Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Reflexão sobre sua importância e seus desafios

O Jornalismo Cultural é um gênero que ocupa um papel importante na imprensa da atualidade. [Jornalismo Cultural é a produção noticiosa/analítica de eventos de natureza artística e/ou editorial. É um conceito genérico e elástico como é também a matéria-prima de suas coberturas, mas isso se deve menos à sua inconsistência do que à natureza da própria cultura.] Basta que o interessado observe o que acontece nas boas bancas de jornal para que se dê conta da variedade de títulos de publicações voltadas para a crítica das artes e da atividade cultural em geral – revistas, cadernos, tablóides, suplementos de jornais – numa clara demonstração de que sua importância não é apenas editorial, mas também econômica já que essa presença vem associada a muitos recursos publicitários destinados à sustentação financeira desses veículos. Além disso, nos anos recentes uma parte significativa das matérias relacionadas à cultura também está presente nos meios digitais – portais especializados, sites noticiosos, blogs e redes sociais. É possível que a imprensa esteja em crise porque vários órgãos desapareceram e outros foram enxugados com a perda de profissionais e a redução de suas coberturas, mas isso não tem sido suficiente para acanhar o dinamismo do Jornalismo Cultural.

Apesar disso, no entanto, o gênero enfrenta duas dificuldades. A primeira delas é interna, isto é, são os próprios profissionais da imprensa que têm dificuldade em definir o Jornalismo Cultural na sua concepção e natureza, fato que turva a imagem que seus autores fazem de si mesmos e do seu trabalho. Não é difícil encontrar veículos onde as matérias culturais são vistas como secundárias e meramente acessórias das demais editorias – sem que isso encontre algum tipo de resistência entre os profissionais, uma espécie de baixa-estima que aprofunda o desentendimento sobre o assunto.

Associa-se a essa primeira dificuldade uma outra: os estudos acadêmicos sobre o assunto – cursos, artigos, pesquisas universitárias, dissertações de mestrado ou teses de doutorado – além de poucos, também se debatem na procura de definições rigorosas que o tema exige para que possa ser entedido em toda a sua dimensão e importância.

Exemplo disso é a frequência como o Jornalismo Cultural é visto nesses estudos como um território de exercício do poder econômico de seus promotores e de verdadeiros manipuladores da opinião dos críticos. Um demonstração dessa perspectiva é o artigo do professor Quartim de Moraes publicado em 2010 no Observatório da Imprensa a respeito das engrenagens que criam os best-sellers comentados na imprensa brasileira (leia aqui). A julgar pelo que ele diz, toda a autonomia do crítico fica comprometida pelos interesses em jogo na simples resenha de uma obra literária.

Páginas digitais

Essas duas desqualificações que o Jornalismo Cultural sofre acabam reduzindo-o a um exercício mercantilizado e de pouca relevância – ou pela racionalidade editorial dos veículos (que não veem nele densidade jornalística) – ou pela racionalidade financeira dos editores (que veem nele um instrumento de merchandising de promotores de eventos culturais). O resultado é o pior possível porque ergue-se em torno do gênero um conjunto de avaliações que o segregam no quadro geral da imprensa, discriminando-o. Nessa visão o Jornalismo Cultural é algo secundário e meramente acessório na imprensa em geral.

A segunda dificuldade é externa e é bastante complexa porque ela remete às mudanças de ordem estrutural que a sociedade vem experimentando nas últimas décadas e que refletem alterações profundas nas referências culturais e de padrões de gosto do público. Também aqui o problema se desdobra. De um lado, observa-se já desde os primórdios do desenvolvimento dos meios eletrônicos de comunicação uma redução e uma mudança dos hábitos de leitura em razão dos estímulos dos veículos que primam pela sonoridade e pela natureza imagética de suas mensagens; são os veículos de comunicação eletrônica, hoje dominados pela tecnologia digital. O principal estudioso dessa tendência – o professor canadense Marshall McLuhan – afirmou em diversas de suas obras que essa mudança no processo de comunicação consagrada pelo Rádio, pelo Cinema e pela Televisão representava uma nova etapa na história da cultura humana – a etapa da retribalização da audiência (pela analogia que McLuhan fazia com os períodos da história em que a aquisição do conhecimento primava pela oralidade, à semelhança de uma tribo). [Marshall McLuhan é um autor obrigatório nos estudos contemporâneos de Comunicação e suas reflexões tiveram grande impacto nas teorias da área desde o final dos anos 60. A obra sugerida aqui éOs meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Editora Cultrix, s/d.]

