Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

A importância do capítulo 16

Ignorado por algum tempo, o livro do Amaury Ribeiro Jr. sobre as patifarias que supostamente teriam sido cometidas por tucanos durante e depois do processo privatização passou a ocupar o centro das atenções. Li o livro A Privataria Tucana com calma e aos poucos, interrompendo a leitura para ler duas outras obras (uma de história antiga e outra de filosofia contemporânea). Adquiri este hábito de mesclar leituras diferentes porque percebi que só assim consigo encontrar o melhor porto onde ancorar a resenha do livro sobre o qual pretendo escrever algumas linhas.

Não vou entrar no mérito das denúncias feitas por Amaury contra José Serra, sua filha e outros figurões do panteão tucano. Neste momento, os detalhes dos ilícitos praticados, se foram praticados, interessam mais à polícia e ao Poder Judiciário. Não vejo por que aborrecer o leitor reproduzindo aqui informações que ele pode obter no livro, informações que, por razões óbvias, não estou em condições de questionar nem tenho legitimidade para contestar (somente as pessoas que foram acusadas é que o podem fazer). Também não pretendo dar ao leitor um panorama do que a mídia tem dito sobre o livro. Neste caso, em razão da natureza do tema abordado por Amaury Ribeiro Jr., preferências políticas e partidárias contaminam as leituras e interpretações do livro de forma que entre a imagem da obra e a própria obra um abismo foi criado.

Como resenhar este livro sem incorrer em partidarismo? Esta foi a pergunta que fui me fazendo entre sua leitura e as pausas. Foi só ao ler o capítulo 16 do livro que encontrei um porto relativamente seguro para ancorar minhas observações sobre um aspecto relevante do texto que tem provocado tantos ataques e defesas apaixonadas.

Imprensa sangra

No capítulo 16, Amaury narra o que ocorreu durante a campanha petista, da criação do bureau de campanha de Dilma (que a mídia chamou depreciativamente de bunker) aos vazamentos ocorridos e que se pretendia estancar com a ajuda do autor do livro e de outras pessoas que seriam chamadas depois de “novos aloprados do PT”.

Os personagens da narrativa são políticos profissionais (do PT e do PSDB), jornalistas a serviço do PT, jornalistas de alguns veículos de informação que recebiam as informações vazadas e as noticiavam, ex-policiais especializados em espionagem procurando trabalho e renda, um despachante e vários policiais federais. O leitor fica com a impressão de que cada personagem cumpriu seu papel determinado na história, mas a narrativa sugere que houve uma grande confusão de papéis. Policiais federais tomaram depoimentos num hotel agindo como se fossem jornalistas ou agentes secretos. Jornalistas agiram como se fossem políticos profissionais ao ajudar uma facção de petistas contra a outra, divulgando vazamentos do bureau de campanha de Dilma.

Tragado para o centro da disputa presidencial, o autor diz ter sido transformado numa espécie de agente secreto e confessa que durante alguns momentos foi dominado por uma paranoia digna da Guerra Fria. O despachante virou informante jornalístico, testemunha policial e réu. O ex-policial espião sondado por petistas para prevenir os vazamentos no bureau de campanha de Dilma acabou não sendo contratado, mas, segundo o autor, fez jogo duplo em benefício da campanha de Serra ao plantar as sementes da discussão em torno da violação dos sigilos fiscais de tucanos – e também virou réu.

Foi essa confusão de papéis que mais me chamou atenção. Tragados pela voragem eleitoral, todos os personagens foram transportados para o campo político e se viram obrigados a jogar o jogo segundo as regras deste campo (onde o discurso é ação e o objetivo é a vitória, e não o respeito à lei). Mas, ao contrário do que possa parecer, a sociedade tem o direito de exigir dos policiais federais que ajam sempre e estritamente dentro da lei, e também pode e deve cobrar dos jornalistas contratados pelos partidos políticos um certo distanciamento da disputa em que atuam como assessores, e não como candidatos.

