Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O vício político na cobertura

Se regressarmos no tempo poucos meses, veríamos que nosso prognóstico sobre o julgamento do mensalão foi amplamente equivocado. Especulávamos os diversos argumentos que seriam utilizados para a absolvição dos então chamados mensaleiros, porque acreditávamos na impunidade, ou, melhor dito, no caráter político-partidário do julgamento.

Como o governo do PT havia indicado a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal, claro, o veredito mais draconiano somaria então 6 a 5 pela absolvição de todos, daí ser perfeitamente escusável o erro de estratégia de muitos meios de imprensa, que não só anteviram a “pizza” final, como investiram muito mais na cobertura dos corredores dos demais prédios da Praça dos Três Poderes (onde haveria o comando da farsa a ser encenada no teatro do STF), que no diálogo com especialistas que traduzissem os herméticos fundamentos jurídicos. Estes, os fundamentos jurídicos, seriam apenas um discurso ornamental que materializaria a impunidade.

Virado o jogo, apontar esse equívoco comum serve apenas como acúmulo de experiência. E, aliás, não descarto que a efetivação do castigo daqueles já condenados na Ação Penal 470 demore tanto que venha a reacender a tal sensação de impunidade. Isso não elimina, porém, nosso erro de prognóstico: uma condenação nominal já é materialmente irreversível. Mas aqui indico, ao menos como percepção pessoal, dois ou três vigentes equívocos na cobertura do mensalão, todos derivados de um olhar politicamente viciado que há do caso.

Fora do radar

1. Primeiro ponto é observar que o ceticismo para com a tripartida organização republicana do Brasil segue injustificadamente grande. Se me é permitida a comparação, faz lembrar algumas coberturas da Assembleia Constituinte encabeçada por Ulysses Guimarães, que fomentaram mais escárnio e boatos de ingovernabilidade que propriamente o marco da solidificação da República que sobrevive até hoje. As notícias sobre o mensalão resistem ainda em abandonar a contextualização político-partidária do julgamento, desperdiçando a cobertura de um grande momento inaugural – que se espera venha a ser comum – de marco na independência dos Poderes.

Para essa incredulidade colabora o público. Os comentários em internet sobre as notícias diárias do mensalão, em que termos como “privataria tucana” ou “quadrilha de Lula” aparecem reiteradamente, dão conta dessa polarização fratricida; mas a imprensa, ainda que sensível a seus leitores, não pode incidir no mesmo erro. Daí que atentar para as provas do processo e as opiniões dos juízes, as peculiaridades legais de um julgamento originário na Suprema Corte ou as eventuais alterações na tradição do entendimento dos julgadores, seja a estratégia de momento mais acertada – conquanto adotada por poucos jornais.

2. Por sensibilidade ao leitor, ou por dele depender, alguns meios de imprensa já tendem a desvalorizar o julgamento, mesmo com seu surpreendente resultado condenatório. O tema se estende por meses e o diálogo jurídico cansa; os ministros não são exatamente galãs de TV e sua figura também enjoa, principalmente quando não agregam novidade ao conflito, que passa naturalmente por um anticlímax. Daí alguns meios estilizam uma pauta que beira ao escárnio – ressalva feita aos humoristas declarados, cuja liberdade de tentar fazer rir deve ser preservada – de algo que no fundo, embora maçante, não é engraçado.

Meios de imprensa, ouso dizer, no futuro se arrependerão de já tratar, expressamente, o tema como a “interminável novela do mensalão”, da mesma forma que, de volta à analogia, aos tempos da Assembleia Constituinte desprezavam veladamente os debates de deputados como um cansativo e bizantino diálogo de democracia.

3. Também por conta desse lento ritmo narrativo que o caso assumiu, a supervalorização de um conflito entre ministros, especialmente relator e revisor, a mim parece um caminho equivocado. A fratura fica clara em alguns momentos, mas, em um espectro mais aberto, não sei até que ponto ela é tão pessoalmente intensa. Talvez falte à imprensa realçar que o protagonismo da figura do revisor, que em julgamentos comuns realmente é muito menor, aqui serve como contraponto necessário a um julgamento que tem caráter de definitivo, ou seja, de que não cabe recurso amplamente revisional, porque o STF é ali, constitucionalmente, única instância.

A compreensão divergente do revisor, ao fim das contas, acaba forçando toda a Corte a ir mais a fundo na análise das provas e nos debates dos elementos teóricos que estão por detrás de cada decisão – e isso é, no Judiciário, sempre saudável. Ademais, a opinião pública poderá frustrar-se em investir na heroicização do relator, a qual certamente tem sua função narrativa, quando este resolver seguir na coerência de sua vida de magistrado, sem adentrar à política. Em outras palavras, merece maior cobertura o momento histórico que marca o judiciário como um todo institucional, e não o individualismo de seus componentes.

Apenas como exemplo, o presidente da Corte, que há algum tempo alguns diziam que tinha sido motorista de Lula em campanha eleitoral, escapa dos olhos da imprensa como alguém que consegue conduzir serenamente um procedimento para lá de delicado. Assim, se existe um elemento personalíssimo a conduzir a imprensa, ele deveria se ramificar também a outros atores.

Poder das provas

Creio que a cobertura do julgamento mereceria esclarecimentos laterais, mais proveitosos que a insistência no trabalho com personagens se desgastam, porque deles se tenta extrair mais do que o exercício de sua função. Talvez valesse realçar o fortalecimento da independência institucional, ou os equívocos teóricos que passam despercebidos da opinião pública, denotando que o STF abarca mais tarefas e competências do que aquelas que deveriam ocupar uma corte constitucional. Ou então o alerta ao público de que a figura do Supremo não pode ser tida como o Judiciário por antonomásia, porque este não costuma analisar por meses as provas de um processo de réus comuns, nem debater tão amplamente as liberdades daqueles que vão ao cárcere muito antes de qualquer advogado dizer algo em sua defesa.

O Judiciário, e aqui em especial o Supremo, não está isento das influências de bastidores, ou até mesmo da venalidade, que pode ocorrer em qualquer um dos poderes, mas neste momento pode-se dar algum crédito ao caráter técnico e, logo, politicamente isento da apreciação do mensalão – e isso exige uma mudança de foco de boa parte da imprensa.

Os jornalistas poderão, no futuro, provar-me que o caso fora decidido em um tabuleiro mais amplo que aquele que vejo, mas hoje arrisco dizer que são as provas processuais dessa Ação Penal que delineiam o resultado do julgamento.

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[Víctor Gabriel Rodríguez é professor doutor de Direito Penal da Universidade de São Paulo (FDRP), membro da União Brasileira de Escritores]