Esse novo momento trouxe na contrapartida da variedade de possibilidades que permitia uma espécie de dispersão dos processos de cognição – já que não era mais a cultura alfabética o núcleo essencial da atenção do receptor. Com isso, todas as práticas relacionadas ao texto escrito sofreram o impacto dos meios eletrônicos – fato que concorreu fortemente para o declínio da atividade reflexiva individualizada que o livros sempre favoreceram. Essas mudanças vieram associadas a diversas outras, mas a mais importante delas parece ser, como dissemos, uma redução dos hábitos de leitura como decorrência de uma alteração que o livro passou a ter no cotidiano das pessoas.

Ora, se isso é verdade – embora a tese de McLuhan sempre tenha permanecido no terreno da polêmica que as construções teóricas provocam –, a crítica cultural talvez seja um dos primeiros e dos mais atingidos setores a sofrer suas consequências: foi a matéria-prima de sua atividade – a Literatura ou a produção do texto – que reduziu sua presença no cenário das práticas socioculturais. Não é difícil imaginar o impacto negativo que isso teve sobre as práticas jornalísticas – de resto, todas elas também afetadas pelo processo da retribalização.

De outro lado, mas ainda no terreno das mudanças estruturais apontadas acima, a história recente parece demonstrar que as tecnologias digitais tornaram mais agudas as tendências à “liquefação” do texto presentes na expansão dos meios eletrônicos. Em diversas situações, aquilo que McLuhan apontou como a aldeia global, cuja existência é favorecida pela transmissão de dados através de satélites, adquiriu nos anos 80 e 90 o perfil de uma explosão das comunicações, uma verdadeira revolução informacional que colocou em xeque todos os paradigmas da cultura clássica. É difícil apontar um único setor da atividade intelectual (sem que seja preciso indicar isso também no campo da economia e da ordem social) que não tenha sido impactado pela internet, pela formação das redes sociais, pela interatividade permitida nos veículos etc. O resultado disso, também aqui, parece ter desfavorecido o Jornalismo em geral, mas em particular o Jornalismo Cultural que sempre teve na hierarquia da centralidade autoral sua fonte de credibilidade e de prestígio junto ao público.

É frequente entre os próprios jornalistas da área da cultura a queixa de que o espaço da reflexão especializada sobre a Literatura, por exemplo, tem sido invadido pela profusão de páginas virtuais, quando isso não acontece diretamente pela interatividade que inúmeros sites e portais permitem aos que os acessam. São manifestações diversas, que repercutem a polêmica de um artigo ou de uma matéria, invariavelmente postadas por outros autores, verdadeiros “penetras” num terreno tão exclusivo quanto é o da crítica cultural. [Vale a pena ler, a esse respeito, a matéria publicada pelo suplemento cultural do jornal Valor EconômicoEu&Fim de Semana– intitulada “A crítica dos comuns”, assinada por Diego Viana. Trata-se de um precioso inventário sobre o desconforto que esse “descontrole” midiático provoca entre os próprios críticos – os acadêmicos e os jornalistas.] Ora, parece vir desse novo sistema um retraimento geral das fontes que sempre alimentaram o circuito de legitimação do jornalista junto à sua audiência, mas isso vem adquirindo uma tal intensidade que, dialeticamente, o reverso também passa a ser parte integrante do problema: o retraimento do público em relação às referências da área Cultural. Ou seja, são os usuários da rede passam a desconfiar do conteúdo que eles próprios ajudam a acumular nas páginas digitais. [Veja-se, por exemplo o que acontece com o fenômeno da Wikipedia, cuja intenção é ser uma enciclopédia que reúne todo o conhecimento humano já produzido a respeito de tudo. Como, para isso, é preciso contar com a colaboração dos próprios usuários, que postaminformações não autorizadas, isto é, sem a necessária credibilidade das fontes de consulta, cria-se em torno dessa maravilhosa ideia uma sistemática desconfiança na veracidade das informações que estão disponíveis. Esse processo – que talvez ainda reflita o caráter ainda incipiente da interatividade na rede – parece atingir – ou esbarrar – em todo o texto disponível na internet.]

