Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Quando a ausência não é uma falha

A Ciência Hoje das Crianças é uma importante revista de divulgação científica voltada para o público infanto-juvenil. É compreensível, portanto, que os seus artigos procurem adotar uma linguagem simples e bastante acessível. Escrever de um jeito simples não significa, porém, exagerar nas analogias nem escrever de um modo que induza o leitor a erros e mal-entendidos.

A edição de abril (nº 233) da CHC trouxe artigos falando a respeito dos dentes em seres humanos. Em um deles, intitulado “Por que trocamos os dentes?”, de Edelto dos Santos Antunes, lemos o seguinte:

“E por que não nascemos logo com todos os nossos dentes definitivos? A resposta para esta pergunta tem a ver com a evolução da espécie humana. De uma forma simples, podemos dizer que, em algum momento da evolução, certos indivíduos passaram a ter dentes e que isso deve ter sido uma vantagem vital sobre os desdentados. Então, na competição natural pela sobrevivência, prevaleceram os indivíduos com esta característica, ou melhor, com dentes!”

O parágrafo comete alguns deslizes, talvez por excesso de simplificação, induzindo o leitor a erros e mal-entendidos.

Heranças compartilhadas

Em primeiro lugar, ao contrário do que o artigo afirma – quando diz que “em algum momento da evolução, certos indivíduos passaram a ter dentes” –, não há qualquer registro que sustente a ideia de que a nossa árvore evolutiva mais próxima tenha tido em algum momento uma linhagem de primatas desdentados (sobre a nossa posição na escala zoológica, ver, neste Observatório, o artigo “Primatas, antropoides ou hominídeos?“).

Não procede, portanto, a imagem de que teria havido “competição natural” entre grupos de humanos com e sem dentes. Melhor seria dizer que os nossos dentes, tendo surgido bem antes da própria espécie Homo sapiens, representam uma herança deixada por nossos ancestrais. De modo semelhante, a redução no número de dentições também não é uma exclusividade da espécie humana. Trata-se, a rigor, de uma característica que surgiu muito cedo na história evolutiva dos mamíferos, sendo uma herança que compartilhamos hoje não apenas com os demais primatas, mas também com a grande maioria das espécies viventes de mamíferos.

O artigo volta a induzir o leitor a erros e mal-entendidos quando afirma que “certos indivíduos passaram a ter dentes e que isso deve ter sido uma vantagem vital sobre os desdentados”, dando a entender que a presença de dentes seria por si só uma vantagem, enquanto a ausência seria inerentemente desvantajosa. Ambas as ideias estão equivocadas e não é difícil entender o motivo: a presença de dentes não confere nenhuma vantagem absoluta aos seus portadores. Se assim fosse, como nós conseguiríamos explicar a evolução de espécies desdentadas a partir de linhagens ancestrais que eram providas de dentes?

Além de reproduzir erros e mal-entendidos, penso que o autor perdeu a oportunidade de transmitir uma lição importante. A saber: a noção de que ausência de uma característica em determinada linhagem, quando comparada a uma linhagem próxima que a possui, não significa falha, deficiência ou atraso. Muitas vezes, contrariando o senso comum, ocorre justamente o contrário: a ausência é um estado derivado, resultado de um processo ativo de perda ou simplificação.

A evolução da perda

Os primeiros mamíferos já possuíam dentes, uma condição que eles herdaram de seus ancestrais reptilianos. Os mamíferos desdentados atuais, como os tamanduás, os pangolins e algumas baleias, são os representantes viventes de diferentes linhagens que passaram por processos independentes de perda. Tal fenômeno nos leva a uma questão das mais intrigantes: como explicar a evolução da perda de uma característica (os dentes, no caso), sobretudo quando a sua presença em outras espécies viventes parece conferir alguma vantagem?

Mais de um fator deve ter contribuído para a perda dos dentes em diferentes linhagens de mamíferos. Por ora, cabe observar que esse não é um fenômeno restrito: na verdade, a “evolução da perda” tem ocorrido de modo independente em inúmeras linhagens de seres vivos. Trata-se de um processo de longo alcance, comumente impulsionado por alguma “mudança de rumo” na história da linhagem envolvida. Esse redirecionamento costuma estar associado à exploração de novos hábitats ou a novos estilos de vida, acompanhando ou favorecendo mudanças no padrão de desenvolvimento dos organismos. A redução no número de dentições, por exemplo, tem sido vista como um redirecionamento na história evolutiva dos mamíferos que acompanhou de perto uma conquista anterior, o hábito de amamentar os filhotes (sobre as implicações evolutivas da amamentação, ver Pond 1977; para comentários em português, ver Pough et al. 2003).

A falta de dentes em algumas espécies de mamíferos ilustra a “evolução da perda”, mas vários outros exemplos poderiam ser citados. Entre os casos mais familiares, caberia lembrar o das linhagens de lagartos que perderam os membros (a redução apendicular é particularmente comum entre espécies que vivem em hábitats de vegetação herbácea densa, tendo evoluído de modo independente dezenas de vezes); as linhagens de peixes que perderam os olhos e/ou a pigmentação do corpo (perdas particularmente comuns entre espécies que vivem no interior de cavernas ou no fundo do mar; uma e outra tendo evoluído de modo independente dezenas de vezes); e as linhagens de insetos que perderam as asas e/ou a capacidade de voar (particularmente comum em espécies que vivem no topo de montanhas ou em ilhas diminutas, além de caracterizar ordens inteiras de insetos, como os piolhos e as pulgas, tendo evoluído de modo independente muitas vezes).

Um pouco mais de cuidado

Não acho que seja tão difícil assim abordar questões evolutivas em obras de divulgação científica, mesmo no caso de uma revista voltada para o público infanto-juvenil, como é o caso da Ciência Hoje das Crianças. É verdade que os livros disponíveis em português ainda são relativamente pouco numerosos e, em geral, não ajudam nem inspiram muito, excetuando-se talvez os livros-textos, embora estes não sejam muito consultados fora do âmbito acadêmico.

No fim das contas, talvez seja apenas o caso de os autores e os editores tomarem um pouco mais de cuidado quando o assunto em pauta tiver conotações evolutivas. Nesses casos, evitar as simplificações excessivas e as armadilhas do senso comum (por exemplo, a ideia de que a evolução biológica é um processo de melhoria constante) já faria alguma diferença.

Referências citadas

>> POND, C. M. 1977. The significance of lactation in the evolution of mammals. Evolution 31: 177-199.

>> POUGH, F. H.; JANIS, C. M. & HEISER, J. B. 2003. A vida dos vertebrados, 3ª edição. São Paulo, Atheneu.

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[Felipe A. P. L. Costa é biólogo e autor de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003) e A curva de Keeling e outros processos invisíveis que afetam a vida na Terra (2006)]