Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

E agora, caro colega? – 2

Na sua coluna quase diária no jornalão paulistano Folha de S. Paulo, visto que não escreve nas segundas-feiras, o veterano jornalista Clóvis Rossi tem destilado algum veneno contra tudo e todos, especialmente contra o governo Lula. É claro que ele tem todo o direito de expor, e isso ele faz com coragem, suas idéias, suas posições, pontos de vista sobre o que ele bem entender. Concorde-se ou não com seus textos, Rossi ‘cai de pau’ naquilo que ele considera medíocre, sacana, corrupto, enganação, politicagem etc. Pode até ter razão em alguns momentos, mas dá uma sensação esquisita de que há algo de estranho no reino da Barão de Limeira, tal é a ferocidade de alguns de seus escritos, como se a corrupção, a politicagem, os mensalões, as negociatas, os acordos nefastos, as ‘pizzas’ etc. fossem marca registrada da atual administração. Como se tudo isso e muito mais nunca tivessem acontecido em governos anteriores.

Ora, para um jornalista com a sua experiência e conhecimento, é estranho. Por que anda tão especialmente zangado se grande parte de tudo que aconteceu, e ainda acontece, é repetição do que vem acontecendo há muitas décadas no cenário político-partidário do país? Não parece ser privilégio de nenhum dos partidos políticos brasileiros existentes essa condição esdrúxula. Ou não. É só para entender, nada mais.

Na edição de domingo, dia 5 de março, na Folha Opinião, Rossi, no texto ‘O que você não lerá’, escreveu que

A definição de reportagem que mais me seduz ouvi-a de Carl Bernstein, um dos dois repórteres do caso Watergate. Diz o seguinte: ‘Reportagem é a melhor versão da verdade possível de obter’. É a admissão de que 90% ou mais dos fatos que os jornais relatam a cada dia ocorrem longe das vistas de seus jornalistas. Logo, os repórteres estão condenados a juntar versões da verdade, ouvidas dos protagonistas, e organizá-las da melhor forma possível e que faça o máximo de sentido.

Critérios travestidos

Usa como exemplos o que rola nos encontros de chefes de Estado, nas conversas ao pé da mesa, e não naquilo que é divulgado, necessariamente, pela mídia. Teria sido assim com Lula e Blair, em 2003, segundo Rossi na matéria, e provavelmente aconteceram coisas semelhantes no recente encontro na Inglaterra. Mas, independentemente dos vários obstáculos que surgem entre a missão jornalística de cobrir determinado fato e aquilo que será efetivamente divulgado, há um limbo que não é mencionado no texto. E essa ‘melhor versão da verdade possível de obter’ que o repórter consegue nem sempre é utilizada e veiculada. Além dos problemas e dificuldades inerentes a todas pautas, o repórter acaba ainda se defrontando com um outro obstáculo, tão grande quanto qualquer outro. A edição.

O repórter é a peça mais simples na ‘produção da notícia’. Recebe uma pauta e vai para a rua. Depois de completada entrega ao editor. E é esta figura quem decidirá o que fazer com o material entregue. Poderá sair na íntegra, poderá ser cortada, mexida, editada ou mesmo suprimida da edição final. Procedimento normal em qualquer veículo de imprensa. Isso tudo significa que a tal da ‘melhor versão possível’ passa por vários filtros antes de ser divulgada.

O trabalho de edição obedece, em princípio, critérios jornalísticos ou não, definidos pelos donos do veículo. São os editores e chefes de redação quem, de maneira geral, gerenciam o trabalho dos repórteres e os assuntos que deverão ser pautados e trabalhados. Os critérios para estas definições são políticos, ideológicos, financeiros, religiosos, comerciais, familiares ou tudo isso junto e muito mais, mas sempre travestidos de critérios meramente profissionais ou empresariais.