Espaço de disputa

Esses dois fatos, que se conectam de forma simultânea e intermitente – perante o público, a crise da crítica (interna) se desdobra na crise de mediação do crítico (externa) – parecem indicar uma depressão nas práticas do Jornalismo Cultural que respondem pela busca de uma identidade mais consistente do gênero, alguma âncora epistêmica e sociológica que não o deixe ao sabor das idiossincrasias do mercado ou da técnica, nem mesmo ao sabor das pulsões do público na era de uma sociabilidade que põe o foco de suas virtudes não exatamente sobre o refinamento intelectual dos consumidores, mas no seu embrutecimento de gosto e estilo. Quer dizer, não é tanto a qualidade do que é publicado sobre a práticas culturais de qualquer espécie que importa, mas essa voracidade de consumo que tem o poder de mediocrizar tudo o que ela toca e que desperta em todos os agentes envolvidos pelo Jornalismo Cultural um forte ceticismo sobre o que ele é capaz de produzir.

Nessa linha de interpretação, a primeira variável que surge no emaranhado de problemas descritos até aqui, é a que aponta o Jornalismo Cultural como um gênero híbrido para cuja construção na confecção das matérias de que se ocupa concorrem outros atores sociais, dois deles de importância capital se quisermos entender em profundidade quais são os seus desafios: os intelectuais e os movimentos da sociedade civil. Não há crítica na órbita da cultura que não se faça de alguma forma na perpendicularidade entre o jornalista e esses dois co-protagonistas do cenário do Jornalismo Cultural.

Os intelectuais – acadêmicos ou não – têm no gênero a abertura para a publicização e divulgação dos temas que os ocupam – sejam eles os temas de natureza estético-expressiva ou os de natureza ético-política, os mesmos que formam a matéria-prima das pautas do Jornalismo Cultural –, fato que o transforma em espaço de forte presença na sociedade, de tal forma que a própria prática jornalística com as questões culturais transcende em significado os limites em que é desenvolvida. Uma análise qualificada e de forte sensibilidade conceitual sobre uma obra, por exemplo, pode perfeitamente acabar pondo em discussão questões que se situam além da crítica propriamente dita já que pode contribuir para a formulação de pontos de vista de amplitude ontológica e filosófica bem mais amplos que a estrita referência literária feita na matéria. [Sobre os conceitos apontados aqui – estético-expressivo e ético-político – sugiro a leitura do artigo de minha autoria – “Nem tudo que reluz é ouro: contribuição para uma reflexão teórica sobre o Jornalismo Cultural” – publicado na revista Comunicação & Sociedade, ano 28, n. 46, São Bernardo do Campo: Metodista, 2o. semestre de 2006. O texto também está disponível no Fórum sobre Jornalismo Cultural existente na minha página pessoal: http://www.jsfaro.net]

Sob esse aspecto, o Jornalismo Cultural não pode ser visto de forma dissociada dessa circunstância que o coloca como integrante de um processo social mais amplo; ele é, na verdade, um construção discursiva – sempre que a perspectiva mercadológica do veículo não se imponha sobre a primazia da produção cultural – que guarda estreita relação com o processo de gestação e de discussão das ideias, das correntes de pensamento, da estética, das normatizações da Política e do Direito, do campo das ciências físicas etc. É nesse território que ele encontra o espaço de sua legitimação. Imaginar que ele possa perdê-lo significa admitir que todo o conjunto de produções dessas áreas gira em torno de um vazio social intransponível, o que a própria história mostra ser improvável. [O exemplo mais concreto dessa amplitude que o Jornalismo Cultural tem no mundo das ideias e da organização dos intelectuais é o papel aglutinador que diversos veículos do gênero tiveram historicamente na imprensa brasileira. É o caso do “Suplemento Literário” do jornal O Estado de S. Paulo, ou de revistas como Clima, Diretrizes, Anhembi, manifestações paulistas da crítica cultural que acabaram reunindo em torno de seu projeto gerações de profissionais da imprensa e acadêmicos. Em Minas Gerais, o jornal Binômio, apontado como um dos principais representantes da imprensa alternativa na imprensa brasileira dos anos 50 e 60, também desempenhou esse mesmo papel.]

