Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Do erro monumental à autoflagelação estratégica

A cada prática, a democracia aponta uma série de providências complementares.


Dela sempre se disse que pode não ser o melhor regime de governo, mas certamente é o menos ruim, certamente pelo auto-aperfeiçoamento de imediato, a cada utilização. Foi o que aconteceu nesta eleição presidencial, quando mais uma vez o processo democrático deixou logo evidentes pelo menos quatro pontos a aperfeiçoar: 1) a questão da urna eletrônica como espécie de caixa-preta; 2) a influência, para o bem e para o mal, das pesquisas eleitorais; 3) as múltiplas e infinitas possibilidades de corrupção e fraudes durante o processo eleitoral; e, 4) a urgência de reforma política, incluindo a correção necessária dos erros agora apontados.


Embora meu passado como jornalista esteja associado ao processo eleitoral (denúncia da tentativa de alterar o voto democrático em 1982) [ver remissões abaixo], não sou analista político e, muito menos, faço parte deste clã exótico dos chamados cientistas políticos, quando se sabe que política não é ciência, às vezes nem arte e quase sempre apenas vasto campo de ação de estelionatários. Qualquer simples observador viu, nesta eleição.


Não há quem conteste, a urna eletrônica é uma espécie de caixa-preta. Primeiro porque exige decodificador próprio, segundo porque informatiza mas não permite acompanhar em tempo útil de reparo e, terceiro e principal para o eleitor, porque não dá direito ao comprovante do voto. Ou seja, ao contrário da navegação aérea, nem após um desastre há como recuperar cada etapa do processo. Não é por outra razão que, apontada como grande evolução, a urna eletrônica brasileira não foi aceita em países que têm compromisso maior com a cidadania como, o direito de o eleitor levar para casa o comprovante da decisão tomada, não apenas o mero ‘recibo’ da presença física.


A lambança praticada por um fornecedor brasileiro, em país vizinho, criando polêmica eleitoral e metros de noticiário das agências internacionais, mostra uma das facetas cinzentas do frágil processo tido como avançada e imbatível tecnologia. Também foi muito estranha a demora de revelação dos votos em São Paulo, no primeiro turno desta eleição, trazendo lembranças daquelas marotas manipulações do irmão do Bush, na eleição norte-americana.


Quanto às pesquisas, qualquer antigo observador de procedimentos eleitorais aponta inicialmente o monumental erro de marketing da campanha oposicionista.


Erro monumental


Muito da firme e continuada consolidação das expectativas de votos do presidente Lula se deve ao fato de que as pesquisas encomendadas e divulgadas pela mídia contrariavam a majoritária posição editorial por ela adotada e, mais do que isto, os assumidos desejos e eventuais compromissos ideológicos e partidários. Ou seja, não pode ser diferente se a cada hora se exalta um candidato e, simultaneamente, revela-se que o outro está na frente. O tempo todo a mídia fortaleceu a posição de Lula, embora o objetivo nem sempre fosse este.


O pessoal da Opus Dei, além disto, esqueceu a máxima dos jesuítas de que devemos fortalecer o nosso lado forte. E não a reconhecida e repetitiva fraqueza. O que acabou representando, por ironia do destino, a indispensável dose de imparcialidade que a mídia precisa exibir para ter credibilidade.


O erro monumental do marketing naturalmente não foi da mídia, mas dos partidos políticos que, fazendo denúncia e em seguida realizando pesquisa de opinião pública, acreditaram que poderiam obter resultados eleitorais. Foi, assim, uma autoflagelação estratégica.


Efeito prático


Lógico que os institutos de pesquisa nada têm com isto. São serviços oferecidos a quem possa pagar a necessária busca dos dados. Mas não parece ser do interesse público que, em nome de pretensa liberdade de expressão, pesquisas de opinião exerçam tal influência sobre processo eleitoral democrático, para o bem ou para o mal. Pesquisa de mercado continuará, em princípio, sendo um negócio especializado e voltado para o sucesso dos produtos e serviços, utilizando de poderosa arma para atingir objetivos mercadológicos.


É verdade também que o uso dos dados pesquisados beneficia primeiro os veículos da mídia, antes mesmo dos efeitos sobre candidaturas e partidos. Desta vez, no entanto, em função da inesperada consciência cívica da população brasileira, não houve prejuízos, apenas nova e irrefutável influência do resultado das pesquisas. Para o bem, felizmente.


O terceiro ponto a focalizar é a moeda que rola nas campanhas eleitorais e no submundo dos partidos políticos, com intermináveis e indescritíveis aplicações do poder do dinheiro, o grande mito moderno capaz de transformar a corrupção em felicidade individual ou de grupos de pessoas, das mais diversas classes e categorias dentro da sociedade. Age e atua antes, durante e depois. Pior de tudo: entendo que nenhum partido político realmente deseja acabar com ela, simplesmente porque, no momento (eleição) seguinte, pode estar ligado a ela e a seus espetaculares benefícios. Não se trata de questão ética ou moral, mas de examinar simplesmente o efeito prático e a presença sempre atuante da corrupção, para cortar os tentáculos de forma positiva e definitiva. Antes, durante e depois do processo eleitoral.


Fácil e simples


Tudo isto leva ao quarto ponto, o da necessidade urgente de uma adequada reforma política que regule e clareie, ao mesmo tempo, os efeitos das etapas tecnológicas da urna eletrônica, impeça a extrapolação danosa de pesquisas eleitorais e dignifique enfim o processo político, restabelecendo-lhe a indispensável credibilidade. São pontos que beneficiam e fortalecem a democracia e garantem a verdadeira cidadania, considerando-se república como coisa pública, do interesse da sociedade.


Se não sabem como fazer, eis uma boa sugestão: como na economia, entreguem tudo aos banqueiros. Pelo menos, quando se utiliza a parafernália eletrônica das agências bancárias, sai um saldo ou extrato capaz do registro instantâneo de todas as operações realizadas. Olha só a utilidade prática disto na urna eletrônica ou em relação aos recursos de campanha. Neste caso, por exemplo, estará claro o valor de depósito e insofismável o depositante com CPF e demais exigências. Não há nem necessidade de fazer pesquisa, antes e durante: em tempo real, está tudo naquela tirinha de papel que a máquina obrigatoriamente imprime.


Parodiando o poeta, tudo é fácil e simples quando a alma não é pequena. E não há dúvida de que vale a pena experimentar.

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Jornalista, escritor e professor-doutor em Comunicação Social