Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Casos controversos

Se todas as orações fossem do tipo ‘O boi baba’, não seriam necessárias teorias gramaticais sofisticadas. Na verdade, mesmo em casos assim, necessita-se de mais do que dizem as gramáticas. Por exemplo, é preciso explicitar os diversos valores de “O boi”, que pode ser interpretado como sendo sobre bois em geral ou sobre um boi particular.

Mas quero mostrar que há orações que oferecem dificuldades específicas. Teorias que dispõem de explicações adequadas para casos mais complexos são melhores. É o que tentarei mostrar.

Primeiro, uma espécie de axioma metodológico: a análise de um fato (linguístico, no caso) deve situá-lo em relação a outros. Não é boa opção analisar casos isolados. Por exemplo, uma análise da oração ativa deve ser acompanhada da análise da correspondente passiva, quando houver, ou de uma clivada (que enfatiza um elemento, como em ‘O pato nada na lagoa’ / ‘É o pato que nada…’ / ‘É na lagoa que o pato…’).

Um bom problema é oferecido por orações como ‘mandei que ele saísse’; ‘mandei ele sair’; ‘mandei-o sair’.

O primeiro passo é certificar-se de que são sinônimas. Creio que não há problema em aceitar essa avaliação. A diferença entre as três é de estilo, não de sentido (“mandei-o sair” é a mais formal; “mandei ele sair” é mais informal).

Uma boa hipótese para explicar a sinonímia é que todas derivam da mesma estrutura ‘abstrata’, que pode ser representada por EU MANDAR ELE SAIR (maiúsculas são uma convenção para representar as estruturas ‘antes’ de sua atualização).

Creio não haver discordância, também, em relação a sua organização interna. Escolho como ‘básica’ a que dá conta do sentido, que não muda de uma estrutura para outra. Valho-me de colchetes, seguindo uma convenção. Assim, proponho que essas três orações derivem de [EU MANDARpas [ELE SAIR]] (em que ‘pas’ significa passado, e marca o verbo).

Valendo-me da terminologia gramatical, levada a sério (ver a coluna ‘Análises’), analiso assim essa estrutura: há uma oração principal, que é toda a sequência, e há uma subordinada, [ele sair], que funciona como objeto direto do verbo ‘mandar’.

Quando um falante escolhe uma das três orações (vou eliminar o pronome ‘eu’, operação que comento em separado), aplica as seguintes regras:

>>mandei que ele saísse: a) concorda ‘mandar’ com ‘eu’ (no passado); b) introduz ‘que’ antes da subordinada; c) concorda ‘sair’ com ‘ele’ (prova: se o pronome fosse ‘eles’, a forma verbal seria ‘saírem’);

>> mandei ele sair: a) concorda ‘mandar’ com ‘eu’ (no passado); b) concorda ‘sair’ com ‘ele’ (a prova é que, se o pronome fosse ‘eles’, a forma verbal seria ‘saírem’);

>>mandei-o sair: a) concorda ‘mandar’ com ‘eu’ (no passado); b) posiciona ‘ele’ como objeto de ‘mandar’, tirando-o da posição de sujeito de ‘sair’; c) converte ‘ele’ em ‘o’.

A estrutura que precisa de explicação ‘extra’ é a terceira. O problema é que ‘ele’ é sujeito do verbo da subordinada (como fica claro na primeira e na segunda das três orações; a concordância verbal é a prova), mas, na terceira, aparece na forma exclusiva de objeto direto (‘o’).

É uma regra sem exceção do português que pronomes oblíquos não funcionam como sujeitos (tanto que todos aprendemos a rir dos que dizem ‘livro para mim ler’). É para casos assim que as teorias devem oferecer soluções gerais e que deem conta dos fatos.

Regra de alçamento

Há duas maneiras de fugir da exigência de uma boa teoria: a) dizer que se trata de um erro, de um não dado (é o que se tem feito com o caso ‘para mim ler’); b) aceitar uma regra ad hoc, propondo que esse é um caso em que o pronome oblíquo pode ser sujeito (é o que faz Bechara em Lições de português pela análise sintática. Rio: Grifo, 10ª ed., p. 172).

Dizer que se trata de um erro só é possível não levando em conta os fatos (equivaleria à atitude de um botânico que considerasse a jaca um erro, ou de um zoólogo que fizesse de conta que o ornitorrinco não existe).

Aceitar uma regra ad hoc é uma saída quase vergonhosa para um cientista. É melhor dizer que não se conhece uma solução. Melhor ainda: que a teoria adotada não explica certos casos (fato comum na história das ciências).

As gramáticas gerativas ofereceram solução para casos assim. Propuseram que existe uma regra de alçamento (o termo tem mais sentido se pensarmos numa árvore no lugar dos colchetes). O alçamento consiste em fazer com que um elemento que está à direita do colchete passe para o lado esquerdo, o que representa a hipótese de que ele é ‘processado’ como se estivesse à esquerda, no escopo direto do outro elemento.

No caso, é propor que a estrutura [mandei [ele sair]] se converta em [mandei ele [sair]] – ‘ele’ mudou de lado. O que favorece esse ‘salto’ é que ‘ele’ pode ser objeto de ‘mandar’. Manter ‘ele’ depois da barreira gera as orações 1) e 2); colocar ‘ele’ antes da barreira gera 3).

A mudança estrutural é análoga à diferença entre (2 x (3 +4)) e ((2 x 3) + 4).

Quem adota a solução deve mostrar também que não se trata de uma regra ad hoc. Pode fazer isso de duas maneiras: a) mostrando que há outros casos na língua que se resolvem pela mesma regra (‘…livro para mim ler’ é um caso; muda-se […livro para [eu ler]] para [livro para eu [ler]], posicionando ‘eu’ no escopo de ‘para’, que rege ‘mim’); b) mostrando que o fato não ocorre só em português.

Pode-se analisar dessa forma os conhecidos acusativos com infinito, em latim, como Scio Petrum flere, Credo te esse bonum, o que melhora as gramáticas do latim, e do inglês, como I never knew him use offensive language, em que him, forma de he com função de objeto direto, ou seja, o ‘acusativo’ de he, é seguido de verbo no infinitivo, e He forbids me to come (me está para I como him para he).

Quatro notas finais

1. Apresentei as orações sem o sujeito de ‘mandar’ (eu) porque esta é uma alternativa em português (‘eu mandei / mandei’ são gramaticais);

2. Isso evita que a terceira oração seja ‘eu o mandei sair’, já que uma regra da norma ‘ideal’ do português diz que clíticos ficam em posição adjacente a pronomes (e outros elementos, como negações). Para explicar ‘Eu o mandei sair’, aplica-se a regra que manda deslocar o ‘o’ da posição posterior para a anterior a ‘mandei’ – atraído por ‘eu’;

3. Pode-se fazer um teste extra, substituindo ‘ele’ por eles, o que resulta em ‘mandei-os sair’, forma abonada pelas gramáticas, que condena ‘mandei-os saírem’. O dado confirma a análise, pois nesse caso não há concordância do verbo da subordinada;

4. Uma forma de resumir o caso 3) é dizer que ‘ele / o’ é agente de sair (questão semântica), mas também é objeto de ‘mandar’ (questão sintática).

Uma hipótese pedagógica seria levar questões desse tipo para a sala de aula e desenvolver a intuição dos alunos, bem como um espírito científico que exigisse coerência, generalidade e respeito aos fatos.

***

[Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística, Universidade Estadual de Campinas]