Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

De juristas, jornalistas e truísmos

A misteriosa morte da garota Isabella Oliveira Nardoni – que teria caído ou sido jogada de uma janela – e a subseqüente cobertura da mídia despertaram a atenção dos especialistas. Em razão de a mídia enfatizar a culpa do principal suspeito, o caso Nardoni está sendo comparado ao da Escola de Base, em que os donos foram injustamente crucificados pela imprensa e posteriormente inocentados pelo Poder Judiciário [ver ‘Caso Isabella Nardoni é uma nova Escola Base?‘].

O episódio mostra novamente que os juristas e os jornalistas não fazem o mesmo juízo de valor sobre as normas jurídicas e sobre os fatos. Quando se deparam com fatos possivelmente criminosos, os jornalistas se apressam. Os juristas, por sua vez, precisam manter-se calmos e pacientes.

Em seu livro Jornalismo e desinformação, o jornalista Leão Serva discorre sobre as limitações impostas ao jornalismo. ‘O jornalismo tem como matéria-prima o fato novo, desconhecido, que pode causar surpresa. E que por isso é confuso, incompreensível, caótico.’ Desta definição podemos inferir que, em razão de sua própria finalidade e característica, o jornalismo está fadado a mutilar a realidade e a história. Leão Serva deixa bem claro que, ao invés de procurar proporcionar ao leitor uma compreensão profunda dos fatos que enuncia, o jornalismo se preocupa apenas com a novidade. ‘A novidade é a alma do negócio da imprensa. Nessa busca pela novidade, mesmo velhos fatos devem aparecer vestidos de novos, maquiados para voltar a surpreender.’

Conclusões apressadas

Ao contrário dos jornalistas, os juristas precisam sempre procurar ajustar os fatos às normas jurídicas que estão vigor no momento em que ocorreram. Mas mesmo quando pesquisam fatos, os juristas são obrigados a fazê-lo com respeito às normas básicas prescritas na Constituição Federal: os cidadãos têm direito à defesa, ao devido processo legal e aos meios de provas legítimos; todos são presumivelmente inocentes. Em razão de sua natureza e seriedade, o trabalho do jurista é necessariamente lento e cuidadoso.

Os jornalistas cavam novidades sobre a pressão do tempo. Os fatos de hoje se tornam velhos amanhã. O jornalismo vive de furos, de novidades e mesmo quando recorre às notícias requentadas procura dar-lhes alguma característica nova.

Quando se deparam com um fato que pode constituir um crime, em razão das limitações de sua profissão, os jornalistas são tentados a ignorar as normas jurídicas. Não é raro que tirem conclusões apressadas. Na melhor das hipóteses, nutrem a certeza inabalável de que todos os equívocos que cometerem hoje poderão ser desfeitos na edição de amanhã.

Excessos jornalísticos

O problema é que as conclusões apressadas se propagam. Em sua obra Sobre a televisão, Pierre Bourdieu nos dá um panorama bastante interessante sobre a circulação circular da informação. ‘Para os jornalistas, a leitura dos jornais é uma atividade indispensável e o clipping um instrumento de trabalho: para saber o que os outros disseram. Esse é um dos encanemos pelos quais se gera a homogeneidade dos produtos propostos.’ Segundo Bourdieu, nas ‘…equipes de redação, passa-se uma parte considerável do tempo falando de outros jornais e, em particular, do que ‘eles fizeram e que nós não fizemos’ (‘deixamos escapar isso!’) e que deveriam ter feito – sem discussão – porque eles fizeram.’ Esta atitude faria com que os jornalistas fiquem submetidos a um verdadeiro ‘…fechamento mental.’

Os abusos que ocorreram no caso da Escola de Base (e que podem estar ocorrendo em relação aos Nardoni) podem ser creditados a este ‘fechamento mental’ dos jornalistas. Se abstrairmos todas as conclusões jornalísticas que foram tiradas dos fatos que envolveram a morte de Isabella Oliveira Nardoni, a única coisa que se pode concluir é o seguinte:

1) a criança morreu em condições suspeitas.

2) a autoria do crime ainda é desconhecida e está sendo apurada pela autoridade competente.

Em razão de sua gravidade, os fatos que envolvem a tragédia serão obrigatoriamente apurados sob uma ótica jurídica. Isto será feito com ou sem a ajuda da imprensa. A imprensa pode até dizer que um suspeito é possivelmente ou provavelmente culpado (ou inocente), mas isto não deve e não pode influenciar o julgamento técnico-jurídico de um crime. Presumo que o grande público já sabe que os abusos da imprensa também podem acabar virando notícias. Mesmo assim, em razão do que tem ocorrido no caso Nardoni, nunca é demais repetir um truísmo: os jornalistas também respondem criminal e civilmente pelos excessos jornalísticos que eventualmente cometem.

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Advogado, Osasco, SP