Apenas um operário

Então, a ‘melhor versão possível’ deixa de ser ‘a melhor’ e passa a ser apenas ‘o possível’. E nesse espaço, na entrega da matéria e a transformação dela em notícia, é onde a manipulação da informação se materializa. Ela já foi decidida antes, mas sua concretização acontece nesse momento do processo de produção da notícia. Quando um repórter sai para uma pauta, com orientação do pauteiro ou do próprio editor sobre como cobrir isso ou aquilo, o que perguntar numa entrevista etc., mesmo sendo um procedimento normal nas redações, pode significar o primeiro passo para a manipulação da informação. Raramente um repórter tem tempo de se preparar para uma pauta – pesquisar o assunto, as pessoas envolvidas etc.– exceção feita aos jornalistas mais conceituados, ‘da casa’, repórteres especiais que já sabem, até pela experiência, o que e como fazer. Não perdem tempo nem dinheiro. A empresa agradece…

Qualquer pauta é muito mais rica em informações do que um repórter consegue acumular. Com a orientação recebida, ele deixa de lado muitas outras informações de peso, mas que não interessam ao veículo. Assim, nem sempre o resultado do trabalho de um repórter significa ‘a melhor versão possível’. Essa definição é muito abrangente, talvez um pouco acadêmica ou sirva para apaziguar alguns ânimos, a consciência pesada ou a culpa não assumida de alguns jornalistas. Vai saber… A realidade é que a informação é sempre manipulada. Se não interessa a sua divulgação, por qualquer motivo, ela ‘dança’, ‘cai’, ‘finito’. Ou pode virar uma outra coisa, às vezes totalmente diferente daquilo que foi trabalhada pelo repórter.

Neste clima de falsidades, de orientação ‘empresarial’, de influências e de interesses políticos determinando pautas e a divulgação das notícias, não dá para acreditar na existência da chamada imprensa livre. O repórter é pago para cobrir um fato, realizar uma pauta e pronto. O resto independe dele. As decisões finais são tomadas nas instâncias superiores da produção da notícia. Independe da vontade do repórter se essa ou aquela matéria, mesmo sendo ‘a melhor versão da verdade possível de obter’, será divulgada exatamente como ele a finalizou. Ele é apenas um operário, um trabalhador como outro qualquer cumprindo uma tarefa que seus superiores mandaram fazer, e pronto. Nada a acrescentar.

Liberdade de empresa

Aos jornalistas que aceitam trabalhar sob estas regras, tudo bem, sem problemas. Bem-vindos ao mercado de trabalho como ele realmente é. Para os que ainda acreditam romanticamente na missão social da informação, na necessidade de haver liberdade de imprensa e de opinião nas sociedades democráticas, na responsabilidade social da mídia, na ética, na história, aí as coisas são um pouco diferentes. Cada vez mais o espaço para um jornalismo decente e ético se estreita na sociedade capitalista. O monopólio das empresas de mídia cresceu, ficou mais forte, dificultando quem ainda deseja e acredita num trabalho sério no jornalismo. O que se faz hoje em dia, especialmente no telejornalismo, é entretenimento, show, propaganda, marketing, tudo isso travestido de jornalismo. A notícia não é o principal produto, mas sim como ela é apresentada no seu conteúdo e, principalmente, na sua forma. Não interessa o fato, mas a sua melhor versão que atenda aos interesses empresariais, políticos, partidários, ideológicos, financeiros etc. da empresa jornalística.

Assim, a definição que Rossi apresenta em seu texto cai no vazio. Não há, na prática, ‘a melhor versão da verdade possível de obter’. Existe, isto sim, ‘a melhor versão que a mídia concorda em divulgar’, aquela que a empresa jornalística divulgará, obedecendo critérios definidos por ela própria e pelas suas alianças no mercado e no cenário político-partidário.

Uma vez, tempos atrás, alguém escreveu que ‘não existe liberdade de imprensa. O que existe é liberdade de empresa’. O que mudou, colega Rossi? Só para saber, nada mais.

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Jornalista