Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

De contrapeso ao poder a porta-voz da sociedade

A imprensa vem mostrando interesse em debater a origem da opinião pública no mundo ocidental. Embora devamos tomá-la como referência, é preciso refletir mais como o fenômeno da opinião pública tem se manifestado historicamente no Brasil a partir de concepções divulgadas pela própria imprensa.

Um estudo mais apurado nos mostraria que a evolução do conceito de opinião pública se afirmou em concordância com a idéia de que sua história coincide com a formação do Estado moderno, quando se observa o desenvolvimento da imprensa, a expansão das idéias democráticas e o nascimento do público político. Entendida como manifestação política de uma sociedade civil em expansão, tendo por base a emergência da classe burguesa, a opinião pública tomou, naquele momento histórico, o sentido de combate aos segredos do Estado absolutista e da censura, com o fim de tornar transparentes os atos do governo. Todavia, ainda no fim do século 18, com a Revolução Francesa, ganhou força o valor político associado à noção de opinião pública. Não se contentando mais em ser apenas um contrapeso ao poder, operando como instância crítica e reveladora das decisões da administração pública, a opinião pública reivindicava ser a própria fonte de poder, passando a representar um novo princípio de legitimidade política.

Como se observa, a opinião pública teve origem num ambiente de questionamento do poder absolutista, no sentido de limitá-lo legalmente através de dispositivos constitucionais. Isso implicou, sobretudo, na definição de um conceito de cidadania correspondente ao contexto de cada nação que então se construía. A desestruturação de um regime de privilégios sociais característicos da legitimidade monárquica foi acompanhada de controvérsias, não só sobre as instituições a serem criadas e as formas que tomariam para a representação de interesses, mas também sobre quem deveria participar da nova comunidade política e quem estava autorizado a falar em seu nome, expressando os valores que lhe davam substância.

Porta-voz qualificado

A legitimidade democrática que emergiu com o advento da sociedade burguesa exigiu a criação de instituições políticas através das quais os cidadãos passaram a eleger seus representantes autorizando-os ao exercício de governo. O conceito de moderna democracia se define pela participação política de seus cidadãos, sendo a eleição dos seus representantes o momento culminante desse processo, por meio do qual se afirmam a soberania do povo e os mecanismos de controle do poder. Isso equivale a pensar que as instituições, leis e princípios do regime democrático constituem a forma pela qual a opinião pública ganha expressão e é representada. Ao aparecer articulada às idéias de soberania, vontade do povo, liberdades públicas e representação, a noção de opinião pública ganha um significado institucional.

Quando resgatamos a evolução histórica das modernas sociedades ocidentais verificamos também que a definição de opinião pública como interlocutor da sociedade foi acompanhada pelo surgimento de uma imprensa que exigia liberdade para exercer a fiscalização sobre o poder público. A liberdade no campo da imprensa passou a representar não apenas uma das liberdades a que o indivíduo tinha direito, mas surgiu como condição essencial para o desenvolvimento dos debates sobre questões públicas. A busca da verdade numa sociedade que incorporava os valores da razão e do progresso dependeria das garantias dadas à imprensa para que as informações pudessem ser livremente divulgadas, de modo que o confronto de opiniões constituísse a base para as decisões de governo.

A história da opinião pública, portanto, se confunde com a história da imprensa, dando origem ao que estamos chamando de concepção publicista. Esta concepção ressalta a existência da imprensa como condição para a publicização das diversas opiniões individuais que constituem o público. O julgamento exercido pela opinião pública pressupõe o envolvimento da imprensa na condição de porta-voz qualificado para falar em seu nome, levando ao público informações e concepções sobre os problemas da nação. Como canal de expressão da opinião pública, a imprensa deve ser livre para se manifestar. A liberdade de imprensa é considerada um valor central nessa concepção.

Autêntica representação

Essas questões tomam uma nova dimensão quando transpostas para uma específica formação social, sobretudo se imaginarmos um país como o Brasil, de tradição oligárquica e com uma forte herança escravista, marcado pelo domínio pessoal e pela instituição do favor que, no ingresso da modernidade e de consolidação do Estado nacional no decorrer do século 20, viu-se frente ao desafio de incorporar as massas populares ao sistema político. Decorre daí a proposição de que a imprensa liberal brasileira apresentou um padrão discursivo que conferiu pesos diferenciados aos meios de expressão de opinião pública, sobretudo nos momentos de crise dos valores da democracia representativa.

É o que se observa no decorrer do governo Goulart entre 1961 e 1964, quando lideranças comprometidas com os ideais trabalhistas e comunistas estimularam as camadas populares a exercerem a cidadania não apenas pela via parlamentar, participando nas eleições e nos partidos políticos. Foram empregadas estratégias visando mobilizar as massas populares pela via das ações diretas, assim como foram difundidas ideologias de caráter socialista que contestavam as instituições políticas representativas e colocavam a propriedade privada em questão. Diante desse quadro, setores da imprensa liberal reforçaram a concepção da imprensa como representante maior do povo em detrimento da concepção institucional da opinião pública.

