Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Quem vai definir quais são os limites?

O Ocidente deve se abster de publicar filmes ou charges que sensibilizem o mundo islâmico?

É moralmente defensável a tese de que ninguém deve ofender ou ridicularizar símbolos considerados sagrados por outra pessoa.

Blasfêmia contra imagens, objetos ou personagens que representam religiões pode causar indignação ou dor, independentemente das possíveis consequências advindas delas.

Em princípio, todos os seres humanos devem ser tratados com respeito pelos demais.

Mas não é justificável que se exija de todos considerar sagrado o que outros assim julgam. O direito à liberdade de expressão também é um valor que pode ser defendido do ponto de vista moral.

Quem abusa dele e provoca danos a indivíduos ou comunidades pode ser processado na forma da lei e punido, quando considerado culpado. Mas muito mais complicado é arguir que Estados ou igrejas tenham poder para impedir que alguém expresse opiniões (ou as ouça ou assista) porque um contingente de devotos se sente ferido por elas.

Se assim for, e se essa condição se estender a todas as denominações religiosas (por que seria admissível que algumas gozassem de tal privilégio e outras não?), a vastidão de temas proibidos seria enorme.

Conteúdo infame

David Koresh, que morreu em 1993 com 82 de seus discípulos da seita Ramo Davidiano, no Texas, mereceria esse tipo de proteção?

E o reverendo Jim Jones, que em 1978 comandou o suicídio em massa de 918 adeptos de seu Templo dos Povos, na Guiana?

A bandeira nacional é sagrada para muitos. Nos Estados Unidos, já se tentou proibir que ela fosse insultada; o regime militar brasileiro punia quem, a seu juízo, a injuriasse, por exemplo, enrolando-se nela num show. Isso seria defensável sob o argumento de que o sagrado não pode ser ofendido?

A Igreja Católica tem o direito de condenar ao inferno a alma de Jean-Luc Godard por se sentir incomodada com o filme “Eu Vos Saúdo, Maria”, que considerou blasfemo. Mas o Estado não tem o direito de proibir sua exibição, embora o brasileiro o tenha feito brevemente em 1985.

Quem decide o que é blasfêmia contra quem? Quem tem o poder de resolver o que a sociedade pode ou não assistir? Quem separa o que é maluquice do que é sério? Quem define o que pode ser objeto de humor e o que não pode? Quem classifica o que é engraçado e o que é chulo?

Quando qualquer pessoa pode colocar em redes de comunicação mensagens acessíveis a milhões de outras, é possível ou desejável impor limites prévios para impedir que alguns grupos sociais sofram com o que é divulgado nessas redes?

Se A Inocência dos Muçulmanos não tivesse servido de pretexto para nenhum incidente ou morte, ele poderia ter ficado indefinidamente no YouTube, como provavelmente estão agora centenas de outros produtos similares ou muito piores?

Quem vai checar tudo nas redes para identificar o que pode, a seu critério, irritar xiitas, pentescostais, judeus ortodoxos, ateus, nacionalistas, e proibir sua divulgação? Ou só o que causar protestos será proibido?

É muito mais complicado hoje do que até 30 anos atrás prevenir a disseminação de conteúdo infame. É difícil imaginar, por exemplo, que rede de TV como BBC ou CBS colocasse no ar um filme de má qualidade e degradante como este.

Mais problemas

Jornalistas profissionais construíram ao longo de décadas um acervo de conceitos, práticas e princípios que diminui a possibilidade de ocorrência de episódios como este. Nas mídias sociais, esta cultura ainda não existe, e talvez nunca exista, devido à infinidade de emissores.

Tentar combater essa dificuldade com censura estatal ou eclesial a tudo que possa sensibilizar uma comunidade religiosa não é solução para o problema e criará muitos outros, mais graves, para a sociedade, em prejuízo especialmente de minorias e despoderados.

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[Carlos Eduardo Lins da Silva, 59, jornalista, é editor da revista Política Externa e autor de Correspondente Internacional (Contexto). Foi secretário de redação e ombudsman da Folha de S.Paulo]