Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A renúncia e as ruínas

O ato renunciante de Bento XVI exibe, para a legião de católicos em todo o mundo, grito de alerta e um espasmo de esmorecimento. É como se alguém dissesse: “Não suporto mais!” A retidão ética e a resistência ortodoxa, traços marcantes na história de sua personalidade, impedem de levar adiante o mandato vitalício. Bento XVI, ao anunciar, em caráter irrevogável, a renúncia, sutilmente, no melhor estilo germânico, recatado, produz a abertura necessária ao questionamento do que, realmente, ocorre nos subterrâneos das muralhas do Vaticano, extensivo às arquidioceses espalhadas pelo mundo.

A mídia brasileira, ciente de ter diante de si, por estatística, a maior população de católicos no mundo, sem levar em conta de que os reais praticantes são bem menos, adota uma postura oscilante: uma pauta mista entre a sugestão de denúncia do renunciante e informações quanto ao possível sucessor. Nossa mídia adora uma média! Para ela, o que importa é não perder leitores nem audiência. A verdade fica em segundo plano.

O manto da hipocrisia

É insólito o fato histórico de, no centro pulsante do coração de Roma, haver um Estado independente: República de San Marino. Ocorrência similar não se verifica no judaísmo, no islamismo, menos ainda, na vertente cristã do protestantismo. Não abordaremos, aqui, as razões históricas (ou histéricas) que firmaram o fato. Basta o registro dele. Ao instalar-se o Estado autônomo, foi aberto o portal para práticas delituosas, seja no plano moral, seja no âmbito econômico-financeiro, a exemplo do escândalo que, há décadas, envolveu o Banco Ambrosiano.

É claro que matérias jornalísticas, publicadas em diversas partes do mundo, trazem conteúdos cuja origem só pode provir de fontes internas do Vaticano. Sexo e corrupção vêm à tona. De quem jornalistas extraem tais informações? Não será Bento XVI a declará-las. Não, ele não quer mais desgastes. Para tanto, usou a frase: “Não tenho mais força!” A que força Bento XVI se referiu? Física ou política? As crescentes denúncias de corrupção e de desvios sexuais, dentro e fora das fronteiras do Vaticano, deixam claro que a razão é política. O papa não está vendendo barato sua renúncia. Deixa, para o sucessor, pesado fardo. O enfrentamento ou a cumplicidade silenciosa. Enfim, a renúncia de Bento XVI envia uma mensagem, sem negociações: ou a igreja católica assume uma estratégia de varredura, eliminando todas as vergonhas de ordem sexual e econômico-financeiras, ou terá de se expor a sucessivos desgastes de sua credibilidade.

Qual foi o impasse subjetivo de Bento XVI para, com sua ortodoxia, não mais levar adiante sua função vitalícia? A rigidez germânica de suas convicções ortodoxas. Com a renúncia, ele diz ao sucessor: “Por favor, promova as transformações necessárias!” Quais? A principal delas, no mundo de hoje, é a de liberaro clero para constituir família, a exemplo do que Martin Lutero, há séculos, entendeu ser a solução.

Estatísticas são reveladoras: quantos casos de desvios sexuais ocorreram na vertente cristã protestante, em confronto com as denúncias de perversão sexual nas hostes católicas? A diferença é assombrosa. A razão que instituiu o celibato, na Idade Média, foi de ordem econômica. Foi o modo encontrado pelo Vaticano para manter controle rígido e receita garantida sobre cada paróquia no mundo. Somente os mais crédulos ainda creem que não houve união carnal entre Jesus e Madalena. Não há, portanto, nenhum fundamento religioso, capaz de condenar uma relação amorosa.

A hipocrisia mórbida (contra si) e perversa (contra o outro) que, ainda, rege o imaginário falido do Vaticano precisa, urgentemente, ser aniquilada. Que o sucessor tenha a coragem e força para libertar o corpo de futuras gerações de cônegos, padres, bispos, cardeais e papas de uma “prisão” que violenta as leis da natureza. Se o Vaticano não libertar corpos, perderá mentes. Remover o manto da hipocrisia é a palavra de ordem. Se, assim, não for, haverá de multiplicarem-se as ruínas, até as muralhas se desmancharem de vergonha.

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[Ivo Lucchesi é ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA (RJ)]