Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

É preciso repensar o que entendemos por mídia, diz filósofo

Com o avanço das tecnologias midiáticas na modernidade, descobrimos que não entendemos mais nem a mídia, nem a modernidade, nem o papel da tecnologia: é hora de questionar novamente todos esses conceitos. Esta é a proposta do pensador alemão Siegfried Zielinski, fundador da arqueologia da mídia, que estuda o tema segundo um paradigma de multiplicidade e diferença que ultrapassa as fronteiras da modernidade como a conhecemos.

Fundador da Academia de Artes e Mídia de Colônia (Alemanha) e professor de teoria da mídia, arqueologia e variantologia na Universidade das Artes de Berlim, Zielinski esteve no Brasil na última semana para uma série de eventos em Salvador, Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo.

Em suas apresentações, desenvolveu temas abordados na série Variantologia, de cinco volumes, que deve ganhar uma versão brasileira. Também tratou de questões presentes em Arqueologia da Mídia (Annablume, 2006), seu único livro traduzido no Brasil. Para ele, é preciso reencontrar as articulações entre técnica, ciência e arte para além da influência europeia.

Nesta entrevista, Zielinski fala também da redescoberta do pensamento do filósofo tcheco naturalizado brasileiro Vilém Flusser, que viveu de 1941 a 1972 no Brasil e foi professor da Universidade de São Paulo. Zielinski dirige o Arquivo Flusser em Berlim.

“O conceito de variantologia é muito poroso”

Sua obra recente gira em torno da articulação entre técnica, arte e ciência. São áreas que, por muito tempo, o Ocidente viu como incomunicáveis.

Siegfried Zielinski– Em outras culturas, a separação não é tão forte. Na tradição árabe-islâmica não é assim. A modernidade europeia foi baseada na criação de diferentes disciplinas e campos bem separados. O poeta Novalis e outros românticos, há 200 anos, viram que corríamos o risco de entrar num beco sem saída com tanta separação. A unidade de pensamento do mundo, combinando a natureza, o corpo e a mente, era fundamental para a poesia romântica. Isso incluía a unidade entre ciência e poesia. Talvez tenha sido a última ideia saudável de universalização.

Sua série Variantologiajá atingiu cinco volumes. O que define a variantologia?

S.Z.– O conceito de variantologia é muito poroso. É um neologismo que inventei para falar da multiplicidade das formas de relação entre artes, ciências e tecnologias em diferentes partes do mundo, entrando profundamente na questão histórica. Uso o exemplo do termo América “Latina”. É uma construção europeia: o conceito de modernidade no continente tem uma referência forte na tradição europeia. A pesquisa de tempo profundo tenta ir além dessas constelações históricas. Que tipo de heterogeneidades funcionaram antes da chegada dos europeus que poderiam ser usadas para criar um tipo diferente de futuro?

“Temos que evitar a psicopatia midiática”

Como é o procedimento?

S.Z.– Primeiro, constrói-se um modelo aberto de pensamento, um convite a repensar as relações entre arte, ciência e tecnologia. Como teórico da mídia, penso que o conceito de mídia que temos chegou a um beco sem saída. A mídia se tornou sistêmica e não se pode mais fazer revoluções com ela. Temos de repensar seu contexto sistêmico e redescobrir as múltiplas possibilidades das tecnologias de mídia. Buscar a variedade das relações históricas, que nos expliquem diferentes maneiras de entrar no futuro.

No ano passado, o senhor publicou um manifesto em que defendia a “esquizofrenia normal”, ou seja, “viver online e ser off-line”. Qual é o núcleo do argumento?

