre destrutivo, é sempre a base de todos os conflitos que extrapolem motivos puramente materiais. Estereótipos, preconceitos e mesmo ódios, passam a ser considerados como o metro pelo qual se medirá a bondade ou a maldade das condutas ou mesmo das pessoas. O estilo ‘torcida organizada’ a que se refere o professor Ivo Lucchesi é bem a expressão do achincalhe.

Debatedores ou contendores

Quando se fala em pluralismo no âmbito da comunicação, o que se quer é que todos tenham o direito de falar. Direito de falar e de terem o que vierem a dizer devidamente pesado e tomado em consideração. Ainda que seja uma ‘asneira’: nem sempre esta se mostra evidente. Por outro lado, ‘asneiras’ aparentes já tomaram o lugar de antigas verdades assentes: que o diga o heliocentrismo em face do geocentrismo – metaforicamente antropomorfizadas as duas vertentes do pensamento astronômico, explicação que, nos tempos que ora correm, tão avessos às figuras de linguagem, vem a se tornar necessária.

Entretanto, não se pode falar em pluralismo quando se manifestem situações como as seguintes: (a) várias vozes falando uníssono; (b) pronunciamentos que se pretendem sobrepor uns aos outros, sem tomarem em consideração os argumentos contrários. E tomar em consideração os argumentos contrários não significa meramente expô-los, mas sim submetê-los à crítica, para lhes demonstrar a improcedência. E é claro que isto implica não os distorcer.

Quando se exponha um fato, por óbvio, não se pode daí inferir, necessariamente, que se esteja a defender tal ou qual posição, embora, eventualmente, a exposição deste fato possa vir a auxiliar a este ou a retirar a base dos argumentos daquele. Na comunicação oral, deste modo, torna-se impossível o estabelecimento de elementos para o diálogo. Já na comunicação escrita, embora se tenha presente a figura do diálogo de surdos, o leitor, pelo menos, fica com os elementos necessários para compreender em que consiste a controvérsia e qual o nível dos debates, bem como se está diante de debatedores ou de contendores. Em suma, se comparece a crítica ou o achincalhe.

Credenciais identitárias

Por outro motivo não foi que, em edição deste Observatório, ensaiei uma discussão sobre o pluralismo. E o presente artigo procura atender tanto a uma sugestão de um dos comentadores, o professor Ivo Lucchesi, como também em razão de um exemplo vivo de achincalhe travestido em crítica que se veiculou no semanário mais lido do país.

De acordo com caput do artigo 6º da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, ‘são símbolos do Estado a Bandeira Rio-Grandense, o Hino Farroupilha e as Armas Tradicionais’ (destacado pelo signatário).

Ora, tratando-se de um símbolo estadual, a exemplo do que se faz com os símbolos nacionais, mesmo havendo alguma liberdade maior em termos de arranjos – que passou a existir a partir de 1985 (e deixo bem claro que não gostei do tal arranjo feito pela cantora Fafá de Belém, motivador da famosa flexibilização) – ou mesmo de opinião sobre o aspecto estético – juízos acerca da beleza ou de méritos técnicos quanto à harmonização, o que poderia ser considerado uma ousadia ou um erro, de acordo com tais ou quais cânones –, isto não constitui uma porta aberta a que se o venha pura e simplesmente menoscabar, reduzindo-o a nada, dado que os símbolos de cada uma das entidades federadas são as suas credenciais identitárias.

Memória farroupilha

Pois no parágrafo seguinte, o jornalista Diogo Briso Mainardi, em seu artigo intitulado ‘Diogo, o traíra’, veiculado na página 159 da revista Veja (nº 2027, de 26/9/2007), da qual é assinante o ora signatário, procede a um verdadeiro achincalhe ao símbolo estadual nas passagens assinaladas:

‘Uma das figuras mais características da Guerra dos Farrapos é o maestro Mendanha. Ele era o regente da Fanfarra imperial. Depois de ser capturado pelas tropas farroupilhas, aceitou musicar o hino do inimigo. O maestro Mendanha é o paradigma do artista nacional: rendido, medroso e traidor. Para compor o hino riograndense, ele roubou a melodia de uma valsa de Strauss. Portanto: rendido, medroso, traidor e plagiário.’

Qualificar um hino de plágio significa, praticamente, excluir a identidade musical da entidade que ele representa, seja um clube de futebol, seja uma entidade federada – município ou estado –, seja um país, ainda mais tendo em vista que do direito assegurado, desde sempre, ao autor – ou seus descendentes – de, a qualquer tempo, reclamar a paternidade da obra (Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, artigo 24, I) decorre a ausência de qualquer valor enquanto produto cultural da obra que seja fruto de plágio.

Por outra banda, a tutela do patrimônio cultural do Estado é competência indemissível, por força do inciso III do artigo 23 e do inciso III do artigo 216 da Constituição Federal – e tal indemissibilidade o Supremo Tribunal Federal já pronunciou na ação direta de inconstitucionalidade 2.544/RS, relatada pelo ministro Sepúlveda Pertence em relação à tutela dos sítios arqueológicos.

E mais: ao dizer que o maestro Mendanha teria plagiado a melodia de uma valsa de Strauss, deveria ter, por dever de lealdade, individualizado a valsa, para que a acusação não se revestisse de leviandade, ainda mais tendo-se em conta que o articulista sequer identifica qual dos Strauss, se o velho Johann, mais lembrado hoje pela Marcha Radetzky, se os seus filhos Johann e Josef – até porque Richard Strauss, grande compositor alemão de orientação wagneriana, não era ainda nascido quando dos sucessos da Revolução Farroupilha.

Este texto somente não é para o aludido semanário enviado porque na edição seguinte, considerando o orgulho que os riograndenses têm da História Farroupilha e tudo o que a ela se associa – Érico Veríssimo, n’O tempo e o vento, pela boca de Floriano Terra Cambará, chega a comparar o culto à memória de Bento Gonçalves ao sebastianismo português –, estranhamente foram publicadas somente duas cartas bajulando o articulista que infamara o símbolo estadual.

******

Advogado, Porto Alegre, RS