Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Em busca da racionalidade perdida

Quando se olha para o tratamento midiático acerca do Oriente Médio, palco de convulsões políticas em que indivíduos – que até há bem pouco tempo não eram enquadrados como inimigos da liberdade – vêm a ser pintados, de repente, como ditadores, vem a se colocar o tema sempre presente do conceito de ‘terrorismo’. E, a partir do diálogo com dois amigos – que não têm, no entanto, qualquer responsabilidade pelas impropriedades que eventualmente possam surgir – sobre isto, resolvi fazer algumas considerações à margem do que me parece estar por detrás dos últimos acontecimentos no Oriente Médio.

O tema do terrorismo se põe justamente por conta da histeria coletiva que se tem verificado nos últimos tempos, por conta de eventos terríveis como o 11 de setembro de 2001, e conduziu a que viessem pérolas que negam, paradoxalmente, os valores que dizem estar os qualificados como terroristas dispostos a destruir. Pérolas como ‘sem Guantánamo e seu sistema, o mundo livre perecerá’ ainda se ouvem, mesmo depois de a Suprema Corte – já na Era Obama – haver pronunciado a inconstitucionalidade, em face da bicentenária, do Patriot Act. No meu livro Direito Econômico, direitos humanos e segurança coletiva, faço uma pequena reflexão sobre a dificuldade de se caracterizar o terrorismo, em si mesmo, porque, conforme a simpatia, a qualificação de terrorista ou resistente é emprestada a quem emprega os mesmos métodos. Veja-se o caso dos enaltecidos resistentes ao Kadafi. E, na película Um homem chamado Intrépido, a resistência ao nazismo não pestaneja em afundar um navio com passageiros inocentes, tendo em vista que carregava, também, equipamentos importantes – água pesada – para a Wermacht.

Satanás do momento

O Agente Secreto, de Joseph Conrad, trata de um atentado contra o Observatório de Greenwich. Baseado neste livro – em que os terroristas ecoam, modo certo, Nietzsche e mesmo, avant la lettre, Georges Sorel –, Hitchcock fez o filme Sabotagem, no qual tem uma curiosa associação com Walt Disney, responsável por uma sequência de animação numa das últimas cenas. É curioso que, à época em que o romance foi escrito (1907), não se ligava o conceito de ‘terrorista’ a uma determinada convicção ideológica, mas sim, a um meio de ação. No espectro ideológico, os terroristas de Conrad – que, politicamente, era um conservador – vêm a se situar muito mais à direita: seu discurso de culto à força (principalmente no ‘Professor’, que, curiosamente, é um tipo físico franzino, que passa despercebido) está muito próximo daquele que seria sustentado por Benito Mussolini, visto, num primeiro momento – como refere Monteiro Lobato, contemporâneo dos acontecimentos, na sua História do mundo para crianças – como uma resposta firme e pronta ao advento do bolchevismo na Rússia. Somente quando o Eixo começou a colonizar mesmo os países que não estavam sob a influência soviética é que se entendeu necessário deter os seus líderes.

Em verdade, toda esta questão em torno do terrorismo puro e simples, do terrorismo de Estado, do que qualificar como terrorismo, efetivamente tem uma outra que a antecede, que é a dos limites da racionalidade. Tenho visto pessoas que qualquer cidadão normal daria como sensatas se pronunciando e comportando de tal forma que me indago se o homo sapiens, em realidade, não prefere ser um macaco sofisticado. Cada qual tem uma noção muito firme do espaço próprio, e somente uma causa exterior faz com que reconheça que o outro pode ter um espaço também. Mas se aparecer a chance de reduzir o espaço do outro e aumentar o próprio, ele a aproveitará, e o outro também o fará. A afirmação de si é considerada negação do outro; a afirmação do outro, negação de si. O nazismo não faria tanto sucesso se não fosse a famosa teoria do espaço vital, que fez com que a Alemanha aplicasse à Europa o metro que esta última utilizara para medir as suas relações com os povos da América, da Ásia e da África, como bem lembrou o professor Artur Diniz. Creio que é o caráter da besta escondida, exatamente num povo que se tinha como o mais intelectualizado da Europa, que gera a fascinação. Se alguém delirou, neste particular, foram tanto Locke quanto Rousseau, ao presumirem a natural bondade humana. A visão do ‘inimigo’, segundo Carl Schmitt, não se confunde com o ‘adversário’, do qual simplesmente discordamos em um debate, ou com o ‘concorrente’ no âmbito econômico. O Outro, neste caso, é visto sob um viés utilitário, de estabelecer, pelo medo, a unidade entre os amigos [ver aqui]. Na realidade, o que é a distinção que os EUA fazem entre os ditadores, colocando uns na condição de our s.o.b. e outros na condição de tiranos, senão uma versão mais tosca do dualismo ‘amigo/inimigo’? Quem se lembra como Saddam era apontado como um baluarte no Oriente Médio contra a nefasta influência bolchevique? E depois da queda do Muro de Berlim, virou o Satanás do momento. Foi enforcado por uma ação praticada quando era aliado dos EUA de Reagan [ver aqui].