Ao lado disso, os movimentos sociais. Há tempos que os estudos de Comunicação deixaram de privilegiar questões meramente informacionais e quantitativas, como se a equação emissor-receptor se desse no âmbito de um sistema de inputs e outputs configurado em termos físicos. Essa foi uma noção que durante muito tempo sustentou a análise dos processos midiáticos. Não foi senão em meados dos anos 70 e início dos anos 80 que essa visão se alargou na direção de outras dimensões da Comunicação – a econômica, a política, a ideológica, a cultural – de tal forma que o sistema todo passou a ser visto como um complexo construtor de sentidos, muito longe de se esgotar na visão funcionalista que os primeiros teóricos da área sustentaram. Essa maior agrangência de perspectiva foi reponsável pela incorporação às práticas comunicacionais dos movimentos sociais, já que a própria Comunicação passou a ser vista como um espaço de disputa de poder – o poder simbólico e ideológico que as mensagens e os próprios veículos têm na sociedade.

Instrumento valioso

No caso brasileiro, essa nova orientação teórica dos estudos de Comunicação, mais crítica por assim dizer, foi contemporânea da época da ditadura militar (1964-1985), fato que coincidu com as restrições autoritárias que os meios de informação sofriam. Pois foi justamente nesse período que a presença da crítica cultural junto às demandas dos movimentos sociais se ampliou, o que deu a ela um enraizamento muito consistente na sociedade brasileira. Vale a pena relembrar, neste caso, a importância que o Jornalismo Cultural teve na crítica teatral, na crítica cinematográfica, na musical e também na literária: as avaliações que eram feitas na imprensa em geral sobre as manifestações artísticas nesses setores em diversas ocasiões adquiriam o perfil de um embate entre tendências estéticas e conceituais democráticas e as restrições do Estado autoritário.

Esse desdobramento que o Jornalismo Cultural tem – não apenas circunstancialmente, como se pode pensar nos exemplos recentes da história da imprensa brasileira, mas em relação a questões sociais e políticas de forte densidade universal – precisa ser resgatado sistematicamente para que ele encontre na sua própria herança e em suas próprias características a essência de sua natureza. É verdade que boa parte dos veículos que se destinam à crítica da cultura fazem, no fundo, matérias destinadas ao mero entretenimento e muitos deles são apenas instrumentos de interesses mercadológicos da dinâmica da sociedade de consumo, mas isso não anula o fato de que o gênero transcende, pela importância e pelos desafios que procuramos mostrar neste artigo, as injunções e inconveniências momentâneas. Uma sociedade complexa e diversificada como é a que a modernidade constrói tem no Jornalismo Cultural um instrumento valioso para emancipação de seus membros.

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Sugestões de leitura, além das indicadas no próprio artigo

(pela ordem alfabética do sobrenome dos autores):

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2004.

CÂNDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1973.

COSTA, Cristiane. Pena de aluguel. Escritores jornalistas no Brasil. Companhia das Letras, 2005.

IANNI, Octávio. O intelectual e a indústria da cultura. Revista Comunicações e Artes, ano II, n. 17. São Paulo: ECA/USP, 1986.

KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru: Edusc, 2001.

KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários. São Paulo: Scritta Editorial, 1991.

LINS, Osman. Guerra sem testemunhas. São Paulo: Ática, 1974.

MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira. São Paulo: Ática, 1977.

PEREIRA LIMA, Edvaldo. Páginas ampliadas. Barueri (SP): Editora Manole, 2004.

PIZA, Daniel. Jornalismo cultural. São Paulo: Editora Contexto, 2003.

RESENDE, Fernando. O jornal e o jornalista: atores sociais no espaço público contemporâneo. Novos olhares, ano II, n. 3. São Paulo: ECA/USP, 1999.

RIVERA, Jorge. El periodismo cultural. Buenos Aires: Paidós, 2003.

SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte: Humanitas, 2004.

WERNECK, Humberto. O desatino da rapaziada. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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[José Salvador Faro é professor dos cursos de jornalismo da Universidade Metodista e da PUC, ambas de São Paulo, docente do programa de pós-graduação em Comunicação da Umesp e consultor do CNPq, da Capes e da Fapesp. É autor do livro Revista Realidade, 1966-1968. Tempo da Reportagem na Imprensa Brasileira (Porto Alegre: AGE, 1999); www.jsfaro.net