Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Dos alunos mortos em Realengo

As observações seguintes pressupõem o funcionamento de sujeitos não constituídos, mas de posições condicionadas pela História (pensada como luta de classes) e por ideologias contraditórias. Portanto, se você, leitor, está definitivamente convencido de que nenhuma instância histórico-ideológica (e inconsciente também) o precede no seu pensar/dizer/escrever, de modo que tudo o que você pensa e fala é exclusivamente de seu “espírito interior” que emana, por favor, vire a página.

Em outros termos, o que quero dizer é que há duas perspectivas principais para pensarmos sobre as pessoas e seus pensamentos, suas escritas, o que fazem e deixam de fazer. A primeira corresponde a tomar a pessoa como sendo uma única peça em todo o mundo e em toda a história. Do ponto de vista biológico, isso até parece razoável, uma vez que até em caso de gêmeos há sempre uma diferença. Trata-se, nesta, das consequências da filosofia idealista, para a qual cada pessoa nasce pronta para ir amadurecendo cognitivamente, desenvolvendo capacidades natas, dizendo, escrevendo e praticando hábitos que somente esta pessoa o poderia fazer.

A segunda é o oposto da primeira porque considera cada pessoa como uma posição em deslocamento e atravessada por história e por ideologias que se manifestam de modo diferente dependendo do lugar, das circunstâncias, das crenças, dos interesses sociais. Esta concepção pensa o sujeito como rede simbólica, de modo que o que se pensa/pratica não é exclusividade de uma pessoa, mas tudo orientado e condicionado pelo próprio modo material e produtivo que uma sociedade se (des)organiza. Mas, o que isso tem a ver com o caso recente dos alunos sacrificados em Realengo? Tudo.

O egoísmo ilusório

É só acontecer algo desse gênero (tragédia “inédita”) que logo começa o show da mídia para encher as telas de TV e PC com psicólogos, autoridades, familiares e amigos para mapear o cérebro psicótico de uma pessoa que fez o que fez porque era problemática, maluca, tímida, atribuindo sua iniciativa a um desequilíbrio seu, sua culpa. Ou seja, a pessoa é considerada como única responsável por seus pensamentos e ações. Qualquer desvio da vida comum que leva a maioria das pessoas (e matar tantos adolescentes de uma só vez é um “desvio” que incomoda muito) é, claro, condenado, mas dócil e cegamente arranjado como um problema exclusivo daquela pessoa, daquele “doente mental”, daquele “criminoso”.

Ora, não adianta rodear os muros da escola com flores e velas. Não adianta dar “assistência psicológica” aos familiares. Não adianta condenar o atirador por psicose e buscar tratamento para os problemas individuais de futuros loucos, como propôs a grande filósofa Ana Maria Braga no Mais Você. O primeiro passo para tentar compreender e resolver essas “maluquices” é assumir que cada pessoa pensa o que pensa e faz o que faz via condições reais e imaginárias de sua existência social. Ou seja, cada pessoa faz o que faz por causa da atualização de saberes, de conhecimentos, de verdades, de vontades que uma sociedade pratica, e que não é nunca equilibrada, mas em constante luta: belo contra feio, homossexual contra heterossexual, bem-sucedido contra falido etc.

Enquanto a gente viver ilusoriamente na ordem do “cuida da sua vida que eu cuido da minha” essas “tragédias” serão tendências. Por exemplo, para cuidar da água, da poluição, do planeta, somos todos solicitados como sociedade, todos juntos! Mas, nesse caso das mortes no Rio, a culpa é só daquele que matou? Eis um tristíssimo e importante episódio para rever nossas vontades, nossos desejos/frustrações, nossas pretensas verdades. Mas, isso requer um tapa doído na própria face: transpor o egoísmo ilusório, porém muito real, do eu. Trata-se de cuidar da sociedade.

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Professor e funcionário público, Cascavel, PR