Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Dezesseis anos, três decretos e nada muda

Esta não será a primeira vez – e, certamente, nem a última – que se evoca a falta de memória crônica de que nós, os brasileiros, padecemos desde sempre. Em relação às promessas pré-eleitorais ou oficiais que envolvem a formulação de políticas públicas, nem se fala. A distância entre o que se anuncia e o que realmente se faz é imensurável.


Há, no entanto, uma outra esfera a que se presta ainda menos atenção. Refiro-me às ‘intenções’ expressas em decretos que criam comissões e/ou grupos de trabalho para elaborar propostas que nunca se materializam ou, quando se materializam, nunca são implementadas. E, com isso, o tempo passa, muda-se o governo e ‘tudo permanece como dantes no quartel de Abrantes’.


Três decretos


Na quarta-feira (21/7), o presidente Lula assinou decreto criando uma comissão interministerial para ‘elaborar estudos e apresentar propostas de revisão do marco regulatório da organização e exploração dos serviços de telecomunicações e de radiofusão’. A comissão será integrada por representantes da Casa Civil, dos Ministérios das Comunicações e da Fazenda, da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) e da Advocacia Geral da União. Representantes de órgãos e entidades da administração federal, estadual e municipal, além de entidades privadas, poderão ser convidados a participar das reuniões. O artigo 6º do decreto diz que ‘a Comissão Interministerial encerrará seus trabalhos com a apresentação, ao Presidente da República, de relatório final’, mas não estabelece qualquer prazo para que isso ocorra [ver íntegra do decreto].


O ministro Franklin Martins, da Secom, declarou que ‘a idéia é deixar para o próximo governo propostas que permitam avançar numa área crucial e enfrentar os desafios e oportunidades abertos pela era digital na comunicação e pela convergência de mídias’ [cf. Blog do Planalto].


O que não se disse, mas está escrito no artigo 8º do próprio decreto, é que o atual revoga um anterior, assinado pelo mesmo presidente Lula há pouco mais de quatro anos, com, basicamente, a mesma finalidade. O decreto de 17 de janeiro de 2006 criava uma ‘Comissão Interministerial para elaborar anteprojeto de lei de regulamentação dos artigos 221 e 222 da Constituição e da organização e exploração dos serviços de comunicação social eletrônica’ [ver íntegra do decreto].


Que se saiba tal comissão nunca se reuniu.


Acredite se quiser: o decreto de 17 de janeiro de 2006, por sua vez, já revogava outro decreto, assinado também pelo presidente Lula nove meses antes, em 26 de abril de 2005, que criava um ‘Grupo de Trabalho Interministerial com a finalidade de elaborar anteprojeto de lei de regulamentação dos artigos 221 e 222 da Constituição e da organização e exploração dos serviços de comunicação social eletrônica’. Vale dizer, tinha as mesmas finalidades [ver íntegra do decreto].


O artigo 3º rezava que ‘o Grupo de Trabalho deverá apresentar às Câmaras de Política Cultural e de Política de Infra-Estrutura do Conselho de Governo relatório e proposta do anteprojeto de lei (…), no prazo de cento e oitenta dias contados da publicação da portaria de designação de seus membros, prorrogável por mais noventa dias’.


Que se saiba tal grupo de trabalho nunca se reuniu.


Antes do primeiro decreto


O decreto de abril de 2005, por sua vez, surgiu diante das resistências dos grandes empresários da radiodifusão e do audiovisual em relação à intenção (sim, apenas intenção, porque nunca se chegou a divulgar um projeto oficial) do Ministério da Cultura de transformar a Ancine em Ancinav. Essa transformação, como se sabe, nunca aconteceu.


Naquela época escrevi em texto otimista neste Observatório:




‘As notícias nos dão conta de que, em reunião onde estavam presentes pelo menos oito de seus ministros, além do líder do governo no Senado Federal, na quinta-feira (13/1/2005), o presidente da República determinou que se prepare um projeto de Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa (LGC) e que se transforme a Ancinav apenas em agência de fomento e fiscalização’.


A justificativa era de que a Ancinav – ou que outro nome viesse a ter quando finalmente criada – deveria ser uma agência reguladora das comunicações funcionando dentro de um amplo marco regulatório.


A rigor, desde o plano de governo do candidato Lula, em 2002, a necessidade de se criar, imediatamente após a posse, um grupo de trabalho para elaborar uma proposta de Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa, a ser amplamente discutida com a sociedade, foi sugestão majoritária por parte daqueles chamados a colaborar na sua elaboração. O tema, no entanto, não apareceu na versão final do plano de governo tornado público.


[Qualquer semelhança com o que já aconteceu com o primeiro programa de governo registrado no Tribunal Superior Eleitoral pela candidata Dilma Roussef, neste ano de 2010, não é mera coincidência.]


Antes ainda, nos tempos de Fernando Henrique Cardoso, o ministro Sérgio Motta, no início do primeiro governo, já falava – oficialmente – na elaboração de um ‘marco regulatório’ para as comunicações brasileiras. Pelo menos seis pré-projetos de uma Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa chegaram a circular nos bastidores do governo antes do falecimento do ex-ministro. Posteriormente, ao tempo do ministro Pimenta da Veiga, uma nova versão do pré-projeto chegou a ser colocada em consulta pública pelo Ministério das Comunicações. Não deu em nada.


O tempo passa e…


Afinal, que forças poderosas são essas que continuam a impedir até mesmo a elaboração de uma proposta de marco regulatório para uma ‘área crucial’?


Do primeiro governo de FHC até hoje são quase 16 anos! Daqui a pouco mais de cinco meses o presidente será outro, o governo será outro. E como disse o ministro Franklin Martins, ficará para o próximo governo – seja ele qual for – cuidar de eventuais ‘propostas que permitam avançar numa área crucial’. Em outras palavras, fazer o que até agora não se fez, isto é, elaborar, pelo menos, um projeto de lei a ser enviado ao Congresso Nacional que crie um marco regulatório para as comunicações no Brasil.


Quem viver – e tiver memória – verá.

******

Professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher,2010