S.Z.– A ideia é simples: há partes da vida que não são formalizáveis e acessíveis para as máquinas. Temos de garantir que permaneçam assim. Nas demais partes, altamente formalizáveis, é útil trabalhar com máquinas e redes, capazes de comunicar a informação formal. Proponho, simplesmente, a separação. Concentrar as partes que não são formalizáveis no “ser offline” e a capacidade de calcular e organizar no online. Não vejo outra alternativa. A conectividade como dispositivo geral é uma armadilha. Convivo muito com gente jovem na universidade, e recentemente uma estudante exemplificou essa armadilha. Enquanto falava sobre a dependência da internet entre jovens, ela mandava mensagens de texto para 20 colegas que estavam sentados na sala, escutando-a. Ao final, ela tinha recebido 18 respostas. Mesmo nessa situação em que temos de ouvir um semelhante, estamos online. Talvez “esquizofrenia” seja um termo forte demais, mas temos de aprender a dançar nessas duas cordas-bambas, evitar o que chamo de psicopatia midiática, danos psíquicos permanentes por excesso de conexão.

“Estamos nos atirando no futuro”

Sua apresentação no Rio sugere a formação de um instituto da modernidade no Sul.

S.Z.– Não há um único conceito de modernidade, há muitos conceitos que competem entre si. Penso a modernidade como uma atitude experimental sobre o mundo, então tenho de aceitar que há muitas posturas assim. E diferentes períodos em que esse experimento acontece. Vamos deixar esse conceito florescer para então se perguntar se ainda temos de pensar em termos de modernidade. Talvez acabemos por descobrir que não precisamos mais. E tudo bem. Talvez essa instituição termine em sua própria dissolução.

A obra de Vilém Flusser, que viveu no Brasil, foi quase esquecida no país e agora é redescoberta. O que motiva esse retorno?

S.Z.– A recepção de Flusser acontece em ondas. Ele deu muitas ideias, não respostas, e perguntou coisas relevantes para a atualidade. As relações homem-máquina e as tecnologias de comunicação estão num ponto difícil de discernir. Não sabemos aonde ir. Ninguém tem boas soluções e é aí que Flusser entra. Suas perguntas são provocantes, ajudam a ter ideias para lidar com fenômenos tecnológicos. Sua família quase inteira foi morta pelos nazistas, e mesmo assim Flusser é esperançoso, diferentemente de outros teóricos da mídia, que são apocalípticos. Sua construção antropológica do mundo é algo que se dirige para o futuro, não para o passado. Estamos nos atirando no futuro e há possibilidades de torná-lo concreto.

Uma relação poética com a vida

A certa altura da Primavera Árabe, as sublevações foram apelidadas de “revolução do Twitter”…

S.Z.– É uma interpretação superficial da relação entre técnica, política e comunicação. A tecnologia exerce um papel importante nos processos culturais, mas não os causa, como os apologistas da internet creem. Vejo assim a questão da computação: computadores e máquinas de rede são basicamente dispositivos de pensamento: denkdinge (coisas que pensam). São dispositivos para pensar e calcular. Não substituem partes da vida ligadas às sensações e às emoções. São máquinas racionais. Calcular é a forma mais extrema de razão. Precisamos delas e elas de nós, mas essa distância deve ser resguardada.

Onde se deve estabelecer a fronteira entre o físico e o virtual?

S.Z.– Em 1991, quando montei a academia de Colônia, os primeiros visitantes vieram da maior loja de departamentos da Alemanha. Havia 1.300 pessoas trabalhando para preparar o futuro da distribuição de mercadorias, com uma visão absolutamente clara. Haveria a separação entre dois grupos de consumidores: os de massa, para os produtos de massa, que usariam sistemas online; e os elitistas, de artigos de luxo, que rejeitariam a compra online.

O luxo é offline, então?

S.Z.– É preciso ser luxuoso no sentido cultural. Sou fã de Georges Bataille, um propugnador de uma relação poética com a vida. É a recusa a contar todo o tempo, calcular tudo. E inclui estar fora do ar às vezes. Trabalho em casa, tenho uma assistente e um escritório. Não preciso ficar conectado. Meus colegas americanos passam várias horas por dia em suas máquinas. No meu tempo livre, faço coisas sensacionais que os outros não fazem porque estão online.

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[Diego Viana, do Valor Econômico]