Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

No altar de Moloch

E o mundo, afinal, não acabou no dia 21. Para aquelas 20 crianças e aqueles 6 adultos da escola primária Sandy Hook, na bucólica e pachorrenta cidade de Newtown, em Connecticut, o mundo acabou de verdade uma semana antes. Não procurem pistas no calendário maia; atenham-se ao histórico de violência da sociedade americana – e suas aterradoras estatísticas.

Onze das 20 piores chacinas dos últimos 50 anos ocorreram nos Estados Unidos. Pelo menos 26 assassinatos em massa chocaram a América nos últimos 30 anos. Só este ano foram oito. Que outra potência mundial já teve quatro presidentes liquidados à bala em atentados políticos? Também pertence aos Estados Unidos o recorde mundial de posse de armas (quase uma para cada habitante), média 15 vezes superior a de outros países desenvolvidos. Isso explica porque o índice de mortes por armas de fogo, na terra do Obama, é 3 vezes o da França e do Canadá, 14 vezes superior ao da Irlanda e 250 vezes superior ao do Japão, onde, aliás, o uso de armas de fogo é duramente controlado. E ajuda a entender por que um quarto da população carcerária mundial vê o sol nascer quadrado na América, cujo índice per capita de presos bate sete vezes o da Alemanha e três vezes o de Cuba.

A cada matança, o ritual de sempre: muito choro, muita vela, memoriais, as habituais platitudes, com renovadas promessas de maior controle sobre a venda e circulação de armas de fogo e melhor assistência aos psicopatas em potencial. A única novidade do morticínio praticado por Adam Lanza foi o elenco das vítimas: a própria mãe do assassino e duas dezenas de crianças entre 5 e 7 anos de idade. A tão exaltada lágrima vertida por Obama, não obstante sincera, só deixou de parecer protocolar depois que o presidente parou de “falar mais como pai do que como presidente”, voltando a falar como se espera que ele fale sempre, como presidente. Que foi o que ele fez cinco dias depois do massacre de Sandy Hook.

“É hora de passar da palavra à ação”, anunciou Obama, na quarta-feira. Na frase seguinte, entrou no cerne da questão: “Precisamos olhar mais de perto uma cultura que glorifica armas e violência”. Não entrou em detalhes e talvez nem precisasse fazê-lo. É mais do que sabido que toda criança americana terá assistido a 8 mil assassinatos e mais de 100 mil outros atos de violência ao terminar o curso que os meninos e meninas de Sandy Hook não conseguiram concluir. No cinema, na TV e em videogames.

Sem contar o noticiário, há décadas farto de informes sobre as guerras e intervenções militares em que os americanos vivem se metendo – e, ultimamente, até sobre casos de torturas comprovadamente cometidos na base de Guantánamo. Desde o fim da 2ª Guerra Mundial, os Estados Unidos já se engajaram em mais de 500 operações armadas no exterior, da Coreia ao Quênia, com um saldo de 9 milhões de mortos, noves fora os americanos. Na última contagem, havia mais de 400 mil soldados lotados em quase mil bases militares dos Estados Unidos no exterior.

É possível, mas não muito provável, que o impacto causado pela tragédia de Newtown mude o rumo das discussões sobre controle de armas suscitadas pelas sangreiras anteriores. Essa é a questão número um, sobretudo para quem se predispõe a passar da palavra à ação.

Questão de justiça

Durante a campanha eleitoral, Obama e seu adversário fugiram do assunto. Arguido por uma eleitora presente ao último debate, Obama admitiu “acreditar” na Segunda Emenda, a Segunda Emenda da Constituição, que assegura o direito de todo americano a ter em casa uma arma de fogo. “Temos uma longa tradição de caça e atividades esportivas e as pessoas querem ter certeza de que podem proteger a si próprias”, acrescentou. Nem dublado o candidato democrata soaria tão fiel à cartilha ideológica da NRA (National Rifle Association) e à sofismática retórica dos republicanos, cuja maioria, em torno de 70%, é a favor do laissez-faire armamentista.

Há provas insofismáveis de que mais armas de fogo significam mais derramento de sangue. Em todos os países que adotaram algum tipo de restrição ao seu uso, a incidência de crimes, atentados e assassinatos em massa diminuiu exponencialmente. Psicopatas há por toda parte. Na mesma sexta em que Adam Lanza dizimou 26 vizinhos em Newtown, um jovem chinês de 34 anos invadiu uma escola primária, nos arredores de Pequim e feriu 22 crianças. A facadas. Se tivesse uma arma de fogo, proibida na China, provavelmente nenhuma delas teria escapado com vida.

“Armas não matam pessoas; pessoas matam pessoas”, proclamam os paladinos do arsenal doméstico, outrora liderados pelo ator Charlton Heston. Há uma lógica perversa por trás desse chavão. As divisões Panzer de Hitler tampouco matavam quando estacionadas nos quarteis da Wehrmacht.

Um graduado riflerista, Larry Pratt, diretor executivo da Gun Owners of America, soltou há dias esta pérola: “Os que defendem o controle de armas têm sangue de crianças em suas mãos”. Sou mais o notório humanista Adam Gopnik, da revista The New Yorker: “Os quem lutam, fazem lobby e legislam pela propriedade privada de armas de fogo são cúmplices do massacre das crianças. Fizeram uma escolha moral clara: o conforto e o consolo emocional oferecidos pela posse de uma arma têm, para eles, valor supremo, valem mais que a morte rotineira de pessoas inocentes”.

A melhor das recentes reflexões sobre a transformação da arma em objeto de reverência foi feita por Garry Wills, em seu blog na New York Review of Books. “A arma de fogo é o Moloch da América”, argumentou o ensaísta. Moloch, está no Levítico, era uma diabólica divindade amonita que exigia o sacrifício de crianças. Segundo Wills, por devoção ao novo Moloch os americanos sacrificam crianças todos os dias, privando-as de um pai, uma mãe, um professor, um protetor. No final de seu post sugeriu que, por uma questão de justiça, se erigisse uma estátua de Charlton Heston em cada local onde tivesse ocorrido uma chacina igual a de Newtown. Não necessariamente empunhando as Tábuas da Lei de Moloch.

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[Sérgio Augusto é jornalista]