Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Manual de indignação popular

Declaro oficialmente aberta a temporada de especulações sobre a tragédia da casa noturna promovida pela mídia e reproduzida à exaustão nas rodas de conversa. Para participar desse movimento, observe os seguintes parâmetros ao comentar sobre o ocorrido com os amigos:

1 – A indignação

Mostre sua indignação dizendo que isso é coisa que só acontece no Brasil. Essa tática de recorrer à “vergonha de ser brasileiro” é infalível e atrai a atenção de todos instantaneamente. Afinal, somos um país de estúpidos, ignorantes, corruptos, inconsequentes e tudo de pior acontece aqui. Quanto pior, melhor.

2 – O culpado

Aponte desde já o culpado, mesmo que ele mude ao longo da semana. Jogue toda culpa em alguém ou em alguma instituição. Dica: culpar o “governo”, assim mesmo, de forma genérica, é uma tática de grande aceitação. Governo aqui pode se entendido como a polícia, a prefeitura, os bombeiros, o cara que deu o alvará de funcionamento para o local ou a guia do IPTU que deu início ao incêndio. Se você conseguir envolver as palavras “petista”, “Dilma”, ou a sigla “PT” na sua fala, certamente haverá muito mais gente ao seu redor batendo palmas.

3 – A descrição dos fatos

Descreva com certeza, segurança, clareza e convicção tudo que aconteceu dentro da boate, com riqueza de detalhes. Afinal a TV já contou exaustivamente como tudo se deu. Tanto que você até já apontou o culpado, não é mesmo?

4 – As soluções

Aponte soluções fáceis e mirabolantes para expor como tudo aqui no Brasil é uma merda. Diga com convicção algo como: “Tinha que ter uma lei que obrigasse as casas noturnas a instalar uma roleta conectada à internet de tal forma que, quando a lotação excedesse o que é permitido, uma câmera seria ligada e começaria a gravar enquanto a delegacia mais próxima seria informada sobre o excesso de pessoas no estabelecimento e então a polícia seria obrigada a ir lá e ver o que está acontecendo. Um detector de fumaça que avisasse os bombeiros também seria ótimo!” Dica: ao longo da semana vá propondo novas soluções fáceis e simples do mesmo estilo: “Não sei como ninguém pensou nisso antes.” Ouvir alguns comentários de “entendidos” por aí vai te ajudar muito.

5 – As novidades

Assim que surgir um fato novo, divulgue-o. Uma nota dos proprietários da casa noturna, uma fala dos advogados envolvidos, uma entrevista de um chefe de qualquer coisa, a declaração de uma outra figura distinta qualquer. Parecer antenado e atualizado te dá credibilidade. Em poucas horas as pessoas verão que você tem o domínio do assunto e recorrerão a você para entender o que houve. Sensação boa de ser a Rede Globo, não tem preço.

6 – Que famílias?

A dor das famílias deve ser citada apenas como pano de fundo da sua investigação pessoal. Afinal, xingar, reclamar, apontar soluções e gritar por justiça é o que importa nesse momento. Deixe claro que o mais importante é apurar os fatos e, no final da semana, durante o Fantástico, ter um rosto, uma imagem, um culpado final. Enfim, alguém para apontar o dedo e dizer quem deve ser execrado em público por ter causado tamanha tragédia. Diga, no seu íntimo: “Obrigado, Fantástico, por resolver mais esse grande problema e colocar uma pedra no assunto”.

Depois disso, siga sua vida aliviado e feliz até que nova tragédia aconteça para você repetir o script.

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[Bruno Vilela Jardim de Castro é publicitário, Belo Horizonte, MG]