Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O real perdedor: a verdade

O diretor Steven Spielberg, cuja cinebiografia “Lincoln” estreia sexta-feira [9/11], disse recentemente que esperava que o filme tivesse efeito calmante e curativo sobre uma nação exausta após nova eleição amarga e polarizada.

Mas há uma afirmação atribuída a Lincoln que Daniel Day-Lewis, que encarna o presidente, não profere no filme: “Pode-se enganar a todos por algum tempo; às vezes, pode-se enganar quase todos o tempo inteiro, mas não se pode enganar a todos o tempo todo”.

A omissão faz sentido. Não somente porque a afirmação, provavelmente, é apócrifa, mas também porque esta eleição pode nos mostrar que é possível enganar a todos – ou grande parte do todo – durante a corrida à Casa Branca.

Ataques pessoais venenosos e acusações de adultério, miscigenação ou coisas do tipo são tão antigos quanto a República. Mas, enquanto a linha entre realidade e ficção na política permanece tênue, uma confluência de fatores tem deformado o discurso cívico, se podemos assim chamá-lo, até o ponto de ruptura.

Direito de resposta

O boom econômico e a expansão da classe média do pós-guerra estimulou respeito por funcionários públicos, jornalistas e acadêmicos. É verdade que repórteres e políticos tinham relação mais amena, mas o período de noticiário mais lento oferecia tempo para a verificação e as análises.

Candidatos acreditavam que, sendo flagrados mentindo de forma desavergonhada, poderiam denegrir suas carreiras (como Daniel Patrick Moynihan disse, “todos têm direito às suas próprias opiniões, não aos próprios fatos”). Eles tendem a manipular a verdade, não destruí-la.

Em 1948, o presidente Harry Truman acusou financistas republicanos de “sanguessugas” e “glutões de privilégios”, baseado em fatos de registros do Congresso. Ele rejeitou a reputação de “tratar a ferro e fogo os adversários”, limitando-se a dizer mais tarde: “Costumava falar a verdade sobre os republicanos, e eles falavam isso de mim”.

Os ataques concebidos por Lee Atwater para o vice-presidente George Bush na campanha de 1988, uma das mais sujas da História, foram baseados em algo real. O oponente de Bush, Michael Dukakis, poderia não merecer a culpa pelo programa permissivo que levou Willie Horton a cometer crimes, mas no mínimo o programa e o prisioneiro eram reais. Atwater explorou estes eventos, mas não os inventou.

Pelo menos quatro fatores desde os anos 1970 baratearam os custos para os políticos que mentem. Primeiramente, a total falta de respeito a instituições e profissionais, de cientistas e advogados a jornalistas e funcionários públicos.

Segundo, as mudanças na regulação da mídia e propriedade. Em 1985, a organização conservadora Justiça na Mídia, apoiada pelo senador Jesse Helms, tentou organizar a aquisição da CBS e “tornar-se chefe de Dan Rather”. A ideia não deu certo, mas dois anos depois os conservadores conseguiram um triunfo maior. Por décadas, rádios e emissoras de televisão foram obrigadas a conceder direitos de resposta sobre questões que causavam litígio em debates apresentados nas ondas públicas.

Pesquisas manipuladas

Uma terceira tendência surgiu à medida que os políticos perceberam que havia margem para manipular a verdade. Mas até mesmo George W. Bush acreditava em limites para a flexibilização da verdade. Após a veiculação dos anúncios que atacavam o serviço militar de John Kerry, em 2004, Bush tardiamente os rotulou de “ruim para o sistema”.

Um quarto fator: algumas organizações de notícias abandonaram o papel de juízes políticos. Muitas recorreram a um estilo obsoleto que mais parecia estenografia do que jornalismo, apresentando todo e qualquer argumento como válido. Checagem de fatos, premissa do jornalismo, tornara-se exclusividade de poucos veículos.

O site PolitiFact relatou 19 afirmações errôneas de Romney e sete de Obama desde 2007, mas as grandes inverdades ditas por Romney foram bem piores, como a “aquisição governamental da assistência médica”, ou a transferência de postos de emprego da Chrysler de Ohio para a China. Disse Neil Newhouse, membro da equipe do candidato: “Não deixaremos que nossa campanha seja ditada pelos verificadores de fatos”.

Os eleitores, seguramente, podem reagir às cínicas manipulações nas pesquisas. Mas, vencedora ou perdedora, a campanha de Romney apostou como nunca na proposição de que os fatos podem ser ignorados, em maior ou menor escala, pela impunidade.

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[Kevin M. Kruse, professor de História em Princeton, é o coeditor de Névoa de guerra: a Segunda Guerra Mundial e o Movimento dos Direitos Civis]