Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Toques da mídia cartelista

Portugal, domingo, 18 de dezembro de 2011:

>> Manchete na edição online do diário i: “Passos Coelho sugere que professores desempregados emigrem para o Brasil e para Angola”.

>> Manchete na edição online do Público: “Passos Coelho sugere a emigração a professores desempregados

>> Manchetes na edição online do Diário de Notícias: “Seguro chocado com declarações de Passos sobre professores” e “Líder da Fenprof aconselha Passos Coelho a emigrar”.

Fugir “a salto” era, no Portugal da ditadura fascista, migrar para a França “pulando” a Espanha. Eis que o primeiro-ministro da direita portuguesa, Passos Coelho (um político estreante e inábil) reifica a modalidade: se não se pode solucionar a Educação, livre-se dela, ainda que à custa da inteligência de um país.

Os links acima são exemplos da crueldade acerca do que é a genuína direita europeia, que mergulha o continente numa era de incertezas e exploração capitalista poucas vezes vistas na História. Acentua-se a gravidade em contextos como os de Portugal, país com uma das maiores defasagens de escolaridade entre seus habitantes (quase 20% não completaram nível algum). A refletir e acompanhar.

Entretanto, uso do delicado acontecimento para remeter ao que abunda na Europa e claudica por cá. Portugal, em que pese a crise econômica e social que atravessa, nos lega uma lição primorosa de jornalismo, essa invenção fantástica do século 19, na definição Foucault.

Eliminar a concorrência

Nenhuma das manchetes acima foi gerada por matéria de um dos grandes jornais de Portugal citados no início deste texto, mas pelo Correio da Manhã, uma espécie de O Dia lusitano. Diferente do que cá ocorre, a imprensa portuguesa não deixa de repercutir um assunto que é de interesse público, ainda que o mote seja o de um concorrente. O mesmo se dá nas redes de TV, nas emissoras de rádio, mesmo que o assunto contrarie este ou aquele interesse privado. Afinal, eis a justificativa da existência do jornalismo, a difusão e o amplo debate público de determinada questão.

No Brasil, há uma interdição ao debate e a citação de um concorrente pelo outro, com exceção de poucos de veículos de alcance nacional, como a revista CartaCapital ou a TV Record, raridade replicante nas mídias locais e regionais (em Fortaleza, O Povo eventualmente cita e repercute seu principal concorrente, o Diário do Nordeste/Globo, mas a recíproca inexiste). Ironia: a rede Record, de propriedade da Igreja Universal do Reino de Deus, é hoje o melhor e mais ético jornalismo televisivo do país, no âmbito das empresas privadas.

Contudo, a não-citação da concorrência, longe de ser uma questão de disputa de mercado, revela-se como estratégia cartelista de poder. “Cartel”, termo oriundo da economia que significa “acordo explícito ou implícito entre concorrentes para, principalmente, fixação de preços ou quotas de produção, divisão de clientes e de mercados de atuação. O objetivo é, por meio da ação coordenada entre concorrentes, eliminar a concorrência, com o consequente aumento de preços e redução de bem-estar para o consumidor” (a definição é do Ministério da Justiça).

Cartel assimilado pela mídia

Fora do foco das redes e TV e dos jornalões, o lançamento e consequente repercussão do livro A Privataria Tucana, do jornalista Amaury Ribeiro Jr, provavelmente o maior fenômeno editoral do ano (80 mil exemplares tirados e praticamente vendidos em uma semana), é também símbolo da importância de veículos credíveis de imprensa (CartaCapital e Record). Sobretudo, é prova da irreversível penetração da internet na sociedade, legando ao vexame público jornais e jornalistas ávidos por escândalos, desde que não contrariem os interesses de seus patrões e/ou de patrocinadores de iniciativas e de suas publicações e projetos pessoais.

A imprensa europeia não é imune ao controle por parte do mercado, mas não zomba da inteligência do público, tampouco prescinde da presença de intelectuais em suas páginas – diariamente, e não a conta-gotas semanais, prescrição comum no Brasil (mesmo em certo jornalismo universitário), cuja imprensa é inimiga do pensamento.

A Privataria Tucana e sua desconsideração evidenciam a estratégia orquestrada de poder dos grupos privados de comunicação de massa. O silêncio para com o “concorrente” (aspas, pois aqui não se trata de concorrência, e sim, de aliado cartelista) ocorre para não promover o hipotético adversário de mercado, mas para também, e sobretudo, legitimar o próprio silêncio em torno de assunto que contrarie os interesses do cartel (não confundir com “máfia”, apesar das semelhanças).

Grosseiramente invisibilizado pela mídia convencional, A Privataria Tucana demonstra como o cartel foi assimilado pela grande(?) mídia nacional não só em termos de disputa mercado, mas também de negação de um imaginário já consolidado entre a população, que lhe presta assistência e audiência mas não mais se deixa guiar acriticamente como há duas décadas. Lembremos da reeleição de Lula em 2006: sob massacre e bombardeio da mídia cartelista, ele não só venceu o segundo turno como seu adversário (Geraldo Alckmin) teve menos votos que obtivera no primeiro. Portanto, o caso de A Privataria Tucana não é o primeiro. Será o último?

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[Túlio Muniz é jornalista, historiador, doutor pela Universidade de Coimbra (Portugal) e professor (temporário) da Universidade Federal do Ceará]