Irracionalidade, inconformismo

O extraordinário livro de Daniela de Freitas Marques sobre o processo de Giordano Bruno é uma obra essencial para quantos desejem verificar o quanto ainda persiste dos medos que levaram o pensador nolano à fogueira. Tenho-o tomado como referencial para vários debates a respeito justamente da irracionalidade destes nossos tempos, em que se prega e exalta a liberdade de expressão de pensamento, mas numa simples discordância se vê um insulto, uma profanação, uma heresia [ver aqui]. Sem contar com um outro dado sumamente preocupante, que é o de se procurar submeter até mesmo as leis da Física à conveniência grupal. Se, por algum motivo, vier à tona algum fato inconveniente, este deverá ser tido por não ocorrido. Não é nem o domínio da doxa, é o da episteme que já está sendo atingido. Onde está a exemplar postura de um Max Weber, que, por sua decência intelectual e pessoal, não hesitaria, mesmo sendo adversário dos marxistas, em referir um ponto em que estes porventura tivessem razão e, no final da vida, foi execrado pelos estudantes e professores de extrema-direita por haver verberado o assassinato de Liebknecht e Rosa Luxemburgo? Como cientista, Weber buscava a neutralidade, assegurando a humildade perante os fatos, o que também deveria ser uma preocupação das fontes de informação.

A pretensa neutralidade, a bem de ver, traduz o esforço da razão em manter a Besta, com seu impulso tanático, sob controle, embora à Besta, a bem de ver, por mais brutal que seja, não falte astúcia e, por isto mesmo, vem a lograr a razão, fazendo a esta crer-se vencedora, quando, em realidade, termina por se converter em serva, ofertando àquela os fundamentos para a realização plena de sua impulsão tanto no sentido da sua persistência – vontade de viver – como no sentido da remoção dos obstáculos a tal realização – o impulso tanático. Hoje, o que se tem é meramente a imputação a uns de comerem churrasco de criança, a outros, de beberem sangue de proletário, e outros ainda querem reduzir tudo a uma questão de conflitos raciais ou a uma seleção natural pelo mercado. Dir-se-ia que, para desespero de todos nós, chegamos a confundir a razão com o sentimento de ter razão, a que se referiu Camus em seu O homem revoltado.

Entendido este sentimento de que se tem razão como aquela mesma ‘vontade de viver’ de Schopenhauer levada ao extremo de se converter em ‘vontade em direção ao poder’ (tradução mais aproximada do original alemão, Wille zur Macht), tão estudada por Nietzsche, em que o Bem se vem a confundir com o Agradável, em que o Verdadeiro se vem a confundir com o que justifica as decisões do indivíduo, em que, enfim, se tem a busca da afirmação individual sobre o mundo. Teremos aí a representação da nossa irracionalidade. Porém, tal não será o simples inconformismo, se este tiver um referencial passível de compreensão e transcender as próprias conveniências do indivíduo ‘revoltado’. A irracionalidade nem sempre se manifestará no inconformismo porque, ao contrário, ela se poderá fazer presente na própria defesa intransigente do status quo, em função do medo.

Ilustrações do fanatismo

E então? Retornaríamos a Hegel, neste particular, dando o Estado como a expressão plena da racionalidade, preparando, assim, o caminho para a tutela pública da totalidade das relações sociais? Também não. O soberano encarnado como Estado se vem a constituir justamente em um dique imaginado pelos seres humanos contra as pulsões da Besta, que é o soberano na determinação das ações humanas. Mas, como o Estado vive através de seres humanos, também ele está vulnerável à Besta, na medida em que eles também são dotados de paixões (daí por que toda a construção do Estado de Direito, em qualquer de suas modalidades, vem a se tornar insuficiente para coibir atos concretos de arbitrariedade, mesmo de agentes públicos).

Mas se o temor ao totalitarismo vem a se justificar pelo dado de que ele seria apto a tornar a máquina de coação um instrumento a serviço da Besta, isto não aponta para a desejabilidade de um vazio normativo, em que os egoísmos se entre-equilibrariam espontaneamente? Não. Na realidade, a ‘vontade em direção ao poder, vejo-a como a exacerbação da ‘vontade de viver’, que naturalmente açula a cada ser vivente – a pulsão pela vida schopenhaueriana a que Freud denominou Eros. O vazio normativo apenas conduz a que os desejos dos que atuam nos mercados – e, no caso, dos mercados financeiros, isto se mostra mais evidente – tenham como único limite a capacidade de, mutuamente, destruírem e serem destruídos.

A força diretriz do mercado não é o desejo de cada agente superar a si próprio, mas sim o de cada agente superar os obstáculos à realização de sua própria vantagem – entre eles, o competidor –, e isto segundo Adam Smith, que ainda é a referência obrigatória, neste particular. O logos platônico, a bem de ver, é o Santo Graal buscado pelo ser humano em sua tentativa de desvencilhar-se da soberania da Besta.

Uma película que merece ser vista e revista, a propósito destas considerações, é O julgamento em Nuremberg, de Stanley Kramer. Este filme – que deu o Oscar de melhor ator a Maximilian Schell – procura, exatamente, tratar de modo racional um momento em que a racionalidade cochilou e a besta surdiu. Uma das mais belas ilustrações do fanatismo está no discurso do promotor Hahn, personagem confiado ao ator Werner Klemperer (que, mais tarde, no seriado cômico Guerra, sombra e água fresca, viveria o coronel Klink), quando diz que não poderia ele ser condenado pelo que fizera nos anos do nazismo porque seria isto ou o comunismo, e se ele era condenado naquele momento, mais tarde seriam eles, os julgadores, condenados pelos soviéticos.

Note-se, mais, que o discurso que coube ao juiz vivido por Spencer Tracy acerca da situação do julgador que condena, em nome da saúde do Reich, à morte uma pessoa que sabe inocente, porque se julgava, por lealdade, proibido de proferir uma decisão a ela favorável, obriga a uma reflexão sobre os sectarismos que vêm sendo alimentados nos últimos tempos.

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Advogado, Porto Alegre, RS