Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Apologia ao golpe de Estado paraguaio

Um dos acontecimentos internacionais mais comentados nos últimos dias foi a destituição, sob a alegação de “mau desempenho das suas funções”, do presidente do Paraguai, o ex-bispo Fernando Lugo.

Logo após a queda de Lugo, a maioria dos governantes sul-americanos prontamente apontou que, na realidade, houve um “golpe de Estado” em Assunção. “O governo do Equador não reconhecerá outro presidente do Paraguai que não seja o senhor Fernando Lugo”, assegurou Rafael Correa. “Houve uma ruptura da ordem democrática na República do Paraguai. Em minha opinião, parece uma paródia de julgamento o que aconteceu contra Lugo porque não há no mundo um julgamento político sem a possibilidade de defesa”, disse Cristina Kirchner. Evo Morales afirmou que Lugo foi vítima de um “golpe congressual”. Opinião análoga foi compartilhada por José Mujica, que classificou a destituição do ex-bispo de “golpe de Estado parlamentar”. Por sua vez, Hugo Chávez chamou o novo presidente paraguaio, Frederico Franco, de “usurpador”.

De acordo com o editorial de um partido político da esquerda brasileira “Lugo, um ex-bispo católico ligado ao movimento camponês, foi deposto para que os interesses de multinacionais imperialistas, ávidas pelos lucros da exportação de commodities, continuassem a prevalecer no nosso vizinho Paraguai”. Segundo informações divulgadas pelo WikiLeaks, um “despacho sigiloso da embaixada dos EUA em Assunção, dirigido ao Departamento de Estado, em Washington, já informava, em 28 de março de 2009, a intenção da direita paraguaia de organizar um ‘golpe democrático’ no Congresso para destituir Lugo”.

Escalada na violência no campo

Por outro lado, a mídia hegemônica brasileira mostrou-se favorável ao “golpe de Estado” na nação vizinha. Como bem observou Alberto Dines, em artigo publicado no Observatório da Imprensa, a “reação da grande imprensa brasileira ao impeachment do presidente paraguaio Fernando Lugo foi pronta e pífia: no dia seguinte, sábado (23/6), já apareciam aqueles editoriais chochos, resignados e malandros, considerando legal a destituição votada pelo Congresso do país vizinho”. Para Reinaldo Azevedo, colunista da Veja, “a lei foi cumprida. A democracia continua em pleno funcionamento. Os poderes instituídos e o povo do Paraguai reconhecem o novo presidente”. Em um noticiário da Rede Globo, Arnaldo Jabor teceu o seguinte comentário: “Na América Latina, existe […] autoritarismo disfarçado de democracia. Assim vive a Venezuela do Chávez, a Bolívia cocaleira do Morales, a Argentina de Cristina Botóx e o Paraguai […]. O Paraguai, é uma caricatura desse esquerdismo direitista latino. […] O bispo sem batina foi ‘impichado’ pelo Congresso, como está previsto pela Constituição do Paraguai. Agora, a polêmica: foi golpe ou impeachment legal? Os tiranetes latinos já gritam ‘golpe’. Mas golpe de quem? Da esquerda ou da direita?”

Já a cobertura realizada pela Rede Bandeirantes merece ser destacada. A princípio, a emissora da família Saad apresentou uma postura moderada. “Embora formalmente correto, dentro da Constituição, o impeachment de Lugo, no mínimo deixa dúvida sobre sua legitimidade política. Na verdade, o presidente foi deposto por seus adversários. Esquerdista, o ex-bispo acabou trombando com as velhas e persistentes aristocracias paraguaias”, asseverou Boris Casoy no dia da deposição de Fernando Lugo.

Todavia, no decorrer dos dias, os telejornais da Bandeirantes não se intimidaram em demonstrar o seu apoio à retirada de Lugo do poder. Na quarta-feira (27/06), o Jornal da Band destacava que a queda do presidente paraguaio teve repercussão altamente favorável entre os “brasiguaios” (termo utilizado para designar os brasileiros – e seus descendentes – que migraram para o Paraguai em busca de terras baratas). Ainda segundo o noticiário noturno, Fernando Lugo, primeiro presidente de esquerda na recente história paraguaia, era apontado por brasiguaios e grandes latifundiários como um aliado dos trabalhadores rurais sem-terra. Para os fazendeiros brasiguaios, enquanto permaneceu no cargo Lugo estimulou ocupações, o que teria provocado uma escalada na violência no campo.

Atrocidades escamoteadas

Em seu comentário no Jornal da Noite de quinta-feira (28/6), Joelmir Betting demonstrou todo o conservadorismo da emissora paulista: “O Paraguai não ‘rasgou’ a Constituição na troca de presidente pelo Congresso. Quem tem ‘rasgado’ a Constituição é a Venezuela. Pois agora o Mercosul recepciona festivamente a Venezuela e afasta o Paraguai feito ‘cachorro morto’. […] O bloco não é uma representação diplomática e muito menos ideológica. É uma associação comercial, uma integração econômica cujo o tratado vem sendo sistematicamente rasgado pela Argentina […], sem punição no bloco; ou seja, três pesos e três medidas. Ainda vão acabar colocando a culpa nos trezentos e cinquenta mil brasiguaios abandonados pelos dois governos, mas não a partir de agora pelo novo presidente paraguaio.”

Ora, pelo que consta, Chávez (como todos os governantes progressistas da América do Sul) chegou ao poder pela via democrática e está sustentado por uma Constituição recém-construída e aprovada pela ampla maioria dos venezuelanos. Em contrapartida, na “democracia paraguaia” houve um controverso processo de impeachment (sem possibilidade de defesa para o acusado e sem debate público) que derrubou ilegitimamente um presidente democraticamente eleito. Não obstante, de acordo com a cláusula democrática do Mercosul, prevista no Protocolo de Ushuaia, “a plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para o desenvolvimento dos processos de integração entre os Estados partes do Protocolo”. Portanto, a suspensão do Paraguai está de acordo com parâmetros do bloco econômico sul-americano.

Diante dessa realidade, cabe aqui uma questão capciosa: por que, para a mídia brasileira, governos eleitos pelo voto popular, mas contrários aos interesses estadunidenses, são considerados antidemocráticos; e, por outro lado, as atrocidades de regimes aliados à Washington (Arábia Saudita, Bahrein e Colômbia, por exemplo) são escamoteadas? Não é por acaso que o acrônimo PIG – partido da imprensa golpista – tem sido cada vez mais utilizado em nosso país.

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[Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas, Brasil: Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de História e Geografia em Barbacena, MG]