Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Um viva aos demônios

Não surpreende que dentre as credulidades, e dentre os mais vibrantes entusiasmos do populacho, conste o credo, diabeticamente verde, de que a imprensa liberta. Mentira: a imprensa sempre foi libertada. Desliza para a macumba, para o voduísmo enfim, crer na imprensa livre. Não há fundamento nesta suposição. Hoje, 18 de junho, o caso Watergate faz 40 anos: e deixa uma longa história de que sem os diabos-bocas-moles, (graças a deus são assim), a imprensa seria pó de traque.

Pomposamente ensinados, e deficientemente aprendidos, os cânones do jornalismo deixam de lado, por pura autoestima, as referências de que o que há de bom no negócio da informação sempre vazou de dentro. Coisa boa, ou seja, notícia ruim, armagedônica, não vem dos dalais lama do bom mocismo: o inferno é quem sempre soube das cousas. Grandes casos não foram investigados: foram excogitados, ou vomitados, se preferirem.

Habilidosamente construída, a farsa da deontologia não pressupõe, ainda que a realidade o requeira, que os maiores furos da história da imprensa vieram de demônios insatisfeitos. Não eram certamente as prédicas das epístolas pastorais que comandaram o arbítrio e a jornada desses diabretes bem informados (mas sumamente insatisfeitos). Tais diabretes, de resto fontes donas dos maiores furos dos últimos 20 anos, só passaram as informações para os jornalistas por alguns predicados: ou porque roubaram e não conseguiram carregar; ou porque foram pegos de calças curtas; ou porque seus asseclas se deram melhor do que eles. Ou os três casos, tanto faz. Ninguém leva algo a jornalista por bom-mocismo: toda informação muito boa brota do ódio. O amor pela democracia, geralmente, é um subproduto de tal frustração. Nhonhô manda: caboclo faz. Se a casa caiu nesse processo, e sobrou só para você, procure um jornalista. E cure assim seu fígado. Brota desses retalhos a bandeira a que chamamos de liberdade de imprensa barra democracia.

Luiz da Costa Pinto, com Pedro Collor, Fernando Rodrigues, com o senhor X, Xico Sá, com PC Farias, Karina Somaggio, com Leonardo Attuch, e Renata Lo Prete, com Roberto Jefferson, sabem bem disso. O juiz Rocha Mattos deu a este repórter,de dentro da cadeia, a 9 de janeiro de 2004, as fitas secretas do caso Celso Daniel. Era demônio em seu habitat: mas muito bem informado. Se o diabo é quem é o dono da verdade, enfim, por que dizer-lhe não?

A incapacitação permanente da ética, como vendida de barato nas universidades, reside justamente neste axioma, jamais predicado pelo sublime idealismo dos sórdidos da academia: quem sabe das cousas é o capeta. Os dalais lamas são coxinhas, bundões mal informados.

Pai espiritual

Hoje completam-se 40 anos da explosão do caso Watergate. Em 18 de junho de 1972 o jornal The Washington Post noticiava na primeira página o assalto do dia anterior à sede do Comitê Nacional Democrata, no Complexo Watergate. Na campanha eleitoral, cinco pessoas foram detidas quando tentavam fotografar documentos e instalar aparelhos de escuta no escritório do Partido Democrata.

Encurtando a história que você já sabe décor: em 9 de agosto de 1974, quando várias provas já ligavam os atos de espionagem ao Partido Republicano, Nixon renunciou à presidência. Foi substituído pelo vice Gerald Ford, que assinou uma anistia, retirando-lhe as devidas responsabilidades legais perante qualquer infração que tivesse cometido. Fim da história: a fonte-demônio, que partiu do íntimo em que as decisões eram tomadas, o Garganta Profunda, acabou se revelando em 31 de maio de 2005. Elevados à condição de semideidades, os autores do furo, Bob Woodward e Carl Bernstein, confirmaram a fonte.

No caso Watergate, Hollywood e o imaginário coletivo acrescentaram ingredientes farsescos ao caso, e suprimiram alguns reais, mas inacreditáveis. Nunca o Garganta Profunda falou aos repórteres “follow the money”: tal ordenança foi criação do diretor do filme Todos os Homens do Presidente, Alan J. Pakula. E quando Woodward e Bernstein entregaram a primeira reportagem, dois terços do The Washington Post estava em greve, inclusive os dois.

Foi a dona do jornal, Kathy Graham, que fechou a reportagem com o editor-chefe, Benjamin Bradlee. Graham, em meio a redação vazia, enquanto titulava a primeira página com Bradlee, atendia aos telefonemas, para inclusive receber anúncios. É doidamente real o episódio em que alguém telefonou ao Post naquele dia de greve e, depois de perguntar o preço do centímetro-coluna de anúncio, acrescentou: “Você tem uma voz educada demais para ser apenas telefonista. É por causa da greve? Vai ver que você é a própria Katherine Graham”. E Kathy respondeu : “Obrigada, sou sim. Agora, por favor, o que o senhor quer?”

Raros pesquisadores do jornalismo tentam fazer uma reengenharia reversa: e chegar à origem desses furos caminhando de trás para a frente. Na recente história do jornalismo coube esse papel ao genial Paulo Francis. Foi na metade da década de 1970, no número 25 da finada revista Status, que Francis teve a pachorra de ir procurar um desses demônios bem informados. Trata-se de Daniel Ellsberg, a fonte que deu ao The New York Times, para a edição dominical de 13 de junho de 1971, os chamados “Documentos do Pentágono” – um furo que na verdade foi, em termos de peso quântico, o pai espiritual do rombo Watergate.

Material psíquico

Só para você lembrar: em 1967 o tecido social dos EUA se esgarçava, com as universidades tocando o puteiro contra o envolvimento dos EUA na Indochina. Robert Mc Namara, ministro da defesa de Kennedy e Johnson, entre 1961 e 1967,mandou confeccionar os Papéis do Pentágono. Entre outras coisas, os papéis revelaram a determinação intrínseca dos EUA de “impedir o alastramento do comunismo internacional”, custasse o que custasse. Quem passou os documentos ao The New York Times foi Daniel Ellsberg, tornado célebre nos anos 1980 ao aparecer chorando no documentário Corações e Mentes.

Ellsberg foi processado: foi ele quem roubou os documentos confidenciais do Ministério da Defesa. Nixon tentou barrar a publicação no Times, mas acabou vencido na Corte Suprema, que brandiu a Primeira Emenda da Constituição, a da total liberdade de expressão. No julgamento de Ellberg, descobriu-se, Nixon tentou subornar o juiz do caso, e ordenou pessoalmente a invasão ilegal do consultório do psiquiatra de Ellsberg, procurando material psíquico que comprometesse o réu. Julgamento anulado.

Os 40 anos do Wategate devem ser comemorados por todos os demônios falantes: sem eles, a democracia seria um enfado: o simplesmente não existiria.

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[Claudio Julio Tognolli é jornalista]