O governo Goulart assistiu a demonstrações sociais que ensaiavam romper com os tradicionais formatos de manifestação da opinião pública. A política extrapolou as vias institucionais e irrompeu nas ruas. Provocou mobilizações dos trabalhadores, estudantes e, sobretudo, de sargentos e soldados, questionando os princípios de disciplina e da hierarquia sobre os quais se organizava o meio militar. No campo sindical houve rompimento das regras estabelecidas. Foi criado o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), cuja existência confrontava a estrutura oficial erguida por Vargas na década de 30 e controlada pelo Ministério do Trabalho. Entidade não-reconhecida oficialmente, o CGT passou a orientar a atuação das massas trabalhadoras e greves decretadas foram utilizadas como meio de pressão para se atingir fins econômicos e políticos, entre eles, o de consolidar a posição de uma autêntica representação dos trabalhadores na interlocução com o poder.

Tradição liberal

Até mesmo o campo, tradicionalmente controlado pelas forças conservadoras, registrou o crescimento de ameaças à ordem estabelecida. Organizados em torno das Ligas Camponesas, os trabalhadores rurais passaram a ocupar propriedades com base na justificativa de improdutividade. E na área propriamente política, assistiu-se a articulação de movimentos extra-institucionais, sobretudo após as eleições legislativas de 1962, quando foi criada a Frente de Mobilização Popular, articulada ao CGT e vista como alternativa de poder às concepções nacionalistas reformistas.

A tradicional forma de representação institucional passou a ser questionada por um conjunto de setores considerados mais radicais, articulados em torno das correntes trabalhistas e comunistas, dispostos a acelerar o ritmo e ampliar a extensão das reformas sociais e políticas propostas pelo governo Goulart. A ativação das massas populares promovida pelas lideranças das forças de esquerda desdobrou-se num questionamento do regime e sobre a forma de democracia a ser construída.

Mais do que o acirramento da concorrência entre interlocutores para fazerem prevalecer suas falas, esse processo revelou que o espírito da negociação democrática com base na argumentação racional dava lugar ao confronto aberto. Em contrapartida, setores da imprensa liberal alegavam que a pressão sobre os representantes políticos e sobre o Congresso tomava a forma de coação. Acusavam o governo de omissão e falta de autoridade para manter a ordem pública e argumentavam que a opinião pública estava saturada.

Nossa idéia é que, nesse momento, representantes da imprensa resgataram uma tradição inscrita no discurso liberal. A essa postura subjaz a concepção de que a organização do governo é uma questão de administração e de competência das elites e não expressão dos conflitos oriundos dos interesses que afloram no tecido social. Esse pensamento contribuiu não apenas para estimular a percepção comumente divulgada de que falta credibilidade à representação política. Mas, sobretudo, explica a prioridade dada às alianças com os militares e o apelo autoritário para que as Forças Armadas interviessem no Estado diante da percepção de ameaça à ordem dominante.

Esvaziamento do Legislativo

De fato, no âmbito das homenagens aos militares mortos na Intentona Comunista de 1935, o jornalista Roberto Marinho apelou poucos meses antes do golpe, através das emissoras de rádio da Rede da Democracia, para que as comemorações se transformassem numa demonstração de civismo em que os civis unidos aos militares ameaçados, agora também ou mais do que há 28 anos pela traição vermelha, afirmem e proclamem de maneira inequívoca e grandiosa o seu amor e a sua devoção à pátria em perigo. O jornalista terminou o discurso pedindo que o povo, esse generoso, bom e grande povo brasileiro, tão caluniado e injustiçado, justamente pelos que o querem trair e escravizar, comparecesse às romarias e manifestações para que os adversários soubessem que não poderiam matar jamais o seu amor à liberdade, a sua fé na democracia. (‘Roberto Marinho na Rede da Democracia’, O Jornal, 10/11/1963).

Nesse sentido, houve um segundo tipo de discurso incorporado pelos representantes da imprensa liberal durante o governo Goulart, que estimulou os militares, enquanto instituição, a assumirem as funções de governo, de modo a projetar sobre a sociedade seus valores de hierarquia e disciplina. Embora o apelo para que as forças armadas assumissem a missão de preservação da ordem constitucional não constituísse um fato novo na história do país, ele ganhou uma nova dimensão em face da Guerra Fria, do acirramento dos conflitos internos de classes e, sobretudo, dos princípios da Doutrina de Segurança Nacional, então aprimorados na Escola Superior de Guerra. No âmbito dessas concepções sobre os fundamentos do poder que acabaram prevalecendo após 1964, encontra-se não apenas a valorização do Estado como organizador da sociedade, mas a redefinição do lugar da imprensa que fazia da noção de opinião pública o eixo central de seu discurso.

Portanto, a falência do regime representativo em 1964 evidenciou questões que ainda hoje são fundamentais para a preservação da democracia. Ao fazerem da crítica uma prática por meio da qual disputaram com as instituições políticas o monopólio da representação da opinião pública, os representantes da imprensa liberal adotaram um discurso jornalístico que contribuiu para o esvaziamento do Legislativo. Nesse sentido, não se contentaram mais em ser apenas um contrapeso ao poder, operando apenas como instância crítica da opinião pública. Colocaram-se na posição de verdadeiros representantes da opinião pública, sinalizando para a possibilidade de se constituírem na principal fonte de legitimidade do sistema político.

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Professor de Economia da UFF, doutor em História Social pela USP