Os jornalistas que receberam informações vazadas do bureau de campanha de Dilma deveriam refletir se era conveniente ou não transformá-las em notícia, pois os vazamentos plantados em época eleitoral produzem uma indesejada confusão entre o campo jornalístico e o campo político. É justamente essa confusão que dá todo direito aos políticos e militantes de um partido de acusar a mídia de partidarização em benefício do outro candidato na disputa. A imprensa cumpre um papel relevante ao descrever e amplificar as disputas do campo político, mas sangra muito quando atua de maneira partidária ou é acusada, com justiça, de ter agido com partidarismo (a menos que assuma escancaradamente seu partidarismo, coisa que nem todos os veículos de comunicação fizeram).

Paradigma para as próximas eleições

Hesíodo era bastante pessimista sobre as disputas políticas. Na abertura de seu Os trabalhos e os dias ele diz:

“O Perses! mete isto em teu ânimo:/ a luta malevolente teu peito do trabalho não afaste/ para ouvir as querelas na ágora e a elas dar ouvidos./ Pois pouco interesse há em disputas e discursos/ para quem em casa abundante sustento não tem armazenado…” (Editora Iluminuras, 4ª edição, 2002, p. 23).

Hanah Arendt, entretanto, é um pouco mais otimista e nos dá um panorama mais elaborado da teia de relações sumariamente rejeitadas por Hesíodo. Diz ela:

“A rigor, a esfera dos negócios humanos consiste na teia de relações humanas que existe onde quer que os homens vivam juntos. A revelação da identidade através do discurso e o estabelecimento de um novo início através da ação incidem sempre sobre uma teia já existente, e nela imprimem suas consequências imediatas. Juntos, iniciam novo processo, que mais tarde emerge como a história singular da vida do recém-chegado, que afeta de modo singular a história da vida de todos aqueles com quem ele entra em contato. É em virtude desta teia preexistente de relações humanas, com suas inúmeras vontades e intenções conflitantes, que a ação quase sempre deixa de atingir seu objetivo; mas é também graças a esse meio, onde somente a ação é real, que ela ‘produz’ histórias, intencionalmente ou não, com a mesma naturalidade com que a fabricação produz coisas tangíveis. Essas historias podem, depois, se registradas em documentos e monumentos; podem tornar-se visíveis em objetos de uso e obras de arte; podem ser contadas e recontadas e transformadas em todo tipo de material. Por si, em sua realidade viva, possuem natureza inteiramente diferente de tais reificações. Falam-nos mais de seus sujeitos, do ‘herói’ que há no centro da história, como qualquer produto humano fala do artífice que o produziu, sem, no entanto, serem produtos propriamente ditos. Embora todos comecem a vida inserindo-se no mundo humano através do discurso e da ação, ninguém é autor ou criador da história de sua própria vida. Em outras palavras, as histórias, resultado da ação e do discurso, revelam um agente, mas esse agente não é autor nem produtor. Alguém a iniciou e dela é o sujeito, na dupla acepção da palavra, mas ninguém é seu autor.” (A condição humana, 10ª edição, Forense Universitária, 2008, p.196/197)

Hesíodo aconselha-nos a ficar distantes do campo político. Hannah Arendt diz que há mérito em participar da vida pública, mas lembra-nos que as relações preexistentes distorcem novas ações e discursos de tal maneira que estes produzem histórias indesejadas que se tornam paradigmas no futuro.

As confusões produzidas e vivenciadas pelos personagens da narrativa de Amaury Ribeiro Jr. que foram aqui mencionadas já não podem ser desfeitas. Quem acreditar que as mesmas são sórdidas demais se retirará da vida pública, como aconselha Hesíodo. Um otimista, entretanto, seguirá o conselho de Hannah Arendt, pois o capítulo 16 do livro A Privataria Tucana mostra aos interessados (especialmente aos jornalistas) como é perigoso deixar o campo jornalístico submergir inteiramente no campo político.

Mesmo que as acusações feitas aos tucanos não resultem em processo ou o processo não acarrete condenação, a história criada e vivida pelos personagens do capítulo 16 do livro (Amaury Ribeiro Jr. entre os tais) é exemplar, um poderoso paradigma que certamente ajudará a melhorar a atuação de policiais, jornalistas e políticos nas próximas eleições presidenciais: basta cada qual lembrar os limites impostos à sua atuação pelo papel que tem que desempenhar numa disputa eleitoral.

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[Fábio de Oliveira Ribeiro é advogado, Osasco, SP]