Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A decisão da Jolie

Os seios da mulher que talvez melhor representa a perfeição física humana, Angelina Jolie, mudaram o seu valor simbólico na semana passada. Já não são enxergados apenas como um ideal, mais como uma carga insuportável.

A mulher do ator Brad Pitt anunciou publicamente ter submetido seu maravilhoso corpo a uma mastectomia bilateral. A cirurgia foi realizada de forma preventiva, por ela carregar um gene que aumenta o risco de câncer. Isso é contado na primeira pessoa no texto publicado por ela no jornal americano The New York Times, intitulado “My medical choice“ (Minha decisão médica), reproduzido no mundo todo. Na base da dolorosa decisão ela reconhece um tripé: o amor pela mãe (morta de câncer), pelos filhos (que declararam medo de perder a mãe) e um teste de DNA, que possibilita conhecer as chances de desenvolver a doença no futuro.

Baseada em dados estatísticos, a atriz decidiu tirar os órgãos em risco, primeiro os seios, daqui a pouco – anunciou – os ovários. E fez público os detalhes cirúrgicos da mutilação.

“Escrevo porque espero que outras mulheres possam se beneficiar de minha experiência. (…) Hoje é possível descobrir, com um teste no sangue, se você é altamente suscetível a câncer de seio e ovário, e tomar ações. (…) A decisão de fazer a mastectomia não foi fácil. Mas estou muito feliz. (…) Posso dizer aos meus filhos que não precisam ter medo de me perder por causa do câncer no seio.”

O objetivo dela agora é, segundo informa no texto, encorajar aos outros a tomar próprias decisões informadas.

Mais autonomia

O fato e as repercussões percorreram de forma rápida o mundo informativo. Mas uma mídia madura não pode se limitar a repetir as palavras do marido de que a Angelina Jolie é uma heroína, ou lembrar que ela decidiu com a liberdade única que é ter o dinheiro para pagar o teste genético e os cirurgiões. Este Observatório também não é o lugar para se discutir se, naquele caso específico da celebridade, a decisão estava certa. Mas precisamos, sim, parar para pensar qual será o papel da mídia nos novos tempos de medicina preditiva.

Testes de DNA podem indicar duas mil doenças, informou no dia seguinte à confissão da Jolie a jornalista Adriana Ferraz, na paginas do Estado de S.Paulo (ver aqui). Uma forma inteligente de dizer: Angelina não está sozinha com os seus medos.

A medicina, como ciência, apresentou nos últimos anos uma acumulação de conhecimentos que permite hoje enxergar os problemas de saúde décadas antes que realmente aconteçam. E ao mesmo tempo oferece estatísticas perigosas – refiro-me ao fato de que essas porcentagens são números gerais que expressam probabilidades, mas é impossível prever, em cada caso em particular (o de Angelina incluso), se vai dar sorte ou azar. Uma das consequências desse conhecimento – antecipado em alguns casos, potencial em outros – é que mais pessoas estão se sentindo doentes sem sê-lo. E isso apenas está começando.

No futuro, os habitantes dos países desenvolvidos e os bolsões de riqueza dos países em desenvolvimento estarão mais sadios, mas ao mesmo tempo demandarão mais assistência médica. A enfermidade é um conceito móvel. Historicamente, os males eram definidos pelos sintomas, mas a genética abriu a possibilidade de definir quase toda a humanidade como enferma. Ao mesmo tempo, como mostra a história Angelina, o paciente também adquiriu mais autonomia, entrou na fase de paciente-consumidor que toma as próprias decisões (idealmente) com base na informação.

Tapete vermelho

Angelina Jolie não está doente, mas ela se informou qual era a sua porcentagem de risco de, no futuro, desenvolver câncer de seio e ovário e, com base nisso, decidiu. Como é fácil descobrir no seu relato, os dados estatísticos não foram recebidos apenas intelectualmente, mas sim em uma matriz mais profunda de desejos, medos e valores. E um sinal para os jornalistas: nossa missão de provedores de informação médica acontece na terra fértil da ansiedade.

A mídia vai acompanhar os próximos passos dessa medicina preditiva, e deve lembrar que a medicina preditiva não é um assunto como qualquer outro. A demanda exagerada por intervenções médicas – no caso da predisposição aumentada ao câncer de mama, os oncologistas concordam que a mastectomia não reduz as chances de morrer, apenas de adoecer – está tingindo o mercado hospitalar. Os jornalistas têm que ficar atentos para não cair, eles também, na armadilha.

No futuro, será um período de paradoxos na saúde pública, com aumento de doenças evitáveis, e, ao mesmo tempo, a medicina como produto de consumo e a saúde perfeita como religião. A informação de saúde de qualidade, destinada ao público leigo, é uma estratégia possível para amenizar essa deformação de valores. Haverá cada vez mais situações em que os comunicadores deveremos fazer frente à correnteza; e será necessário dizer que perseguir a utopia de “tomar controle da vida” – como escreveu Angelina – é tão inútil como cara – e perigosa. E preciso mostrar também o outro lado.

Não é a mesma responsabilidade apresentar o que significa o risco de desenvolver uma doença, ou as indicações precisas de uma terapia médica, e fazer a crônica da roupa de uma atriz no tapete vermelho. O destinatário da notícia é mais vulnerável, e isso nos dá um poder imenso para prejudicá-lo.

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As patentes genéticas e a ‘cultura do medo’ – Cláudio Cordovil

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Roxana Tabakman é bióloga e jornalista, autora de A saúde na mídia: medicina para jornalistas, jornalismo para médicos (lançamento previsto da edição em português para setembro de 2013, pela Editora Summus)