Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Da utilidade das derrotas

Em Frankfurt, junto ao rio Main, tivemos o nosso Waterloo. A derrocada final de Napoleão Bonaparte, aconteceu na Bélgica, não muito longe de onde fomos destroçados pela tropa de Zidane, há 191 anos quase exatos (15 de junho de 1815).


Batido pelos ingleses e prussianos, o artífice da nova Europa (e também de uma nova América do Sul) abdicou pela segunda e última vez. Waterloo tornou-se símbolo de algo que transcende ao desastre militar. Significa ruína, desmoronamento, declínio, soçobro e também decadência, esgotamento, caducidade, obsolescência.


Enganam-se aqueles que ainda discutem o que fazia agachado o lateral Roberto Carlos no momento em que Tierry Henry, num salto de bailarino, despachava os canarinhos para casa. A tragédia – como todas – não aconteceu no tempo regulamentar. Começou muito antes, envolve mais gente do que os jogadores convocados e a Comissão Técnica.


A superpotência futebolística chamada Brasil (a expressão é do ‘Economist’) não poderia ruir com um gol apenas. Alemanha, Inglaterra, Portugal, Argentina e Equador não foram destroçados. Caíram. O mesmo certamente dir-se-á do perdedor deste domingo.


Fomos destroçados. Literalmente. Destroçados pela empáfia mas também por um desfibramento que comprometeu não apenas o empenho de atletas mas a nossa resistência às tentações e às facilidades. A forma resignada com que aceitamos a absolvição dos mensaleiros e provavelmente aceitaremos a sua reabilitação em Outubro, tem muito a ver com o processo de monetização que, através do marketing, pretendeu vender a idéia de uma infalibilidade futebolística fantasiosa e distante.


O gramado é uma metáfora da vida. Certos jogos — e mesmo algumas peladas — têm o poder de representar figuras, situações, esquemas, sistemas, valores e conceitos que não entraram em campo mas estão ali, participando de todos os lances.


Nosso Waterloo, tal como o original, precisa ser estudado, debatido, aprofundado, levado às últimas conseqüências. Só assim será exorcizado. A perversa ingenuidade que nos levou ao vexame precisa ser examinada com estetoscópios, microscópios e telescópios de modo a deixar de ser um episódio infeliz para converter-se num paradigma a ser substituído. Se não o fizermos com o futebol não conseguiremos evitar a contaminação do resto.


Derrotas podem ser mais úteis do que triunfos, desde que se convoque um ingrediente chamado coragem para encará-las. Derrotas produzem verdades com mais durabilidade do que as produzidas por triunfos. Mas as verdades precisam ser ditas não apenas ao longo da próxima semana mas enquanto durar o intervalo até a próxima prova.


Muito se falou nesta Copa sobre a cobertura da mídia, eletrônica ou impressa. Não foi uma casualidade, não é um fenômeno isolado. Quando uma cobertura vira notícia, alguma coisa está errada com esta cobertura e as notícias que produz.


O jornalismo como espetáculo produz distorções. Distorções que podem parecer insignificantes ou pitorescas mas num mundo em que tudo é relevante – principalmente o sistema de fabricar relevâncias – elas não podem ser escondidas debaixo do tapete. Distorções ou torções precisam ser corrigidas, podem levar um campeão para o banco dos reservas.


Nosso Waterloo também ocorreu na longínqua Europa. Cada vez mais longínqua. Mas começa aqui: num gramado que tem as dimensões de um continente, com um placar que exige atitudes drásticas e num torneio em que as mudanças são obrigatórias.