Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Quem precisa do Itamaraty?

Em texto recente, veiculado na última edição da revista Política Externa, o brasilianista Sean Burges – professor da Australian National University – pergunta de forma provocativa, sem fazer rodeios: o Itamaraty tornou-se um problema para a política externa brasileira? Dependendo do que se pretenda para o país, talvez sim, ele afirma.

A argumentação apoia-se na ideia de que, em tempos de crise econômica e emergência de novos temas e atores políticos, o conservadorismo do Itamaraty – com o seu culto a tradições e hierarquias profissionais – privaria o Brasil de explorar boas oportunidades (sobretudo comerciais) da globalização dos mercados e poria em risco a própria relevância futura do país. Segundo o pesquisador, há carência de especialistas em temas técnicos e de uma liderança com mais sensibilidade política entre os nossos diplomatas. A recuperação da criatividade necessária à formulação da política exterior na atualidade passaria, dentre outras medidas, pela abertura do Itamaraty a outras fontes de inovação, bem como pelo resgate do “dinamismo” do barão do Rio Branco.

O artigo de Burges ganhou inesperado respaldo com a publicação, em 16 de fevereiro, de matéria intitulada “Brasil fecha só três acordos de comércio em 20 anos” em O Estado de S.Paulo. Fundamentalmente, alegava-se no texto que as escolhas da política externa econômica do Brasil tinham acarretado estagnação nos negócios, ao passo que nossos vizinhos latino-americanos avançavam vigorosamente na direção de entendimentos comerciais bilaterais, principalmente com os Estados Unidos e países asiáticos.

Liberar geral?

Como entusiasta da abertura democrática e da eficiência na administração pública federal, reconheço um arsenal de críticas possíveis ao serviço exterior brasileiro, mas jamais derivaria daí que o caminho a seguir é a “desitamaratização” da política externa.

Isso significaria renunciar a um tipo de know-how em que o Brasil tem vantagens comparativas e competitivas. Afinal, desenvolvemos um sofisticado aparato institucional para a carreira diplomática, além de uma academia – o Instituto Rio Branco – para treinamento e qualificação de pessoal. Nas fileiras do Itamaraty encontram-se intelectuais e estrategistas de primeira linha. Sintomaticamente, mais de uma dezena de secretários-gerais e juízes de grandes instituições internacionais foram cedidos pelo corpo diplomático brasileiro no decorrer da história.

Não se desinstitucionaliza o aparelho de Estado impunemente. É abrir a caixa de Pandora e invocar os males da gestão pública – de usurpação funcional e insegurança jurídica a amadorismo e malversação de recursos. Parece-me infeliz a proposta de privatizar o interesse público, tornando o Estado (e o corpo diplomático, em particular) refém dos grupos de interesse e pressão. Trata-se, em suma, de pensar o Brasil à maneira dos liberais anglo-saxões e incorporar uma visão de democracia como “mercado político autorregulável”.

O elogio feito à criatividade na gestão da política externa também soa curioso, pois não fica evidenciada a sua serventia para a inserção do país no mundo. Dá para inverter a lógica e mostrar (com palavras e números) que foi justamente a insistência secular em certos princípios – soberania territorial, igualdade entre as nações, pacifismo etc. – que, a despeito das limitações brasileiras, nos tem assegurado um lugar na primeira divisão global. Desde os tempos do barão até hoje.

Comércio e política

No que toca ao comércio internacional, a postulação de que o Itamaraty deve ser esvaziado de funções não vem de hoje. Na última eleição presidencial brasileira, aventou-se a criação de um ministério voltado exclusivamente para o comércio exterior, com missão de alavancar a participação do país em importações e exportações, de mercadorias e serviços. A suposta vantagem de tal medida estaria na “despolitização” do tema. Chega a ser irônico, já que, mesmo com a inexpressiva contribuição do Brasil para os fluxos comerciais globais, temos um histórico de força negocial e representatividade política na Organização Mundial do Comércio (vide a atuação do país junto ao G20 durante a crise financeira corrente). A candidatura do embaixador Roberto Azevedo à direção do órgão dá conta desse fenômeno. A despolitização da discussão comercial pode ser um tiro no próprio pé.

É preciso ter em mente que o Ministério das Relações Exteriores é uma agência governamental constitucionalmente limitada em suas ações, pois está subordinada à Presidência da República – cuja incumbente, a chefe de Estado Dilma Rousseff, recebeu mandato popular para conduzir os assuntos internacionais do Brasil. O Itamaraty não é a guilda dos comerciantes nem um bureau empresarial. Sempre foi publicamente orientado e é bom que continue sendo, pelo bem da nossa política externa.

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[Dawisson Belém Lopes é professor de Política Internacional e Comparada da UFMG e autor de Política Externa e Democracia no Brasil: Ensaio de Interpretação Histórica (ed. Unesp, 2013)]